Primeiramente, não li o livro de Jack Kerouac
que deu origem ao longa em questão, portanto, minha opinião é estritamente
baseada naquilo que vi em tela. E se o filme se manteve fiel ou não ao texto
original, se as adaptações feitas são justificáveis ou mesmo se foram boas ou
não para o resultado final, não sei dizer. Tão pouco discursarei sobre o estilo
de Kerouac e se Walter Salles foi feliz ao transpô-lo para a grande tela, ou
seja, minha crítica se por uma lado será ignorante quanto às origens da obra,
por outro estará livre de preconceitos com a mesma. Dito isso, revelo a vocês
que ao trazer um de seus temas mais recorrentes (o povo e a estrada), Salles entrega um
filme que nos torna tão passivos àquelas andanças vistas em tela quanto seu
personagem principal.
Todos que conhecem o magnético Dean Moriarty (Garrett Hedlund) de alguma
maneira são atraídos pelo estilo de vida descompromissado, promíscuo e subexistente
do "cowboy". É o que acontece ao jovem Sal Paradise (Sam Riley) que
passa a seguir Dean pela estrada, indo e voltando de Nova York a Denver,
Louisiana e a outros demais destinos. E entre, mulheres, voltarem para casa, drogas e as próprias viagens,
passamos a conhecer a vida de Sal através de seus encontros frequentes com
Dean, onde sempre atraem para si o mais variado tipo de figuras esquecidas
de um mundo que vive acima da sarjeta.
O homossexualismo, ou a relação homoafetiva, é algo bastante
conotado e explorado durante a duração do longa. E não, não me refiro só ao
óbvio e bem assumido interesse de Carlo (Tom Sturridge) por Dean, mas a própria
relação entre Sal e este último. Me crucifiquem se quiserem, mas as indicações
estão lá, e não que com isso eu esteja dizendo que na verdade a amizade entre
os dois era algo a mais. Não, apenas estou dizendo que esta amizade é tratada
de maneira a se criar um paralelo com uma relação homoafetiva. Veja, numa
relação assim, as pessoas costumam separar (no que se trata do sexo) um dos
integrantes do casal como ativo e o outro como passivo. Agora observem a
relação Sal/Dean. Sal não objeta nas aventuras do grupo, ele as vive, é
conduzido pelo grupo, que por sua vez é encabeçado por Dean. Ele apenas observa
e anota o que vivencia, e muitas vezes, experimenta através de Dean os prazeres
e desgostos de uma vida tão desregrada. Por exemplo, há uma cena em que Marylou
(Kristen Stewart) masturba os dois ao mesmo tempo dentro de um carro em
movimento. Nesta cena, desde a ideia de ficarem nus até a masturbação
imprudente, nada vem de Sal e em nada ele se opõe. E pra reforçar, Marylou é a
amante de Dean, logo um prazer dado a este é experimentado por Sal como uma
espécie de "recompensa" por estar ali como um espectador da vida dos
dois. Assim Sal acaba sendo um passivo da vida de Dean, um espectador como nós.
E talvez isto reforce o magnetismo do rapaz, que conseguiu atrair de maneira
tão forte até mesmo alguém com tanto conhecimento e inteligência como
Sal.
E neste quesito, Sam Riley interpreta com a introspecção certa um
protagonista que se interessa mais em viver a vida do amigo do que em viver a
sua própria, uma das coias que, aliás, torna difícil distinguir o personagem
principal, já que devido ao grande interesse de Sal na vida de Dean, saímos do
filme com mais lembranças do último na cabeça do que do primeiro. Riley não
parece atribuir muitas alterações emocionais a Sal, o mantém um personagem
calmo e que reage moderadamente ao ambiente e as pessoas nele. O que acaba
contrastando com Garrett Hedlund, que se em Tron:
o Legado trazia ao público um
herói sem muito carisma ou expressão, aqui entrega um Dean que pode assustar
por sua imprevisibilidade e também tocar por mostrar ocasionais momentos de
humanidade, como ao derramar lágrimas desabafando com Sal sobre si mesmo.
