sexta-feira, 13 de julho de 2012

NA ESTRADA




     Primeiramente, não li o livro de Jack Kerouac que deu origem ao longa em questão, portanto, minha opinião é estritamente baseada naquilo que vi em tela. E se o filme se manteve fiel ou não ao texto original, se as adaptações feitas são justificáveis ou mesmo se foram boas ou não para o resultado final, não sei dizer. Tão pouco discursarei sobre o estilo de Kerouac e se Walter Salles foi feliz ao transpô-lo para a grande tela, ou seja, minha crítica se por uma lado será ignorante quanto às origens da obra, por outro estará livre de preconceitos com a mesma. Dito isso, revelo a vocês que ao trazer um de seus temas mais recorrentes (o povo e a estrada), Salles entrega um filme que nos torna tão passivos àquelas andanças vistas em tela quanto seu personagem principal.



     Todos que conhecem o magnético Dean Moriarty (Garrett Hedlund) de alguma maneira são atraídos pelo estilo de vida descompromissado, promíscuo e subexistente do "cowboy". É o que acontece ao jovem Sal Paradise (Sam Riley) que passa a seguir Dean pela estrada, indo e voltando de Nova York a Denver, Louisiana e a outros demais destinos. E entre, mulheres, voltarem para casa, drogas e as próprias viagens, passamos a conhecer a vida de Sal através de seus encontros frequentes com Dean, onde sempre atraem para si o mais variado tipo de figuras esquecidas de um mundo que vive acima da sarjeta.


      O homossexualismo, ou a relação homoafetiva, é algo bastante conotado e explorado durante a duração do longa. E não, não me refiro só ao óbvio e bem assumido interesse de Carlo (Tom Sturridge) por Dean, mas a própria relação entre Sal e este último. Me crucifiquem se quiserem, mas as indicações estão lá, e não que com isso eu esteja dizendo que na verdade a amizade entre os dois era algo a mais. Não, apenas estou dizendo que esta amizade é tratada de maneira a se criar um paralelo com uma relação homoafetiva. Veja, numa relação assim, as pessoas costumam separar (no que se trata do sexo) um dos integrantes do casal como ativo e o outro como passivo. Agora observem a relação Sal/Dean. Sal não objeta nas aventuras do grupo, ele as vive, é conduzido pelo grupo, que por sua vez é encabeçado por Dean. Ele apenas observa e anota o que vivencia, e muitas vezes, experimenta através de Dean os prazeres e desgostos de uma vida tão desregrada. Por exemplo, há uma cena em que Marylou (Kristen Stewart) masturba os dois ao mesmo tempo dentro de um carro em movimento. Nesta cena, desde a ideia de ficarem nus até a masturbação imprudente, nada vem de Sal e em nada ele se opõe. E pra reforçar, Marylou é a amante de Dean, logo um prazer dado a este é experimentado por Sal como uma espécie de "recompensa" por estar ali como um espectador da vida dos dois. Assim Sal acaba sendo um passivo da vida de Dean, um espectador como nós. E talvez isto reforce o magnetismo do rapaz, que conseguiu atrair de maneira tão forte até mesmo alguém com tanto conhecimento e inteligência como Sal.


     E neste quesito, Sam Riley interpreta com a introspecção certa um protagonista que se interessa mais em viver a vida do amigo do que em viver a sua própria, uma das coias que, aliás, torna difícil distinguir o personagem principal, já que devido ao grande interesse de Sal na vida de Dean, saímos do filme com mais lembranças do último na cabeça do que do primeiro. Riley não parece atribuir muitas alterações emocionais a Sal, o mantém um personagem calmo e que reage moderadamente ao ambiente e as pessoas nele. O que acaba contrastando com Garrett Hedlund, que se em Tron: o Legado trazia ao público um herói sem muito carisma ou expressão, aqui entrega um Dean que pode assustar por sua imprevisibilidade e também tocar por mostrar ocasionais momentos de humanidade, como ao derramar lágrimas desabafando com Sal sobre si mesmo. "Eu não sei por que faço estas coisas idiotas" diz ele logo após contar uma de suas aventuras sexuais. Dando energia ao personagem e justificando assim a estranha atração que este gera, Hedlund cria um Dean cheio de contrastes. E se vemos o personagem conduzir um carro pelo estacionamento onde trabalha com rapidez e precisão no início do longa, não deixa de ser interessante se observar a calma e a depressão presentes nos mesmos movimentos mais tarde no filme, indicando seu crescente desprezo pela rotina. Assim, Dean é o ativo, não só na relação com Sal, mas com todos os outros personagens. Ele literalmente adentra a vida destes e deixa sua marca. Repare como ficamos sabendo, por exemplo, que Ed Dunkel (Danny Morgan) deixou a esposa na Louisiana para seguir Dean estrada a fora depois que este cruzou seu caminho. Claro que há o ápice em que Salles ilustra está relação do personagem com o mundo a sua volta ao mostrar Dean transando com um homem enquanto Sal observa furtivamente -sempre um espectador, lembrem, vivendo através de Dean suas experiências.


