sexta-feira, 28 de junho de 2019

CRÍTICA: TOY STORY 4


Parecia que a jornada dos brinquedos do Andy tinha ganho um ponto final perfeito em Toy Story 3. O desfecho daquele filme não apenas honrou o arco percorrido por Woody, Buzz, Jessie e os demais personagens desse universo, como também serviu de afago para o público ao prometer que, mesmo com crianças diferentes, eles estariam sempre juntos protagonizando as mais criativas brincadeiras, seja num quarto de paredes azuis ou num jardim por aí.


Ora, como fomos inocentes.


Ao refletir sobre temas complexos como a busca pela consciência de quem somos nós (Buzz), o reconhecimento de nossas capacidades individuais (Buzz e Woody), sobre lealdade, dedicação, abandono (Jessie) e até mesmo sobre medos primordiais como o de ser substituído (Woody e Lotso) e a aceitação da morte como parte da vida (todos os brinquedos ao final de Toy Story 3), as três relíquias produzidas pela Pixar anteriormente eram filmes tematicamente tão complexos e adultos, quanto eram coloridos e engraçados. 


Portanto, com a dura tarefa de sair da sombra dos seus antecessores e ainda justificar a própria existência, Toy Story 4 surpreende por encontrar temas ainda mais complicados e doloridos para explorar, ao mesmo tempo em que concede a esses personagens tão queridos um final que não sabíamos que eles precisavam. E embora não seja tão “redondinho” quanto os demais, o quarto capítulo faz com que a franquia, em retrospecto, pareça inacabada sem esse destino maduro que reservou para Woody e sua turma, enriquecendo ainda mais suas jornadas ao confrontá-los com o desafio de encontrar independência, amor próprio e a coragem para fazer sacrifícios não só por quem eles amam, mas principalmente por si mesmos.



A trama começa nos levando para um ponto entre os eventos do segundo e do terceiro longa-metragem para explicar a ausência da boneca de porcelana Betty, uma paixão de Woody desde o filme de estreia. Anos depois, quando o cowboy de pano já está sob a posse da pequena Bonnie, os dois se reencontram numa tentativa de resgatar Garfinho, um brinquedo feito pela menina a partir de coisas encontradas no lixo - e que, por isso mesmo, sofre de um terrível complexo de inferioridade.


Inseguro e sempre correndo para a lixeira mais próxima, Garfinho acredita que seu papel na existência é descartável, e por isso sua obsessão com a autodestruição acaba refletindo, de maneira nada sutil, a situação de uma pessoa vítima de severas crises de depressão. E nesse ponto o filme bate diversas vezes na tecla da importância que tem o apoio de amigos e entes queridos, ilustrando isso através da dedicação de Woody para manter vivo o novo amigo da Bonnie. Agora, menos óbvio e mais interessante, é notar como isso acaba dizendo muito sobre o cowboy. 




Você é igual a mim, lixo”, é a conclusão de Garfinho a Woody após ouvir sua triste história de vida. Afinal, o boneco passou de uma criança para outra sempre fugindo daquilo que ele mais temia: perder o amor incondicional oferecido por seus pequenos donos. Com o raciocínio infantil e sem jamais ter conhecido o carinho de uma criança antes, Garfinho logo deduz aquilo que parece óbvio: será que Woody, em todos esses anos, foi leal aos seus donos e amigos, ou será que suas motivações eram um pouco menos nobres e ele apenas tinha medo de se tornar um brinquedo perdido? Quanto das atitudes de Woody foram imbuídas de coragem e dedicação e quanto delas, na verdade, foram decisões movidas pelo horror frente ao vazio e a uma incapacidade de encontrar em si mesmo a razão para continuar existindo?


Ao levantar esse questionamento sobre o herói, Toy Story 4 se converte facilmente no mais ambicioso dos quatro filmes, ao menos no que diz respeito à profundidade de seus temas, ao mesmo tempo em que também se configura naquele que é o mais sombrio deles, já que oferece essa faceta mais imperfeita e bem menos idealizada do protagonista. O que, em última análise, é exatamente o que torna a jornada do boneco tão fascinante nesse quarto capítulo. A obsessão de Woody para salvar o Garfinho, como passa a ficar claro com o avançar da trama, tem mais a ver com resgatar a si mesmo. E se o cowboy chega a dizer isso com todas as letras em determinado momento (“por que está fazendo isso?”, “porque é o que resta pra eu fazer!”), o que fica nas entrelinhas é o motivo: Woody provavelmente sente a necessidade de salvar e manter o Garfinho vivo porque, mesmo que não admita para si mesmo, ele sabe que se não tiver uma criança para amá-lo, ele se sentirá exatamente como o novo brinquedo da Bonnie: descartável, sem propósito. Lixo.