"Eu não sei por que faço estas coisas idiotas" diz ele logo após
contar uma de suas aventuras sexuais. Dando energia ao personagem e
justificando assim a estranha atração que este gera, Hedlund cria um Dean cheio
de contrastes. E se vemos o personagem conduzir um carro pelo estacionamento
onde trabalha com rapidez e precisão no início do longa, não deixa de ser
interessante se observar a calma e a depressão presentes nos mesmos movimentos
mais tarde no filme, indicando seu crescente desprezo pela rotina. Assim, Dean
é o ativo, não só na relação com Sal, mas com todos os outros personagens. Ele
literalmente adentra a vida destes e deixa sua marca. Repare como ficamos
sabendo, por exemplo, que Ed Dunkel (Danny Morgan) deixou a esposa na Louisiana
para seguir Dean estrada a fora depois que este cruzou seu caminho. Claro que
há o ápice em que Salles ilustra está relação do personagem com o mundo a sua
volta ao mostrar Dean transando com um homem enquanto Sal observa furtivamente
-sempre um espectador, lembrem, vivendo através de Dean suas experiências.
E para dar rosto a estas inúmeras pessoas a quem o personagem afeta
tanto, temos desde a talentosa Kirsten Dunst, apagada em um papel mais sentido
do que explorado, o da esposa real de Dean, que desiste e volta com o mesmo
várias vezes. Até Kristen Stewart que parece não largar de seu trejeito de
morder os lábios mesmo em meio a uma cena de sexo intenso, ainda que ganhe pontos por não lembrar em nada sua famosa Bella. Passam aí no meio Viggo Mortensen (ótimo!) como o erudito Bull
Lee, Steve Buscemi (o eterno Mr. Pink) em ótima ponta, entre outros como Amy
Adams, Alice Braga e Terence Howard. O problema é, com tantos rostos e
acontecimentos que cada um deles representa, o filme acaba apresentando uma de
suas grandes falhas. O passar dos anos. A montagem de François Gédigier
não consegue dar ritmo aos saltos entre um acontecimento e outro, deixando certos
momentos com um tom horrivelmente episódico. E muito
disso vem também da pouca mudança física que vemos nos personagens no decorrer dos
anos que se passam, ou na evolução praticamente nula de cada um -e não estou
ressaltando isso como um ponto negativo do filme. O fato é que se não fossem os
constantes e discretos letreiros avisando a data ou local onde a cena está se
passando, dificilmente diríamos que se passaram tantos anos entre o começo do
longa e sua conclusão. Letreiros estes que poderiam soar como um artifício
pobre do roteiro de Jose Rivera acabam sendo na verdade úteis, não só pela
ineficiência do resto do filme em transitar de um momento a
outro, mas também para poupar que isso fosse embutido em diálogos que acabariam
sendo necessários para o entendimento do espectador, que soariam terrivelmente artificiais.
Aproveitando a jornada dos protagonistas, Salles traz de volta um
dos fatores que destacaram seu trabalho no aclamado Central do Brasil.
A estética de um povo que sobrevive de empregos relegados à parte mais
miserável da população. Assim é impossível ver Sal e os cultivadores de algodão
e não lembrar a dura rotina da família de Abril
Despedaçado fazendo rapadura
sob um sol escaldante, ou dos trabalhadores se empilhando dentro dos vagões no
próprio Central do Brasil.
