terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O VOO




     Houve uma vez, quando era criança, que meu pai viajou por duas semanas para São Paulo a trabalho. Comum, não? Pois, para uma criança que via seu pai todos os dias, a noção de duas semanas era a mesma de uma década. Embora nos falássemos pelo telefone, e dia após dia, tivesse sinais de sua distante existência, voltar a velo em carne e osso, trazido de volta por um avião (não por acaso o cito aqui), foi o que finalmente satisfez a minha saudade. Dito isso, foi, em maior ou menor grau, este sentimento que me acolheu enquanto absorvia este O Voo, que marca a volta de Robert Zemeckis a direção de longas live-action, já que nos últimos doze anos, o cineasta havia se dedicado principalmente a animações (ainda que fossem animações live-action). E mesmo que esta fase lhe tenha rendido o ótimo O Expresso Polar, o bom A Lenda de Beowulf e o mediano e carismático Os Fantasmas de Scrooge, é um prazer poder revê-lo exercitar as limitações de uma câmera de verdade num espaço físico real, principalmente quando a usa para captar performances e narrativas tão cativantes quanto as presentes aqui. E um aviso de "coloquem os seus cintos, o filme vai começar" não soaria deslocado.



     Whip Whitaker (Denzel Washington) é um piloto que acaba salvando dezenas de vidas ao conduzir uma manobra arriscada durante uma pane em pleno voo. Alcoólatra, divorciado e irreverente, Whip começa a enfrentar o processo pós-acidente, que envolve uma minuciosa investigação e um eventual julgamento onde as causas do acidente serão averiguadas, sendo uma das hipóteses, a sua possível embriaguez. Enquanto isso, o piloto começa a se aprofundar em uma estranha relação com a viciada em heroína Nicole (Kelly Reilly), ao passo em que, cada vez mais, se entrega aos seus próprios vícios.


     Sabendo contar uma história também através do posicionamento de sua câmera, Zemeckis entrega aqui enquadramentos elegantes e funcionais, colocando Whip quase sempre em close no centro de sua tela de grande scopo, ressaltando assim o egocentrismo do personagem que chega em certo momento a afirmar que somente ele poderia ter feito a manobra que fez, equiparando-se a um deus. Assim o diretor também faz ao criar um curioso quadro que feito em uma escadaria, coloca três personagens em três níveis diferentes, estando, claro, Washington naquele mais próximo da câmera e, portanto, parecendo muito maior que os outros dois. Mais para o final, a estratégia é repetida quando vemos o rosto enorme de Whip em um telão enquanto este responde as perguntas da investigadora Ellen Block (Melissa Leo), diminuta dentro do plano em comparação ao rosto do piloto. E mesmo o som em determinado momento ajuda a estabelecer a visão egoísta do personagem, que ao assistir as notícias na televisão sobre o acidente as fatalidades que este havia causado só consegue ouvir o "beep" da máquina hospitalar ao seu lado que indica que seu coração continua a bater, deixando todo e qualquer outro som, inclusive os das notícias, mudos ao seu redor.

(Reparem no número de enquadramentos que trazem Whip no centro, sempre valorizando o seu rosto)

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     Mas esses méritos técnicos que citei acima, claramente planejados, são adendos que compõe de forma orgânica o protagonista do longa. O cerne deste indivíduo, porém, reside na performance de Denzel Washington, que através de uma fala balbuciada e de um olhar sonolento revela em Whip um homem distante, desistente e explosivo, mas nem sempre pela raiva, basta notar o desespero afetivo que demonstra ao tentar abraçar carinhosamente o filho enquanto este se debate de raiva para perceber porque o piloto claramente prefere o entorpecimento provido pelo álcool a realidade que o cerca. E neste sentido, é eficiente o esforço que o roteiro de John Gatins faz para excluir da narrativa qualquer momento de lamentação pelas vítimas fatais do acidente, afastando, assim como faz com o próprio Whip, o espectador do peso daquelas perdas.


     Aliás, fazer seu público navegar de maneira sutil ou não nas emoções que pretende transmitir parece ser uma habilidade totalmente dentro do controle de Zemeckis. E se em certo momento é a raiva do personagem que ele quer ressaltar, um corte brusco para um carro passando violentamente sobre uma poça de lama é o recurso escolhido. Ou se enfatizar um momento divertido entre "amigos" é o objetivo, dentro de um elevador ouvimos a melodia de With a Little Help From My Friends dos Beatles tocar para o grupo encabeçado por Whip. Porém, menos sutil e muito mais eficiente é a fantástica cena do incidente aéreo que é conduzida pelo diretor com uma precisão dramática digna do cineasta que ao fim de cada um dos De Volta Para o Futuro fez seu espectador grudar na cadeira de tensão.


     E graças a um roteiro bem construído, é possível se extrair um pouco mais ainda de O Voo. A própria questão do egocentrismo de Whip é tratada do início ao fim. Afinal, o piloto muito bem poderia se enxergar como um mártir, por que não, o único que poderia ter feito o que fez. O fato de aterrissar seu avião sobre uma igreja, de se comparar a um ser superior na maior parte do tempo e de ao final, admitindo seus erros, agradecer a "Deus" por ter sido capaz de fazê-lo, é no mínimo curioso, assim como comparar que o formato do próprio avião lembra o de uma cruz. Mas isso seria ir muito adiante? Talvez uma teoria mais plausível sobre o filme fosse aquela sobre o protagonista se recusar a tratar-se sobre seu alcoolismo de qualquer maneira que seja, mas enfim conseguir a força necessária para admitir em voz alta o problema durante seu julgamento, quando então à vontade, ele diz "Eu sou um alcoólatra", fazendo do tribunal o seu próprio AA, e assim provando mais uma vez, que mesmo ao se redimir, Whip continua a ser o homem egoísta e prepotente que sempre foi, pois para que ele fizesse o que devia ser feito, o ambiente a sua volta é que teve de se adaptar a ele e não ao contrário.


     É por essas pequenas sutilezas, que mesmo possuindo o seu "clímax" de ação ainda no primeiro ato, é que O Voo continua tão cativante e irrepreensível nos dois seguintes, se consagrando como um grande e aplaudível retorno de Robert Zemeckis para os longas live-action. Esperemos somente que esta tenha sido apenas a decolagem desta nova fase de sua carreira.


NOTA: 10/10




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