quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS


Eu sou um homem. Digo, um ser humano do sexo masculino. XY, pênis e tudo mais, e por isso consigo entender porque meus congêneres podem (e alguns devem) se sentir desconfortáveis assistindo a esta versão dirigida e adaptada por Sofia Coppola do livro de Thomas Cullinan, que por sua vez já tinha ganhado as telas em um filme de 1971. Dona de uma filmografia autoral em sua linguagem, Coppola prefere aqui sacrificar um pouco de seus virtuosismos (um pouco, pois eles existem) para construir uma narrativa tensa. Porém, e o que é mais curioso sobre O Estranho que Nós Amamos, é que, apesar de colocar ameaças pairando incessantemente sobre a cabeça de seus personagens, a maior parte da tensão que provoca vem do erotismo que sugere.



O que acaba colocando em pauta aquela velha questão: estamos mais preparados para lidar com a violência do que com sexo. Constantemente mais receptivos a falar de guerras, homicídios e agressões, do que de atração e desejo, tão naturais à espécie humana. Menos ainda se estivermos falando de sexo do ponto de vista feminino, já que, segundo Hollywood, mulheres não tem libido – e as que têm são perversas e traiçoeiras. Portanto, quando um filme inteiro se dedica a estudar o comportamento de um grupo de mulheres que, de repente, tem seus desejos despertados pela presença de um homem, não surpreende que o produto disso seja a tensão. É o que acontece aqui quando, durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, um cabo nortenho ferido, acaba sob os cuidados de sulistas num isolado internato para mulheres.

Sabendo o que pode lhes acontecer caso sejam pegas ajudando um inimigo, o grupo comandado pela Senhora Martha (Nicole Kidman) também teme que tipo de homem pode ser o cabo McBurney (Colin Farrell), e o que ele será capaz de fazer quando estiver recuperado. Essa dupla ameaça, a quem vem de fora do casarão e a que vem de dentro, transforma o lugar no palco de uma pequena alegoria social. E se aquelas mulheres representam o gênero como um todo e sua situação no mundo, então aqui sua luta ganha um dilema para resolver: o que fazer quando, em uma oportunidade inédita, "os homens" (aqui representados na figura do cabo) se encontram física e moralmente em pé de igualdade com elas?

Os conflitos morais, éticos, sociais, históricos, físicos e imediatos nascidos desse cenário proposto, são potencializados pela atmosfera incomodativa concebida por Sofia Coppola. Usando a fechada razão de aspecto 1.66:1 (que é quase quadrada), a cineasta e seu diretor de fotografia, Philippe Le Sourd, ainda apostam em uma iluminação estritamente natural e, portanto, muito escura na maior parte do tempo, devido à paisagem e à estrutura do lugar - ainda que isso não os impeça de criar composições e quadros belíssimos com o jogo de luz, sombras e cores de tons pastéis. Além disso, seu design de som é inteligente ao permear a narrativa com o som de estouros abafados, que tanto poderiam ser das batalhas próximas, quanto dos tambores da trilha sonora. Aliás, também ajuda que Coppola esconda o horizonte o filme inteiro, cercando o casarão com árvores e colunas de fumaça da guerra, incentivando o sentimento de claustrofobia no espectador.

Claro que os méritos do filme, entretanto, não são apenas da diretora. Tanto Nicole Kidman quanto Kirsten Dunst apresentam aqui um tipo de performance que, infelizmente, costuma passar despercebida nas grandes premiações, pois envolvem não o excesso de atuação, mas sim a arte de contê-la e criar com o mínimo. Martha e Edwina são mulheres contidas, mais maduras, distantes do comportamento pueril das garotas mais jovens. Note como Alicia, vivida por Elle Fanning, por exemplo, deixa uma mecha de seu cabelo solta na testa por quase toda a duração, complementando a rebeldia adolescente e sexual latente na menina, enquanto as menores se mostram sorridentes e inconvenientemente sinceras ao lidar com o cabo McBurney. É como se cada uma adotasse as táticas dignas da sua idade para impressionar ou flertar com o hóspede, e mesmo as mais velhas se diferenciam nisso: enquanto Martha prefere a ceder na frieza e oferecer uma bebida ao cabo, mantendo seu flerte na dubiedade dessas ações, Edwina investe em acessórios e sentimentalismos que denotam uma adulta com um emocional ainda frágil.

Enquanto isso, Sofia Coppola explora com simplicidade a alegoria angustiante que cria para esses personagens, usando-os para tecer comentários sobre a situação da mulher como um todo, sabendo que quaisquer mínimos movimentos da trama serão destacados pela atmosfera. Assim, um banho de pano dado pela Senhor Martha ao cabo desmaiado, rapidamente se transforma numa sequência enervante, principalmente quando a mulher se recusa a lavar as partes íntimas do homem, por não querer ceder a tentação de tocá-las – um momento que Coppola perscruta impiedosamente, sem afastar a câmera. Da mesma forma, faz com que soe alarmante que seja um homem a causar conflitos na convivência pacífica daquele grupo, e nem surpreende que, em dado instante, ele pense que elas o puniram por não provê-las de sexo. Menos ainda quando abandona radicalmente sua atitude carismática em detrimento de uma violenta quando toma posse de uma arma. Pode não ser a análise menos óbvia já construída sobre as desigualdades de poder entre homens e mulheres, mas é certamente eficiente.


   

   

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