Algo que Salles parece gostar de ressaltar em cada um de seus projetos, seja
nos povos da América Latina em Diários
de Motocicleta, seja na rotina dos garotos pobres de Linha de Passe. E em todos eles
o diretor é auxiliado por uma direção de arte incrível, que parecendo estar
sempre motivada a retirar qualquer traço de glamour de seus personagens os
veste e cerca de ambientes sujos, úmidos ou poeirentos. Aqui não é diferente, e
desafio a você assistir a cena na Louisiana e não sentir uma vontade de passar
uma água no corpo, mesma sensação que evocavam as cenas no sertão aberto em Abril Despedaçado. Já por outro
lado é interessante notar o contraste no uso da fotografia. Se em Central do Brasil o diretor mantinha quadros estáveis,
quase sempre parados e em uma razão de aspecto muito pequena, é interessante
notar que em seus projetos sucessores ele tenha aberto o scopo de sua filmagem
e tirado a câmera do tripé e colocado no ombro do fotógrafo, já que pelo menos
aqui, a câmera de mão impera. E mesmo assim Salles e seu fotógrafo, Eric
Gautier, não tornam a experiência de assistir seu filme algo incômodo (como
acontecia recentemente em Jogos Vorazes que adota a mesma movimentação
fotográfica), usando a instabilidade de seus quadros para representar nada mais
do que a instabilidade de seus próprios personagens, nunca deixando de
constatar na imagem as belas paisagens por onde passam.
Trazendo à tona as raízes de uma subexistência ao compor para a
trilha algo como um Jazz tão alucinado quanto Dean em seus devaneios sexuais,
Gustavo Santaolalla finaliza a experiência de se assistir Na Estrada ao evocar este espírito libertador da
aventura, do não saber e nem se importar com as consequências, um sentimento
que o filme e seus interessantíssimos personagens trazem ao público com
eficiência. E mesmo sendo difícil para o espectador aceitar Dean como uma
figura tão magnética a ponto de nos fazer segui-lo estrada a fora - aliás, para
os olhos dos demais que não sejam os personagens do filme, ele deve soar um
babaca, é inegável que o personagem seja cativante o suficiente para nos
prender por pouco mais de duas horas enquanto acompanhamos suas imprudências,
tão fascinados e tão passivos a elas quanto Sal.
NOTA: 8/10
Concordo contigo em o Sal por vezes ser o passivo da história mas não acredito nessa relação homossexual com o Dean que tu escreveu.
ResponderExcluirOn The Road para mim é a maior decepção do ano. Eu acreditava que o Walter Salles poderia nos trazer uma grande produção e me deparo com as quase 2h15 mais intermináveis da minha vida. Nem mesmo a talentosa Kirsten Stewart conseguiu me prender e nem o Garrett Hedlund que se saiu super bem em Country Song, não consegui ver ele como Dean.
ResponderExcluirAdorei ver o filme através dos seus olhos e percepções, me fez enxergar coisas que até então não tinha percebido. Talvez, lendo a tua resenha, tenha achado o filme um pouco mais profundo e menos sem sentido do que antes. Fizestes excelentes comparações com outras produções e adorei a colocação que fizestes sobre Sal como um ser passivo na história. O engraçado é que se formos analisar, principalmente num ambiente escolar, o que mais temos por aí são Deans e Sals, em que um deles é Dean, o porra-louca, inconsequente, que só quer saber de curtir a vida, mas que ao mesmo tempo se sente extremamente perdido, e por causa disso, quer viver tudo ao mesmo tempo e intensamente, e mtos Sals, que ficam fascinados pela forma de viver que um Dean tem, pela liberdade dele, pela sua coragem e que, por causa disso, acabam vivendo a vida dele, de forma passiva, quase como seres amorfos, sendo levados sem rumo, sem destino, magnetizados por ele. Conheci mtos Deans e Sals na vida, e os Deans realmente são seres apaixonantes, mas que numa altura da vida, se esgotam, se tornam superficiais e fúteis e percebemos que não há mais lugar para eles na nossa vida. Acredito que foi isso que Sal percebeu no final, quando decidiu optar por viver a sua vida ao invés de continuar vivendo a vida de Dean, na cena em que ele não fica com o amigo quando este nitidamente está precisando de companhia. Bjuss
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