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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

JUSTIÇA PARA MARTIN SCORSESE

Polêmicas com a Marvel e Oscar fazem necessário relembrar que o cineasta é muito mais do que os filmes de máfia.





Depois de comprar briga com os fãs da Marvel ao afirmar que não considerava seus filmes de quadrinhos como cinema, o renomado cineasta Martin Scorsese saiu de mãos abanando na última edição do Oscar quando O Irlandês, a produção que ele e Robert De Niro levaram mais de 20 anos para tirar do papel, não trouxe para casa nenhuma das 10 estatuetas a que estava indicado. Não faltou gente para comemorar a notícia nas redes sociais, argumentando que Scorsese, conhecido por seus filmes sobre máfia, não merecia os troféus porque estava entregando apenas mais do mesmo. Mas isso não é verdade.

Scorsese e os Filmes de Máfia


Voltando ao universo dos mafiosos num filme com quase 3 horas e meia de duração e lançado na Netflix, Scorsese se tornou um alvo fácil para seus haters. Não só o acusaram de estar se repetindo, como também de ser hipócrita por afirmar que a Marvel não faz cinema enquanto ele mesmo lançou seu projeto numa plataforma conhecida por ser assistida em celulares, notebooks e tablets ao redor do mundo.

Não é a primeira vez que Martin sofre com o estereótipo de ser o “cara dos filmes de máfia”. No livro Conversas com Scorsese, de Richard Schickel, o jornalista entrevistou o cineasta sobre sua infância e juventude em meio aos mafiosos sicilianos em Nova York e como isso influenciou seus trabalhos. Em certo ponto, Scorsese fica impaciente e pergunta se podem falar de seus outros filmes, além daqueles que são focados na máfia. De fato, sem contar episódios de séries, curtas e especiais para a TV, Martin dirigiu pelo menos 37 longas-metragens em sua carreira, e desses apenas 5 falam sobre o submundo do crime.

Scorsese já dirigiu musical (New York, New York), suspenses (Cabo do Medo, Ilha do Medo), dramas religiosos (A Última Tentação de Cristo, Kundun, Silêncio), cinebiografias (O Aviador, O Lobo de Wall Street), romances (Quem Bate à Minha Porta?, Alice Não Mora Mais Aqui, A Época da Inocência) e, talvez seu gênero favorito, os documentários, como O Último Concerto de Rock e Shine a Light. Aqueles que ele mesmo considera “filmes de máfia” são Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros, Cassino, Os Infiltrados e, agora, O Irlandês.

Um Ativista pelo Cinema Mundial


E se Scorsese não é conhecido pela diversidade da sua filmografia, menos ainda se fala sobre seu ativismo na preservação do cinema mundial. Sim, o cineasta ítalo-americano sempre demonstrou grande interesse pela produção cinematográfica não apenas dos países com que se relaciona, os Estados Unidos (onde nasceu) e a Itália (de onde vem sua família), sobre as quais Martin dirigiu dois fantásticos documentários relatando sua relação com os filmes que cresceu assistindo: Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano e Minha Viagem à Itália. Ambos são uma aula de cinema e servem também como um guia para quem deseja conhecer mais aprofundadamente a história do cinema dessas duas nações.

Porém o cineasta não se permitiu ficar apenas atrás das câmeras quando o assunto é proteger a memória do cinema mundial. Essa dedicação o levou até o cineasta britânico Michael Powell, que foi esquecido pelo público da Inglaterra depois de lançar alguns projetos polêmicos no final da década de 1940, entre eles Os Sapatinhos Vermelhos, um dos filmes favoritos de Scorsese e grande influência em produções como Sinfonia de Paris, Cisne Negro e até La La Land. Martin conseguiu contatar Powell e os dois passaram a trabalhar na restauração de cópias raras de seus filmes, incluindo Os Sapatinhos, que estava de certa forma perdido há muitos anos. Foi nesse processo que a premiada montadora Thelma Schoonmaker, fiel colaboradora dos filmes de Scorsese, conheceu e se casou com Michael Powell, que acabou falecendo em 1990.

