Baseado na graphic
novel escrita por Julie Maroh (que ainda não li, erro que corrigirei em breve), La Vie d'Adèle (A Vida de Adèle do original em francês) ganhou o
título em português traduzido direto do nome da obra que o originou, Le Bleu est une Couleur Chaude,
o que não poderia ser mais apropriado, já que não há como se analisar Azul é a Cor mais Quente sem usar como base o sábio uso das
cores dentro de seu universo, em especial, obviamente, o azul, elemento que o
diretor Abdellatif Kechiche emprega com prudência, contando-nos através dele
detalhes jamais ditos pela voz de seus personagens durante a projeção.
Uma estudante de
literatura, Adèle (Adèle Exarchopoulos), apaixona-se por uma excêntrica e jovem
artista de cabelos azuis, esta é Emma (Léa Seydoux), com quem logo começa a
namorar, mesmo sendo alvo de chacotas de colegas e sem o conhecimento de seus pais.
Juntas, as duas se descobrem, avançam em suas carreiras, construindo uma vida,
até que encontram um ponto de declínio em seu relacionamento, e desta perspectiva, o longa é claramente constituído de três atos muito bem marcados: num
primeiro momento Adèle se descobre como homossexual e aceita sua paixão por
Emma, num segundo ambas desfrutam de uma vida lado a lado, para somente então
num terceiro encontrarem a decadência de sua relação.
Como filme é preciso
ressaltar a naturalidade com que Kechiche trata as longas cenas de sexo
explícito, jamais pretendendo chocar, pelo contrário, ao trazer para a tela um
ato tão normal e comum e tratá-lo desta maneira, o cineasta ressalta que aquilo
não deveria ser censurado, e sim celebrado, ao contrário do que realmente
acontece, enquanto a violência que não tem por onde ser mais explícita no cinema
atual, continua a ganhar espaço sem barreiras. Não digo isso, porém, condenando
o grafismo brutal de certos filmes, já que em muitos casos eles são necessários
para as obras que servem, e sim alardeando o contraste no tratamento dado a estes
dois fatores normalmente chocantes, mas muito comuns, em longas de todos os
tipos.
Se em sua abordagem e aspectos
técnicos o longa metragem é admirável (algo que discuto mais na segunda parte
do texto), é em suas duas atrizes principais que Azul é a Cor mais Quente se fortalece. Criando um tipo tanto
quanto ingênuo, Adèle Exarchopoulos vive uma protagonista se não de todo
carismática, com certeza muito crível, e ver seu sorriso infantil ao beijar
Emma pela primeira vez representa um sentimento muitas vezes não expresso no
rosto de muitos personagens com essa sinceridade. Já o destaque é de Léa
Seydoux, cujo os olhos cerrados implicam sobre sua personagem uma estranha
sensação de que ela está sempre a observar e analisar as pessoas com quem
interage, fazendo-a soar sábia e astuta, algo que acaba evidenciando o
interesse imediato de Adèle por ela, já que esta áurea de perspicácia e
experiência encaixa perfeitamente na composição curiosa e inocente da
protagonista.
A JORNADA DO HERÓ... DIGO, DO AZUL!
(spoilers!)
Bastam apenas uns
trinta minutos (das quase três horas de duração do longa) para que Kechiche
estabeleça sua própria lógica visual, apontando o azul como símbolo não só para
Emma em si como personagem, mas para todo o processo de auto descoberta de
Adèle e sua crescente paixão pela outra. Explico: a cor supracitada não surge
de imediato na trama, na verdade, ela vai surgindo aos poucos, numa blusa, nas
janelas de uma casa e no ônibus, para então ir ganhando força, fazendo parte da composição do quarto da protagonista, de suas roupas de cama e de todo
o seu vestuário, até o ponto em que ela finalmente enxerga pela primeira vez sua
futura namorada ao caminhar pela rua, quando não somente Adèle e Emma
estão completamente trajadas em azul, como quase todos na praça onde se
encontram parecem estar, indicando o quão próximo de aflorar está a natureza
daquela personagem, algo a que o cineasta dá continuidade após enfocar um
devaneio sexual da nossa protagonista com Emma, quando então a vemos vestida
com um pesado casaco marrom, escondendo uma discreta camiseta azul por baixo,
indicando assim a autocensura imposta por Adèle, que tenta suprimir psico e
visualmente os seus sentimentos homossexuais. Não de graça, ela volta a vestir a cor quando finalmente aceita sua "condição", trajando-a quando
decide terminar com seu namorado, algo que, claro, se dá num banco totalmente
azul.
É então que Abdellatif
Kechiche, junto com a fotografia de Sofian El Fani, pontua finalmente a vida
útil do relacionamento de Adèle e Emma ao expulsar a tão trabalhada cor de seus
quadros. Ao trazer a primeira traindo sua namorada de longa data, o cineasta a
enfoca com roupas de cores terrosas e escuras, banhada em uma luz amarela e
avermelhada, colorindo assim o ato que dá fim a história de amor que vínhamos
acompanhando. Porém, depois deste ponto, o filme se estende por mais ou menos
uma hora ainda, dedicada então a mostrar o declínio de Adèle, que traumatizada
após perder sua companheira vê cada vez menos chances de tê-la de volta, e em
uma cena de importante simbolismo, deixa-se boiar na água do mar, representando
toda sua incerteza ao entregar-se à um ambiente que, sim, é azul, mas um de tom
pálido e de textura fluída e nada concreta, ou seja, uma atmosfera indefinida,
tal qual sua vida se tornou, e por onde ela também boia à deriva, esperando
recuperar o que perdeu pelos desejos de seu corpo - este vestido genialmente
com roupas de banho vermelho escuras. E só em sua última tentativa de ter
Emma de volta, que o azul volta a fazer uma presença marcante, sendo a cor de
todo o ambiente do restaurante onde as duas se encontram, porém, ali já é um
azul escuro, duro e mal iluminado, e mesmo que uma centelha daquele tesão inicial
ressurja entre as duas, este é logo superado pela personagem de Léa Seydoux,
que faz jus as cores do ambiente e se mostra "dura" em sua decisão.
Por fim, na cena final, apenas Adèle ainda veste a cor do título, demonstrando
a marca que sua amada deixou em sua vida. Mas ainda assim, Kechiche dá um
último toque de brilhantismo ao trazer as unhas da personagem pintadas
discretamente de vermelho, o que associado ao instigante plano final, deixa a
entender que a personagem está prestes a iniciar uma nova fase de sua
vida.
NOTA: 10/10
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