     E para dar rosto a estas inúmeras pessoas a quem o personagem afeta tanto, temos desde a talentosa Kirsten Dunst, apagada em um papel mais sentido do que explorado, o da esposa real de Dean, que desiste e volta com o mesmo várias vezes. Até Kristen Stewart que parece não largar de seu trejeito de morder os lábios mesmo em meio a uma cena de sexo intenso, ainda que ganhe pontos por não lembrar em nada sua famosa Bella. Passam aí no meio Viggo Mortensen (ótimo!) como o erudito Bull Lee, Steve Buscemi (o eterno Mr. Pink) em ótima ponta, entre outros como Amy Adams, Alice Braga e Terence Howard. O problema é, com tantos rostos e acontecimentos que cada um deles representa, o filme acaba apresentando uma de suas grandes falhas. O passar dos anos. A montagem de François Gédigier não consegue dar ritmo aos saltos entre um acontecimento e outro, deixando certos momentos com um tom horrivelmente episódico. E muito disso vem também da pouca mudança física que vemos nos personagens no decorrer dos anos que se passam, ou na evolução praticamente nula de cada um -e não estou ressaltando isso como um ponto negativo do filme. O fato é que se não fossem os constantes e discretos letreiros avisando a data ou local onde a cena está se passando, dificilmente diríamos que se passaram tantos anos entre o começo do longa e sua conclusão. Letreiros estes que poderiam soar como um artifício pobre do roteiro de Jose Rivera acabam sendo na verdade úteis, não só pela ineficiência do resto do filme em transitar de um momento a outro, mas também para poupar que isso fosse embutido em diálogos que acabariam sendo necessários para o entendimento do espectador, que soariam terrivelmente artificiais.


     Aproveitando a jornada dos protagonistas, Salles traz de volta um dos fatores que destacaram seu trabalho no aclamado Central do Brasil. A estética de um povo que sobrevive de empregos relegados à parte mais miserável da população. Assim é impossível ver Sal e os cultivadores de algodão e não lembrar a dura rotina da família de Abril Despedaçado fazendo rapadura sob um sol escaldante, ou dos trabalhadores se empilhando dentro dos vagões no próprio Central do Brasil. Algo que Salles parece gostar de ressaltar em cada um de seus projetos, seja nos povos da América Latina em Diários de Motocicleta, seja na rotina dos garotos pobres de Linha de Passe. E em todos eles o diretor é auxiliado por uma direção de arte incrível, que parecendo estar sempre motivada a retirar qualquer traço de glamour de seus personagens os veste e cerca de ambientes sujos, úmidos ou poeirentos. Aqui não é diferente, e desafio a você assistir a cena na Louisiana e não sentir uma vontade de passar uma água no corpo, mesma sensação que evocavam as cenas no sertão aberto em Abril Despedaçado. Já por outro lado é interessante notar o contraste no uso da fotografia. Se em Central do Brasil o diretor mantinha quadros estáveis, quase sempre parados e em uma razão de aspecto muito pequena, é interessante notar que em seus projetos sucessores ele tenha aberto o scopo de sua filmagem e tirado a câmera do tripé e colocado no ombro do fotógrafo, já que pelo menos aqui, a câmera de mão impera. E mesmo assim Salles e seu fotógrafo, Eric Gautier, não tornam a experiência de assistir seu filme algo incômodo (como acontecia recentemente em Jogos Vorazes que adota a mesma movimentação fotográfica), usando a instabilidade de seus quadros para representar nada mais do que a instabilidade de seus próprios personagens, nunca deixando de constatar na imagem as belas paisagens por onde passam.


     Trazendo à tona as raízes de uma subexistência ao compor para a trilha algo como um Jazz tão alucinado quanto Dean em seus devaneios sexuais, Gustavo Santaolalla finaliza a experiência de se assistir Na Estrada ao evocar este espírito libertador da aventura, do não saber e nem se importar com as consequências, um sentimento que o filme e seus interessantíssimos personagens trazem ao público com eficiência. E mesmo sendo difícil para o espectador aceitar Dean como uma figura tão magnética a ponto de nos fazer segui-lo estrada a fora - aliás, para os olhos dos demais que não sejam os personagens do filme, ele deve soar um babaca, é inegável que o personagem seja cativante o suficiente para nos prender por pouco mais de duas horas enquanto acompanhamos suas imprudências, tão fascinados e tão passivos a elas quanto Sal.


NOTA: 8/10



    

3 comentários:

  1. Concordo contigo em o Sal por vezes ser o passivo da história mas não acredito nessa relação homossexual com o Dean que tu escreveu.

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  2. On The Road para mim é a maior decepção do ano. Eu acreditava que o Walter Salles poderia nos trazer uma grande produção e me deparo com as quase 2h15 mais intermináveis da minha vida. Nem mesmo a talentosa Kirsten Stewart conseguiu me prender e nem o Garrett Hedlund que se saiu super bem em Country Song, não consegui ver ele como Dean.

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  3. Adorei ver o filme através dos seus olhos e percepções, me fez enxergar coisas que até então não tinha percebido. Talvez, lendo a tua resenha, tenha achado o filme um pouco mais profundo e menos sem sentido do que antes. Fizestes excelentes comparações com outras produções e adorei a colocação que fizestes sobre Sal como um ser passivo na história. O engraçado é que se formos analisar, principalmente num ambiente escolar, o que mais temos por aí são Deans e Sals, em que um deles é Dean, o porra-louca, inconsequente, que só quer saber de curtir a vida, mas que ao mesmo tempo se sente extremamente perdido, e por causa disso, quer viver tudo ao mesmo tempo e intensamente, e mtos Sals, que ficam fascinados pela forma de viver que um Dean tem, pela liberdade dele, pela sua coragem e que, por causa disso, acabam vivendo a vida dele, de forma passiva, quase como seres amorfos, sendo levados sem rumo, sem destino, magnetizados por ele. Conheci mtos Deans e Sals na vida, e os Deans realmente são seres apaixonantes, mas que numa altura da vida, se esgotam, se tornam superficiais e fúteis e percebemos que não há mais lugar para eles na nossa vida. Acredito que foi isso que Sal percebeu no final, quando decidiu optar por viver a sua vida ao invés de continuar vivendo a vida de Dean, na cena em que ele não fica com o amigo quando este nitidamente está precisando de companhia. Bjuss

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