Nesse mesmo ano, Scorsese fundou a Film Foundation, uma fundação sem fins lucrativos dedicada ao resgate e à preservação de filmes em todo o mundo. Hoje, alguns membros da diretoria da Film Foundation incluem seus amigos Francis Ford Coppola e Steven Spielberg, assim como Paul Thomas Anderson, Peter Jackson, Christopher Nolan, George Lucas e Wes Anderson. Através da fundação, Martin e Thelma fizeram juntos a restauração e o relançamento de Os Sapatinhos Vermelhos com uma sessão especial no Festival de Cannes em 2009.

Coringa e a Contracultura


Além disso tudo, os filmes de Martin Scorsese tiveram um papel importante no movimento de contracultura da década de 1970, que foi uma mudança radical de atmosfera que se distanciou da época paz e amor mostrada recentemente em Era Uma Vez em Hollywood. O final dos anos 1960 trouxe um cinema predominantemente mais cético, sombrio e político para os Estados Unidos, cimentado pela perseguição aos hippies, o ápice da corrida espacial, o assassinato de Sharon Tate e o caso Watergate. Os filmes de Scorsese acompanharam essas mudanças e foi o espírito desse cinema que, por exemplo, inspirou o Coringa de Todd Phillips - um filme baseado em quadrinhos.

Ainda assim, no mesmo ano em que o Coringa de Joaquin Phoenix ganhou as telas pelo mundo, tão inspirado em alguns personagens aclamados do diretor, Scorsese se viu refém de sua própria afirmação sobre filmes de HQ: “Não são cinema”.

Scorsese responde os fãs da Marvel


O cineasta chegou a publicar um artigo no New York Times para explicar suas declarações. No texto ele diz que as franquias sempre existiram e que entende o fascínio que elas geram. Ele cita que o próprio Alfred Hitchcock era uma espécie de franquia na sua época, pois seus filmes eram muito similares e também levavam multidões aos cinemas - Martin revela que foi assistir à pré-estreia de Psicose com seus amigos e todos vibraram como as plateias mais jovens ainda fazem hoje com os filmes da Marvel. O que ele admite é que a estética dos filmes de heróis não chama sua atenção, embora tenha assistido alguns deles e ressalte que são muito bem feitos.

Sua maior preocupação, porém, é o método de distribuição desses blockbusters de super-heróis, que ocupam boa parte das salas de cinema. Segundo ele relata no artigo, a tela grande ainda é a principal e mais respeitada das janelas de exibição, e por isso continua sendo a mais procurada pelos realizadores do mundo inteiro. No texto, ainda escreve que por causa dessa predominância de heróis nas salas disponíveis, é que esses filmes se aproximam bastante de parques de diversão, pois Scorsese enxerga que são tratados como produtos de entretenimento, feitos sob medida para vender mais, não deixando espaço para a criatividade para filmes que lidam com sentimentos e a complexidade dos seres-humanos.

Pode ser argumentado que o entretenimento e a diversão também são sentimentos que fazem parte da complexidade das pessoas. Entretanto, dentre todos os realizadores em atividade hoje, Martin Scorsese parece ser um dos poucos com o currículo para embasar suas opiniões, mesmo que se discorde delas. O Irlandês não foi a primeira vez em que ele saiu de mãos abanando de uma cerimônia do Oscar, Taxi Driver, A Última Tentação de Cristo, Cabo do Medo, Cassino, Kundun, Gangues de Nova York, O Lobo de Wall Street e Silêncio foram outras produções indicadas ao prêmio da Academia e que acabaram não levando nada. Se muito, isso significa que nem sempre Hollywood consegue premiar Scorsese, mas também que não consegue ignorar seus trabalhos. Longe de ser apenas o “cara dos filmes de máfia”, esse senhoriznho, hoje com 77 anos de idade, já viajou pelos mais diversos gêneros do cinema, produzindo, salvando e se inspirando em filmes pelo mundo todo, inclusive no Brasil.

Yuri Célico / Instagram

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