quinta-feira, 10 de outubro de 2019

CRÍTICA: CORINGA



Tem algo de muito satisfatório no momento em que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) se ergue, enfim, como o Coringa, com seu terno colorido, o sorriso macabro e toda a parafernália que fez do palhaço do crime um dos vilões mais celebrados da cultura popular. E não importa o quão sanguinário, brutal ou insano é o nosso protagonista, pois, a partir do instante em que o título surge imenso e amarelo cobrindo toda a tela com o nome do antagonista mais famoso do Batman, o filme cria uma expectativa em cima da decadência moral desse personagem, e o único desfecho satisfatório é vê-la se concretizando. Tal qual Taxi Driver, Scarface ou Breaking Bad antes dele, Coringa trabalha em cima de uma catarse condenável: são histórias que nos fazem querer ver o pior daquelas pessoas.


E o que tem de errado com isso? Bom, nada. Arte tem dessas, ela não precisa necessariamente retratar ou inspirar coisas boas para funcionar e ser, enfim, Arte. O problema é que, de um lado, existem sempre os moralistas querendo ditar o que a Arte pode ou não mostrar - normalmente são os mesmos que adoram cruzar o Atlântico para visitar museus na Europa e postar no Instagram fotos de afrescos esboçando coisas como, sei lá, demônios enfiando lanças em chamas nos anûs de pecadores no inferno (Cúpula de Brunelleschi, Florença, Itália, de Giorgio Vasari e Federico Zuccari, 1568-1579).

De outro, porém, existem aqueles que pulam em cima de obras mais polêmicas para usá-las de bandeira - como aconteceu, por exemplo, com as máscaras de Guy Fawkes de V de Vingança. E no meio desses últimos, claro, existem aqueles que vão adotar um filme polêmico como bandeira apenas pela leitura mais superficial da sua mensagem, sem entender que, muitas vezes, a obra está discursando justamente contra o tipo de causa que eles estão defendendo - como aconteceu, por exemplo… bom, com as máscaras de Guy Fawkes de V de Vingança.

Existe sempre uma diferença entre mostrar uma coisa, defender uma coisa e, independente disso, ser um filme bom ou não. O Triunfo da Vontade é um filme belíssimo, que mostra e defende os nazistas, enquanto Nada a Perder é um filme horrível, que mostra e defende um nazista só [já que estamos na internet, é bom avisar: por favor, se atenham ao sarcasmo contido nessa última frase]. O ponto é: aquilo que eles mostram e defendem não define se, como Arte, são válidos ou não.

Claro, podemos e devemos questionar o discurso de uma obra e como ela vai repercutir, o problema é que, ao contrário de como alguns têm atacado, Coringa não é um filme que defende a violência ou incentiva comportamentos agressivos, especialmente esses vindos dos autodeclarados incels (sigla para “celibatários involuntários”, ou melhor, virgens). Sabe o que incentiva incels a usar Coringa como justificativa para os seus atos? Rotular o filme de maneira superficial e sair alardeando isso por aí na internet de forma irresponsável, pois é justamente a leitura rasa de uma obra que leva esse tipo de gente a abraçar a narrativa de que aquela história defende a sua causa.

O lado moralista rotula e rejeita um filme que, do outro lado, acaba sendo adotado pelo seu discurso mais superficial. Para essa gente mau-caráter, esses incels: Alex DeLarge (Laranja Mecânica) não é um psicopata violento, mas um jovem que se rebela contra uma sociedade punitiva; Travis Bickle (Taxi Driver) não é um homem cheio de preconceitos e impulsos agressivos vivendo à margem da sociedade, mas um trabalhador comum tentando fazer a coisa certa; Tyler Durden (Clube da Luta) não é um sociopata egocêntrico, mas um revolucionário do bem maior, e assim por diante.


Tá, mas e o Coringa, o que é?


