quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

AZUL É A COR MAIS QUENTE



     Baseado na graphic novel escrita por Julie Maroh (que ainda não li, erro que corrigirei em breve), La Vie d'Adèle (A Vida de Adèle do original em francês) ganhou o título em português traduzido direto do nome da obra que o originou, Le Bleu est une Couleur Chaude, o que não poderia ser mais apropriado, já que não há como se analisar Azul é a Cor mais Quente sem usar como base o sábio uso das cores dentro de seu universo, em especial, obviamente, o azul, elemento que o diretor Abdellatif Kechiche emprega com prudência, contando-nos através dele detalhes jamais ditos pela voz de seus personagens durante a projeção.


     Uma estudante de literatura, Adèle (Adèle Exarchopoulos), apaixona-se por uma excêntrica e jovem artista de cabelos azuis, esta é Emma (Léa Seydoux), com quem logo começa a namorar, mesmo sendo alvo de chacotas de colegas e sem o conhecimento de seus pais. Juntas, as duas se descobrem, avançam em suas carreiras, construindo uma vida, até que encontram um ponto de declínio em seu relacionamento, e desta perspectiva, o longa é claramente constituído de três atos muito bem marcados: num primeiro momento Adèle se descobre como homossexual e aceita sua paixão por Emma, num segundo ambas desfrutam de uma vida lado a lado, para somente então num terceiro encontrarem a decadência de sua relação.


     Como filme é preciso ressaltar a naturalidade com que Kechiche trata as longas cenas de sexo explícito, jamais pretendendo chocar, pelo contrário, ao trazer para a tela um ato tão normal e comum e tratá-lo desta maneira, o cineasta ressalta que aquilo não deveria ser censurado, e sim celebrado, ao contrário do que realmente acontece, enquanto a violência que não tem por onde ser mais explícita no cinema atual, continua a ganhar espaço sem barreiras. Não digo isso, porém, condenando o grafismo brutal de certos filmes, já que em muitos casos eles são necessários para as obras que servem, e sim alardeando o contraste no tratamento dado a estes dois fatores normalmente chocantes, mas muito comuns, em longas de todos os tipos.


     Se em sua abordagem e aspectos técnicos o longa metragem é admirável (algo que discuto mais na segunda parte do texto), é em suas duas atrizes principais que Azul é a Cor mais Quente se fortalece. Criando um tipo tanto quanto ingênuo, Adèle Exarchopoulos vive uma protagonista se não de todo carismática, com certeza muito crível, e ver seu sorriso infantil ao beijar Emma pela primeira vez representa um sentimento muitas vezes não expresso no rosto de muitos personagens com essa sinceridade. Já o destaque é de Léa Seydoux, cujo os olhos cerrados implicam sobre sua personagem uma estranha sensação de que ela está sempre a observar e analisar as pessoas com quem interage, fazendo-a soar sábia e astuta, algo que acaba evidenciando o interesse imediato de Adèle por ela, já que esta áurea de perspicácia e experiência encaixa perfeitamente na composição curiosa e inocente da protagonista.  


A JORNADA DO HERÓ... DIGO, DO AZUL!
 (spoilers!)

     Bastam apenas uns trinta minutos (das quase três horas de duração do longa) para que Kechiche estabeleça sua própria lógica visual, apontando o azul como símbolo não só para Emma em si como personagem, mas para todo o processo de auto descoberta de Adèle e sua crescente paixão pela outra. Explico: a cor supracitada não surge de imediato na trama, na verdade, ela vai surgindo aos poucos, numa blusa, nas janelas de uma casa e no ônibus, para então ir ganhando força, fazendo parte da composição do quarto da protagonista, de suas roupas de cama e de todo o seu vestuário, até o ponto em que ela finalmente enxerga pela primeira vez sua futura namorada ao caminhar pela rua, quando não somente Adèle e Emma estão completamente trajadas em azul, como quase todos na praça onde se encontram parecem estar, indicando o quão próximo de aflorar está a natureza daquela personagem, algo a que o cineasta dá continuidade após enfocar um devaneio sexual da nossa protagonista com Emma, quando então a vemos vestida com um pesado casaco marrom, escondendo uma discreta camiseta azul por baixo, indicando assim a autocensura imposta por Adèle, que tenta suprimir psico e visualmente os seus sentimentos homossexuais. Não de graça, ela volta a vestir a cor quando finalmente aceita sua "condição", trajando-a quando decide terminar com seu namorado, algo que, claro, se dá num banco totalmente azul.


     Dando sequência, após Emma e Adèle se conhecerem (em uma cena que apropriadamente deixa que apenas as duas garotas se destaquem pelo azul, ambientado-as num bar de cores quentes) e então estabelecerem uma relação, o filme pula para um momento estável de seu relacionamento, onde a velha paixão tão ardente do início dá lugar a um convívio mais convencional, algo que é representado pela ausência do azul nos cabelos de Emma, e na presença cada vez mais escassa da cor nas palhetas do filme, que mesmo quando o mostra, prefere tons mais escuros ao invés daqueles claros e luminosos de outrora. Chegando ao ponto de o azul ser reduzido a uma aparição desbotada vinda da luminosidade da projeção de um filme antigo, onde se passa uma cena em preto e branco de um casal valsando, deixando claro pela associação, que a paixão das nossas protagonistas agora é oriunda a um tempo passado, apenas um mero plano de fundo para sua pequena festa de quintal, e consequentemente para suas vidas presentes. 


     É então que Abdellatif Kechiche, junto com a fotografia de Sofian El Fani, pontua finalmente a vida útil do relacionamento de Adèle e Emma ao expulsar a tão trabalhada cor de seus quadros. Ao trazer a primeira traindo sua namorada de longa data, o cineasta a enfoca com roupas de cores terrosas e escuras, banhada em uma luz amarela e avermelhada, colorindo assim o ato que dá fim a história de amor que vínhamos acompanhando. Porém, depois deste ponto, o filme se estende por mais ou menos uma hora ainda, dedicada então a mostrar o declínio de Adèle, que traumatizada após perder sua companheira vê cada vez menos chances de tê-la de volta, e em uma cena de importante simbolismo, deixa-se boiar na água do mar, representando toda sua incerteza ao entregar-se à um ambiente que, sim, é azul, mas um de tom pálido e de textura fluída e nada concreta, ou seja, uma atmosfera indefinida, tal qual sua vida se tornou, e por onde ela também boia à deriva, esperando recuperar o que perdeu pelos desejos de seu corpo - este vestido genialmente com roupas de banho vermelho escuras. E só em sua última tentativa de ter Emma de volta, que o azul volta a fazer uma presença marcante, sendo a cor de todo o ambiente do restaurante onde as duas se encontram, porém, ali já é um azul escuro, duro e mal iluminado, e mesmo que uma centelha daquele tesão inicial ressurja entre as duas, este é logo superado pela personagem de Léa Seydoux, que faz jus as cores do ambiente e se mostra "dura" em sua decisão. Por fim, na cena final, apenas Adèle ainda veste a cor do título, demonstrando a marca que sua amada deixou em sua vida. Mas ainda assim, Kechiche dá um último toque de brilhantismo ao trazer as unhas da personagem pintadas discretamente de vermelho, o que associado ao instigante plano final, deixa a entender que a personagem está prestes a iniciar uma nova fase de sua vida. 



NOTA: 10/10



  


        

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