terça-feira, 21 de janeiro de 2020

CRÍTICA: ADORÁVEIS MULHERES


Assistindo Adoráveis Mulheres, cheguei aos créditos finais com vontade de procurar uma casa vizinha a das irmãs March e mudar para lá. Aliás, pro inferno com essa etiqueta toda, queria era morar junto com elas, dividir seus atritos, fazer parte do seu clube de teatro, ansiar pelas cartas do pai, encenar as peças de Jo, posar para as pinturas de Amy, coser roupas com Meg e aprender piano com Beth. Claro, provavelmente eu digo isso porque sou homem em um universo em que homens sempre foram privilegiados, e desejar cegamente fazer parte do companheirismo, da admiração, do carinho e da dedicação que as mulheres March partilham entre si, é ignorar que essas características resultam da necessidade e não apenas do prazer. À frente de suas ambições pessoais, de seus amores e perdas, as March colocam umas as outras como prioridade, para que, com essa rede de apoio, possam sobreviver e prosperar em um mundo que não as enxerga e nem lhes dá direito a ser nada além de futuras esposas e mães dos homens de amanhã.

Recontando a história escrita por Louisa May Alcott, já transformada em filme ao menos nove vezes antes, a cineasta Greta Gerwig assume a direção e a adaptação do aclamado Little Women (livro publicado nos EUA em 1868) trazendo muito dos contrastes entre a rebeldia e a sensibilidade com que impregnou Lady Bird, seu projeto anterior. E em parte esse mérito é também de Saoirse Ronan, que retoma parceria com a diretora depois de encarnar a protagonista daquele filme, Christine “Lady Bird” MacPherson, agora assumindo a personalidade forte de Jo March, uma moça determinada a não seguir as imposições da sua época - ao invés de casar e ter filhos, ela pretende escrever livros, contos e peças.

Inquieta, conhecemos Jo em um período sombrio e difícil de sua vida, algo que já pode ser deduzido pela iluminação cinzenta e as cores dessaturadas com que Gerwig e o diretor de fotografia Yorick Le Saux envolvem a personagem enquanto ela cruza Nova York em busca de uma editora que aceite publicar seus escritos. Porém, quando encontra um editor interessado (Tracy Letts, que também esteve em Lady Bird), ela se recusa a admitir que é a autora dos contos que traz consigo. Sua insegurança com a própria escrita, em contraste com a certeza de que nasceu para fazer isso e não para seguir os papéis destinados às mulheres nesse meio do século XIX, sintetiza o conflito desenhado por Gerwig a partir do livro de Alcott - Jo possui ímpetos românticos e mesmo o desejo de cuidar da sua família, mas também teme que demonstrar isso seria ceder às pressões da época e abandonar a autenticidade que lhe permite lutar por mais direitos e autonomia.

Uma força traduzida pelo modo como Saoirse Ronan carrega a personagem com um cenho fechado e modos bruscos que fogem da elegância quase bailarina com que, por exemplo, Florence Pugh e Emma Watson vivem respectivamente Amy e Meg. E se Gerwig faz um trabalho admirável permitindo que as atrizes falem uma por cima das outras, aderindo naturalidade aos diálogos através do caos que parece se instaurar quando quatro adolescentes decidem discutir juntas por bobagens dentro de casa, Ronan completa sua performance ao se deslocar dentro de cena sempre com uma determinação inquestionável, como no momento em que, depois de ter alguns de seus escritos destruídos por uma das irmãs, ela levanta sem pestanejar e escolhe um lugar afastado para sentar à mesa.