Dito isso, Coringa nos apresenta o seguinte: Arthur Fleck trabalha como palhaço de rua, fazendo anúncios de lojas em meio a uma recessão econômica que impõe aos mais pobres, claro, as consequências de uma greve dos recolhedores de lixo e uma crescente onda de revolta contra os políticos e os ricos de Gotham City. Lidando com um problema neurológico que o faz gargalhar em momentos inapropriados, com a miséria e ainda com a atenção e cuidados exigidos pela mãe, já idosa e adoecida, Arthur perde e sofre cada vez mais, até o ponto de se corromper. Ou seja, o diretor Todd Phillips, que também assina o roteiro ao lado de Scott Silver, acusa o surgimento do Coringa como resultado de uma sociedade desigual e injusta (cof cof capitalista).


E isso até que seria uma ideia muito legal, não fosse o fato de Phillips se mostrar bem confuso na hora de se posicionar ideologicamente. Ao tentar ser tão apático sobre o contexto social e político quanto é o seu protagonista (que só pensa em ser um comediante de sucesso e ignora protestos ou quem vai se candidatar a qual cargo por aí), o cineasta acaba também facilitando uma leitura mais rasa da sua obra, que ainda assim, no roteiro, faz questão de pontuar que Arthur não pode justificar atos imorais e desumanos por causa da pobreza e doenças mentais - ao menos, o personagem de Robert De Niro tenta argumentar isso com o protagonista. Mas está diluído, e dentro de um momento muito tenso da narrativa.

E embora o filme faça o correto (de um ponto de vista moral) ao apontar os motivos que levam Arthur a se transformar no Coringa, sem jamais deixar que isso soe como uma desculpa aceitável para a vilania, a questão é que o filme de Todd Phillips realmente não está tão preocupado assim em aprofundar esse debate. Desse modo, é natural que o longa esteja recheado de mensagens contraditórias. Por exemplo, se em dado instante o roteiro defende que o Estado deveria fornecer serviços básicos como a assistência social, atendimento hospitalar, saneamento e o fornecimento de medicamentos gratuitos para a parcela mais pobre da população, em outro, ele parece enxergar que a solução para isso é a revolta irracional e destrutiva contra todas as formas de organização - sociais e políticas. Ora, como o Estado vai poder cuidar da população se ele não puder existir?

Mesmo que por acidente, o tom político do filme acaba soando como uma revolta juvenil sem pauta e sem rumo, digno daquilo que acabaram virando os protestos iniciados em 2013 no Brasil e que, nós brasileiros, melhor do que muita gente, sabemos no que dá. Mas uma vez que Coringa se concentra em uma abordagem muito mais intimista do estudo que propõe do seu personagem título, as eventuais incongruências do pano de fundo acabam não incomodando tanto.

De outra forma, Todd Phillips acaba criando pelo menos uma alegoria que sintetiza de forma econômica e certeira a tensão social daquela metrópole, e ela acontece quando vemos a elite de Gotham se divertindo às gargalhadas assistindo Tempos Modernos, de Charles Chaplin, um dos filmes mais contundentes do mestre sobre a desigualdade social, enquanto a população da cidade protesta revoltada do lado de fora por melhores condições de vida.

Aliás, se peca ao tentar fugir das questões ideológicas, Phillips acerta em cheio quando se concentra na perspectiva de Arthur, cuja subjetividade abraça toda a narrativa. Da ambientação suja e opressora de Gotham City, que ainda inclui uma escadaria absurdamente longa e íngreme, que parece existir apenas para lembrar ao protagonista o quão dificultosa é a sua rotina, até a fotografia de Lawrence Sher, baseada em tons melancólicos, como o verde turmalina, que inspiram a sensação de algo podre ou nauseante. Inclusive, o diretor de fotografia também abusa da baixa profundidade de campo (fundo desfocado), inspirando a sensação de que o próprio ar é denso e úmido num nível angustiante - lembra muito o trabalho do excepcional Bruno Delbonnel, diretor de fotografia indicado ao oscar por O Fabuloso Destino de Amélie Poulain e Harry Potter e o Enigma do Príncipe.

Nessa Gotham City que faz ode à Nova York do final dos anos 1970, começo dos anos 1980, os espaços são apertados, escuros, normalmente atulhados de armários e outros móveis e objetos encardidos, ressaltando o sentimento enjoativo de podridão e miséria experimentado pelo protagonista. E não que isso que eu vou dizer agora seja uma grande novidade, pois Phillips vinha alardeando isso desde o começo da produção, mas essas composições estéticas remetem diretamente aos filmes de Martin Scorsese, de quem o cineasta pega “emprestado” muitas "referências".