Muito apropriado, então, que a conversa crucial entre os dois personagens aconteça à beira de uma estrada vazia, à noite. Pois a imagem que traz dois seres diminutos percorrendo uma imensidão de asfalto evoca o arco do próprio boneco de pano, que atravessa os anos impotente diante de um mundo muito maior e fora de seu controle. E uma vez que, a essa altura, já estabelecemos que Woody e Garfinho enfrentam os mesmos dilemas, é perfeito que a cena termine com ambos encontrando conforto na companhia um do outro, porque isso ilustra a solução oferecida pelo filme à solidão enfrentada por ambos, que é exercitar um olhar mais gentil e amoroso para si mesmo, mesmo que (e especialmente se) o nosso “eu” tem como companheiras de viagem a dor e a perda.




E embora os demais personagens sejam deixados mais de lado dessa vez em comparação a Woody, que assume de vez o protagonismo da história, de uma maneira ou outra vários dos outros brinquedos também são confrontados com problemas similares ao do cowboy. Duke Caboom, por exemplo, ainda é apegado a uma criança que o descartou quando percebeu que ele não cumpria exatamente as funções do comercial de TV, enquanto Gabi Gabi insiste na ideia de ser amada por uma menininha que sempre visita o antiquário onde ela mora, mesmo que esse amor custe à boneca ter que fazer “melhorias” no seu próprio corpo. Com esse universo de personagens traumatizados, Toy Story 4 vai fortalecendo a costura de seus temas com segurança. Afinal, falamos de figuras que, rejeitadas ou carentes, encontram grande dificuldade para descobrir suas próprias virtudes, como se essas só existissem enquanto podem desfrutar do amor de outra pessoa.


Ora, o que esse quarto capítulo da franquia está dizendo não é que os brinquedos não precisam de amor de outros ou que eles devam parar de buscar o carinho das crianças. Não, Toy Story 4 apenas busca ilustrar que nem sempre nós, seres-humanos, somos o que esperam da gente, e ninguém deveria depender exclusivamente do amor de um único alguém para manter a própria felicidade, seu propósito e seus planos. Pois, às vezes, a coisa mais nobre e leal que um brinquedo pode fazer é confiar que a sua criança vai ficar bem, e que eles podem encontrar um motivo para existir em qualquer outro lugar, inclusive, em si mesmos. E esse era o aprendizado que faltava a Woody, essa era a lição sem a qual, agora, a jornada desses brinquedos fica incompleta. Se ao final de Toy Story 3 eu estava feliz de saber que todos eles ESTAVAM bem naquele momento, ao sair da sessão de Toy Story 4 eu me sentia em paz, pois agora eu sei que, aconteçam coisas ruins ou não, eles VÃO ficar bem.



Pois então... Recheado ainda de sequências inventivas, que continuam a usar o mundo em miniatura dos brinquedos para criar cenários e possibilidades inusitadas de ação (a cena que envolve um gato é especialmente absurda e, por isso mesmo, divertidíssima), o filme ainda retifica o brilhantismo dos realizadores da Pixar ao conceber um design de produção que impressiona não só pelo número incrível de detalhes (o antiquário é um prato cheio de referências aos outros longas e curtas do estúdio), como também pela altíssima qualidade técnica da animação. O fotorrealismo das texturas chegou a tal nível que na cena inicial, que acontece sob a chuva, jurei que os animadores tinham colocado os personagens criados por computação gráfica em cima de filmagens de cenários reais.

Além disso, não só na cena à beira da estrada, o simbolismo se faz presente em diversos outros momentos chave da produção - o meu favorito é aquele que traz Woody retirando Garfinho, literalmente um recém-nascido, de dentro da abertura na mochila de Bonnie, como se realizasse o parto de um bebê. O que já me incomoda um pouco é a necessidade que o filme tem de encontrar um papel para o Buzz. Com a presença forçada em cena, o brinquedo espacial parece regredir nos aprendizados feitos anteriormente e ainda é relegado a uma única piadinha que soa repetitiva já na primeira vez que é introduzida - o que não dá para dizer de maneira alguma do Patinho e do Coelhinho de pelúcia que passam a acompanhá-lo a partir de certo ponto na aventura, somando-se como excelentes adições à galeria já adorável de personagens da franquia.

Com cara de epílogo, Toy Story 4 não esconde que existe apenas para dar encaminhamentos para Woody e, assim, finalizar de uma vez por todas o seu arco. Que faça isso com a maestria típica dos melhores trabalhos da Pixar, apenas faz honrar os três excepcionais filmes que o precedem. Quem sabe o estúdio ainda queira revisitar Buzz, Jessie e até mesmo o cowboy de pano mais uma vez no futuro. Mas se decidir não fazer isso, vou poder continuar enchendo a boca para dizer que os brinquedos do Andy ganharam um final perfeito - justamente porque, agora, eles entendem que nunca foram do Andy, e nem da Bonnie. Com criança ou sem, a felicidade, a jornada e o destino de cada um desses pequenos e coloridos seres não está nas mãos de ninguém mais, senão deles mesmos.

Nota: 9/10



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