Um conto de Burt Bugs
"Fingir a própria morte é a
primeira opção de qualquer um. Se quer descobrir o quanto as pessoas a sua
volta amam você, finja sua morte. Ninguém quer morrer de verdade. As pessoas
imaginam o marido se jogando em cima do caixão e chorando, os filhos dizendo
como você merecia ter sido tratado melhor enquanto acariciam as mãos gélidas do
seu cadáver. Você imagina e chega a desejar isso, mas não quer de fato deixar
de viver. E ninguém acredita o suficiente na religião pra confiar que depois de
enfiar a gilete nos pulsos ou o projétil na lateral do crânio vai poder
assistir o próprio funeral como um espírito, ou lá do paraíso em uma televisão
setenta polegadas ou coisa assim. Não, como protagonistas que somos, quando
queremos alimentar o nosso ego em um nível mais profundo, instintivamente
pensamos em nos subtrair da equação e estar lá pra ver a matemática toda
colapsar. Então a primeira opção de qualquer um é fingir a própria morte.
Você se imagina num chapéu preto
de abas largas caindo sobre o rosto, enfiado em um vestidinho ou em um terninho
apertado muito escuro e óculos gigantes cobrindo as supostas lágrimas nos seus
olhos. Com eles e um pouco de maquiagem para afinar o rosto e o nariz e pronto,
você poderia ser um amigo distante, um ex-colega do colégio ou um conhecido que
só veio prestar homenagem. Você chega perto do caixão fechado que tem o corpo
que eles acham que é o seu e se imagina ouvindo a conversa dos seus parentes.
Eles dizem que grande pessoa você era, e o quão jovem morreu. Dizem que teria
dado um ótimo advogado, enquanto seus pais na outra ponta insistem entre soluços
que você queria ter sido ator. Você sente pena deles e deseja que não tenham
lavado as roupas sujas que deixou espalhadas pelo quarto antes de ter “capotado
penhasco abaixo no seu carro novinho até deixar o corpo lá dentro
irreconhecível a não ser pela associação entre a carteira de identidade meio
chamuscada, a placa do veículo e o teste sanguíneo”.
Você se imagina drenando o corpo
de alguém que ninguém vai dar falta. Você faz um corte no topo da cocuruto e
pendura o cara ainda vivo de cabeça pra baixo até que ele fique branco como
neve. Tem que agir rápido, pois os malditos legistas podem determinar com
bastante precisão a hora da morte, embora você imagine que não vai sobrar muito
corpo pra ser analisado quando o automóvel atingir o fim do desfiladeiro. Você
se imagina tirando bastante do seu próprio sangue em uma garrafa pet e jogando
a coisa melada em cima do cadáver. Você faz o carro despencar e prontinho, pode começar a
imaginar o seu próprio funeral.
É bom vestir os melhores sapatos,
o melhor terninho apertado, o seu melhor batom e o melhor penteado. Ninguém
quer ir desarrumado ao próprio enterro. Você quer estar perfeito, mas também
insípido. É um evento que só vai acontecer uma vez. Depois disso você muito bem
poderia se matar de verdade, imagina que não importaria mais. Você finge morrer
pra só então morrer de fato. Imagina que nessa hora teria que ser algo
escondido. Se as pessoas souberem que estava vivo e morreu de novo, vão odiar
você.
Então você se imagina escolhendo
um matagal no litoral, desses que tem entre as dunas e as estradas, onde quase
ninguém nunca passa nem perto. Você pega um ônibus até a cidadezinha mais
próxima e vai a pé até lá. Você leva uma garrafa de água e um sanduíche, deus o
livre cometer suicídio desidratado ou com fome. Você quer que a coisa toda saia
como imaginou, e deduz que o sol do litoral vai decompor o seu corpo com
rapidez suficiente pra, na altura que alguma grande construtora comprar aqueles
lotes de mato pra erguer ali um condomínio cinco estrelas de veraneio, você já
não seja mais do que ossos e farrapos presos neles.
