segunda-feira, 27 de agosto de 2018

CRÍTICA: BENZINHO


Uma mãe e seus filhos brincam sob o lençol vermelho translúcido que banha os personagens em tons quentes. O plano remete ao interior de um útero, salientando o desejo da protagonista, Irene (Karine Telles), de trazer suas crianças de volta a um cenário em que ainda podia controlar o destino das mesmas, quando tinha como protegê-las e abriga-las com o próprio corpo - encargos tão atribuídos à mãe, e sobre os quais ela se vê cada vez mais impotente conforme se aproxima a data da viagem do filho mais velho à Alemanha, onde vai jogar handebol.


E embora o filme de Gustavo Pizzi, escrito ao lado da própria Karine Telles, use como fio guia da narrativa este conflito entre Irene e Fernando (Konstantinos Sarris) sobre abandono do ninho, o sentimento de derrota experimentado pela mãe (não quero usar o termo matriarca por motivos que explico adiante) é mais profundo no que tange todas essas expectativas que se colocam em cima da figura da progenitora; Sua casa está caindo aos pedaços (literalmente), ela não consegue manter uma renda fixa para alimentar a família e não está sequer apta a conseguir um emprego digno, pois não tem a escolaridade mínima completa.

Mesmo a irmã, Sônia (vivida com doçura por Adriana Esteves), que é obrigada a passar uns tempos com a família por causa de um marido violento, consegue fornecer abrigo ao filho pequeno, ainda que provisório - e não é à toa que ganhe dinheiro fazendo comida. A “gestação” de Irene, por outro lado, é bem diferente e mais problemática. Karine Telles ilustra isso através de seus modos, mais tímidos do que os de Sônia, que é mais expansiva. Uma dubiedade que, curiosamente, se inverte quando são obrigadas a lidar com problemas: Irene é explosiva e passional, enquanto Sônia parece enfrentar as adversidades com pragmatismo.

Entretanto, ambas são pessoas simples, poderiam existir em qualquer época, pois a tecnologia e o desbravamento do mundo não parecem ser assuntos do interesse de nenhuma delas. E aí entra a minha recusa em classificar Irene como uma “matriarca”, pois ela ainda não é uma, embora esteja trilhando o caminho para ser. Sua vida não é pautada por ambições individuais, mas sim em torno dos homens que a cercam, e não por acaso, todos os quatro filhos são meninos - o que, de certa forma, ilustra sua incapacidade de produzir uma mulher (em termos políticos), já que ela mesma ainda não tem todas as ferramentas para se assumir como uma.

E não digo isso porque eu, como homem, não a considero mulher o suficiente, mas porque obviamente Irene não se considera uma pessoa digna do título. E é importante ressaltar que isso se configura de acordo com os valores pessoais da própria Irene, já que ela, por exemplo, ainda sente afeto por uma antiga patroa, apesar de a mesma claramente desprezá-la como ser-humano. Embora venhamos a saber que a mulher foi cruel com ela durante a infância e a forçou a trabalhar ainda muito pequena, é óbvio que Irene a admira como criadora, gestora e, óbvio, como matriarca - o que faz com que relativize a monstruosidade da mesma.

Até porque, na realidade da protagonista, o filho mais velho está escapando entre os dedos, assim como sua nova casa, as oportunidades de trabalho e suas finanças, para as quais o marido (Otávio Müller, sensível) não para de fazer planos. Gustavo Pizzi deixa claro o desamparo da mulher tanto ao trazer mãe e filho boiando abraçados em posição fetal, pequenos em meio à quantidade de água, como quando observa, ao longe, Irene visitando as obras da casa que não consegue nunca o dinheiro para terminar. É como se as estruturas representassem um grande esqueleto do projeto que ela faz de si mesma como mãe e, portanto, em sua visão, como mulher. Tornando tocante, portanto, o instante em que ela escreve com giz numa das paredes nuas de tijolos, identificando onde ficará o seu quarto na nova casa, claramente ansiando pela plenitude que acredita poder alcançar se concluir seus objetivos.

As performances de Karine Telles e Adriana Esteves são peças fundamentais para que a narrativa nos venda essas ideias sem dizer palavra sobre o assunto. O naturalismo da interpretação das duas muitas vezes bate de frente com as falas mais ensaiadas do resto do elenco - que é majoritariamente masculino. O que impede que esses diferentes modos de atuação incomodem quando são destoantes, é que a divergência aqui salienta ainda mais a fragilidade da condição daquelas mulheres em relação aos homens que fazem parte de suas vidas. E Pizzi confronta o espectador com essa ideia ao, recorrentemente, enquadrar Irene ou Sônia através de travellings que se aproximam dos seus rostos ou que acompanham seu movimento em cena, tendo-as como centro de quadro. A sonorização é outro elemento subjetivo à protagonista, assumindo ruídos dissonantes quando esta é confrontada pela primeira vez com a notícia de que o filho vai se mudar, ou com o silêncio quando a atenção de Irene está em algum outro lugar que não aquele em que ela está.

Talvez o único tropeço do filme seja criar suspense em torno de um certa parede que está para cair - jamais justificado e, de certa forma, com um desfecho até mentiroso. O que é compensado se pensarmos que, se a casa representa o abrigo e a gestação da protagonista, o seu sentimento de falha é potencializado quando a porta principal da residência emperra e os ocupantes são obrigados a fazer uma “cesariana” por uma das janelas para poder entrar e sair de lá.

Nota: 9/10

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