Dividido entre passado e presente, a narrativa de Adoráveis Mulheres alterna entre presente, quando Jo tenta ganhar a vida como escritora e professora em Nova York, e passado, durante um período em que ela e as irmãs aguardam o retorno do pai (Bob Odenkirk), que está lutando na Guerra da Secessão, morando sozinhas sob os cuidados de sua mãe, Marmee (Laura Dern, quase angelical), uma mulher gentil e carinhosa cujo cuidado e atenção com as filhas se reflete na paleta de cores quentes e fortes trazidas por Gerwig e Le Saux para esse tempo da história. Contrastando com o futuro cinzento de Jo, esse passado caloroso é embalado pela trilha de Alexandre Desplat em tons graciosos que abusam do piano e do violino para se equilibrar entre a sensibilidade e a empolgação com que a diretora busca retratar as aventuras amorosas e as desavenças juvenis das irmãs March.

Em outro caso, uma abordagem tão bonitinha poderia soar ingênua e até prejudicial para os temas trazidos pelo projeto, já que arrisca passar a ideia de que, apesar das desigualdades de direitos impostas a essas mulheres, nada poderia abalar a vida poética e carismática em tons de sépia das March. Porém, aqui, ao comparar passado e presente, aos poucos Gerwig vai inteligentemente sugerindo que esse retrato se trata de uma idealização nostálgica que Jo faz daquele tempo em que conviveu com as irmãs, quando sua única preocupação era terminar a próxima peça de teatro caseira que iriam apresentar para a família e amigos.

Portanto, se ao retratar esse passado Gerwig faz questão de colocar no mesmo enquadramento tanto Beth (Eliza Scanlen) tocando piano em uma sala de música, quanto o Senhor Laurence (Chris Cooper) sentado nas escadarias e discretamente ouvindo a moça tocar no outro cômodo, ilustrando de maneira econômica o significado profundo que aquele momento possui para ambos, no presente a diretora vai trazer Beth e Jo abraçadas em uma praia deserta, rodeadas pelo vento e pela areia, evocando dessa vez a melancolia que acompanha aquele encontro. Seguindo essa lógica, se no passado os romances são abordados por Greta com romantismo (o personagem de Timothée Chalamet para e dá uma última olhada em Jo pela janela da casa, o que ainda é usado como uma transição eficiente entre cenas), no presente um pedido de casamento indesejado é filmado à distância pela diretora, quase como se a mesma tivesse vergonha de mostrá-lo de perto, o que, se não é nenhuma ideia genial, ao menos exprime de forma certeira o sentimento pretendido pela cena.

Assim, ao passo em que se apropria da trajetória das irmãs March para ilustrar como a luta das mulheres por espaço, reconhecimento e direitos igualitários não mudou muito nos últimos 200 anos, Gerwig também não permite que seu discurso soe fora de lugar, como se colocasse palavras modernas na boca de personagens que teriam vivido há quase dois séculos - e é aí que se torna importante que mostre o "presente" de Jo como um lugar cinzento, cheio de sonhos alquebrados e esperanças juvenis perdidas, indicando que mesmo aquelas personagens repletas de palavras e objetivos progressistas, sejam elas sonhadoras (como Jo e Meg) ou pragmáticas (como Beth e Amy), ainda sim eram reféns de uma época em que possuíam pouca ou nenhuma voz.

Por isso mesmo, o desfecho ambíguo com que Greta decide encerrar seu filme acaba soando como um presente pessoal para Jo, ao fazer uma espécie de concessão aos seus desejos e anseios - muito diferente da intenção por trás do final ambíguo muito similar que a personagem de Saoirse Ronan encontrava em Desejo e Reparação, que tinha mais o intento de punir a protagonista e, claro, o espectador que a acompanhara até ali.

E se antes eu desejava poder morar junto com as irmãs March, agora reconheço iria preferir que elas pudesses ser felizes e leves assim fora de uma idealização hollywoodiana também - e então me lembro que, como homem, e portanto parte do problema, tenho um papel que me cabe para tornar possível que o passado nostálgico na cabeça de Jo lá na tela do cinema, seja um futuro bem real e palpável aqui do lado de fora dela.


Nota: 8/10

Nenhum comentário:

Postar um comentário