Você usa um facão afiado que
comprou numa ferragem na saída da cidade pra abrir caminho pelo matagal. Toma o
cuidado de não deixar que nenhum carro esteja por perto antes de se enfiar no
verde, e de não levar nada que associe aquele futuro monte de ossos ao seu
antigo eu. Você corta mato e desvia de aranhas e escorpiões por uns três
quilômetros. Reveza os braços no uso do facão e imagina que eles já estão mais
inchados com o exercício do que jamais estiveram em anos de academia. Você
escolhe uma pequena clareira e se dá conta de que as formigas vão ajudar no
processo todo. Cada uma delas pode levantar vezes o seu próprio peso, então
basta este mesmo número de vezes a menos de formigas pra dar conta de toda a
pele, carne, fluídos e cartilagens apodrecendo ali. As moscas vão ajudar
também. Você sorri quando imagina que seu abdômen será um berçário fervilhante
de larvas.
Você e seu facão vão se sentar na
terra úmida e constatar que estão sozinhos. Ninguém vai saber quem é você, quem
é esse corpo aqui. Você vai ser a história de terror das crianças do condomínio
de veraneio de luxo. Vai ser a assombração no espelho do banheiro delas. O
objeto que vão usar pra descontar a frustração com a separação dos pais porque
ele estava fodendo com o estagiário da empresa. Vai ser o desenho preocupante
rabiscado com lápis de cor caros constando na ficha psiquiátrica de algum
futuro caso perdido. É o preço pra poder assistir a própria morte, pra
comprovar que sentirão a sua falta. Você imagina que vai valer a pena estar
vivo e se sentir ótimo pra andar entre seus amigos e familiares desolados por
algumas horas, em troca de uma morte dura e solitária, seguida de uma eternidade
de esquecimento.
Porque você vai saber a verdade,
você vai morrer sabendo o que veio depois. Você imagina que quem você realmente
era morreu de fato naquele “acidente”, que este corpo não é mais você. Vai
perceber, de repetente, que sua personalidade transcende o físico, e que ela
era antes de qualquer coisa uma ideia formada por cada pessoa que vai
lembrar de você. Juntas essas ideias vão conceber quem foi essa pessoa, do
que ela gostava, o que detestava, como falava, o que comia e aonde ia. Você
imagina que vai perceber que nunca teve controle sobre quem você foi. Você vai
perceber que no velório as pessoas estavam chorando porque sentiam falta do
invólucro onde podiam projetar a personalidade que elas imaginavam que você tinha.
Vai perceber ainda mais estarrecido que elas choravam porque com a sua morte,
elas tinham uma pessoa a menos a quem tentar deixar igual a elas. Você é menos
uma folha em branco pra elas pintarem com as cores favoritas delas, e isso é
terrível, é desolador e é profundamente triste, então elas choram.
Então você chora, triste porque
não vai poder ser quem queria ser, não vai poder lutar contra aquilo com que
não concordava, não vai poder continuar fazendo o que gostava e evitando o que
não. Você imagina que pela primeira vez vai chorar porque morreu, e percebe que
é a única pessoa realmente triste por isso.
Então você volta. Volta e finge uma história maluca. Você teve saiu de si mesmo como Walter White, você foi sequestrado como Amy Dunne. Ninguém quer ser sequestrado de verdade, mas você imagina
que o suposto trauma será desculpa o suficiente pra que possa agir nos seus próprios
termos, e nunca mais ninguém vai impor suas expectativas sobre você. Você
imagina que vai ser livre e recomeçar do zero, ser uma pessoa totalmente nova, e
que com o tempo seus amigos e familiares vão detestar esse novo você, e desejar
intimamente que tivesse permanecido morto. Você reflete o ego deles e isso
machuca os olhos. Agora você começa a pensar em morrer de verdade de novo, não
importa que ninguém chore dessa vez, você imagina que não vai querer saber
disso mais, porque descobriu uma fonte de alimento muito mais nutritiva para o
seu ego. Ele mesmo. Viver feliz consigo mesmo é a última opção de qualquer um.
Porque ninguém quer ser feliz de verdade."
- Burt Bugs é um personagem fictício que tem empregos fictícios tais quais operador de câmera, quadrinista, bailarino sonâmbulo e psicopata em potencial. Ele foi criado durante uma overdose de xarope pra tosse e Coca-Cola durante o inverno de 2005. Enjoy.
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