E não vou me desculpar pelas aspas, pois a trama de Coringa é abertamente inspirada em pelo menos dois filmes de Scorsese, incluindo aí uma cena onde o protagonista imagina um diálogo enquanto desfila dentro de casa com uma arma na mão (como Robert De Niro faz em Taxi Driver), e também um plot onde ele fantasia um encontro com o seu apresentador de TV favorito (como Robert De Niro faz em O Rei da Comédia). E para pontuar de vez o adubo scorsesístico utilizado por Phillips, claro, o próprio Robert De Niro surge como (adivinhe?) um apresentador de TV.


Três palavrinhas


Mas sejamos justos, o esforço de Phillips para trazer toda essa carga do movimento de contracultura do cinema estadunidense das décadas de 1970/1980, conversa perfeitamente com a tentativa que Coringa faz de se afastar dos moldes dos atuais filmes baseados em quadrinhos - e bons ou não, é inegável que os longas do MCU possuem, sim, uma estética e narrativas padronizadas (salvos raríssimas exceções, como os Guardiões da Galáxia).

A questão aqui é que talvez Phillips se esforce demais para se utilizar desses elementos que ele tenta emular. A certo ponto, por exemplo, a fotografia chamativa já surge anestesiada, assim como a trilha da compositora Hildur Guðnadóttir se faz presente sempre que Arthur está passando por algo que o corrompe mais um pouco (o que acontece o tempo inteiro) - aliás, é um alívio quando a sonoridade de Guðnadóttir dá espaço para um bem-vindo silêncio reflexivo ou para alguma das canções selecionadas, em especial a apropriada Smile, cuja melodia foi composta por Chaplin justamente para Tempos Modernos.


O que impede que o filme se torne um show de excessos estilísticos acaba sendo, claro, Joaquin Phoenix. Sua performance dá liga a todo projeto, desde o modo como ele infere uma dor angustiante às risadas involuntárias que o personagem tenta engolir, até os trejeitos afeminados que ele assume quando mais à vontade com a sua persona vilanesca, passando ainda pela voz anasalada já tão característica do algoz. Os maneirismos que ele emprega vão fazendo de Arthur um personagem cada vez mais detestável e repugnante, sim, mas igualmente magnético pela sua crescente instabilidade.

Excessivamente magro e curvado, Phoenix surge muito semelhante ao personagem que viveu em O Mestre, que pelo menos para mim, ainda é o seu melhor trabalho até hoje. Aliás, já que citei esse filme dirigido e escrito por Paul Thomas Anderson, vou evocar outro trabalho do cineasta para encerrar esse texto, pois eu lembro ainda do impacto que ele conseguiu gerar com apenas três palavrinhas:

“I am done”

Essa fala, que no inglês tem sentido duplo (Eu terminei/ Eu estou acabado), eram as palavras de encerramento de Daniel Plainview, personagem de Daniel Day-Lewis em Sangue Negro, outro filme que acompanha um protagonista vilanesco tanto na sua meteórica ascensão social quanto na sua vertiginosa decadência moral. Objetiva e econômica, a frase encerra uma sequência de clímax que confia no poder do roteiro e dos atores, sem abusar de uma fotografia ou trilhas chamativas, pontuando pela simplicidade a grandiloquência da vilania de Plainview.

Coringa é um ótimo filme, repleto de méritos como é a própria escalação de Joaquin Phoenix e Robert De Niro. Mas se esforça tanto para estar ao nível dos mestres nos quais se inspira, coloca tanta ânsia no ímpeto de ser um grande filme, que talvez lhe escape justamente um pouco mais de ousadia - ousadia justamente para ser mais humilde. Pois Phillips parece tão encantado com a própria criação, que acaba concebendo ao menos três cenas em que o longa-metragem poderia se encerrar perfeitamente. E talvez, apenas talvez, o que separa Coringa de Taxi Driver, O Rei da Comédia, Laranja Mecânica, Clube da Luta e (por que não?) Sangue Negro, é encontrar esse momento de dizer “I am done”.


Nota: 8/10



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