Bons filmes de ação são como bons musicais, só que ao invés dos números de canto e dança, entram as cenas de ação. Prova disso, é o limite bem tênue entre a pancadaria e o ballet nas sequências insanamente coreografadas por George Miller neste filme aqui. E olha que estamos falando de um longa-metragem que ainda apresenta um universo onde é normal o vilão ter sua própria banda móvel de heavy metal, isso para que as perseguições tenham uma trilha sonora do mal. Mas se você espera
encontrar aqui mais um produto nos moldes Michael Bay, com explosões gratuitas,
mulheres servindo como objeto de distração para a plateia masculina e heróis
machos alfas, então cuidado. É uma armadilha! O novo Mad Max de Goerge Miller (mesmo diretor dos três anteriores, que não precisam ser assistidos para entender esse), muito além
de um filme de ação pra entrar na História, é uma produção com uma mensagem que vai contra tudo isso que o cinema de ação martelou por anos.
Não, nada de “salve o planeta”,
isso está implícito desde o começo e Miller parte do pressuposto que é algo que
nós já deveríamos estar carecas de saber. Quando a Imperatriz Furiosa (Charlize
Theron) parte no comando da Máquina de Guerra para buscar suprimentos na Cidade
da Gasolina e na Fazenda de Balas, ela leva escondida consigo as parideiras do
líder da sua facção, o temido e adorado Imorten Joe (Hugh Keays-Byrne, reciclado como vilão outra vez depois de ter sido o antagonista também no primeiro longa-metragem da série), que não
poupa esforços para sair em uma missão para resgatar suas mulheres perfeitas e
matar a Imperatriz. É no meio desta perseguição que entra Max (Tom Hardy),
usado como bolsa de sangue do capanga Nux (Nicholas Hoult), que logo consegue
se livrar de seu captor e juntar-se ao grupo de fugitivas de Furiosa.
E que aconteça de se chamar
Furiosa não é por acaso. Ela deveria mesmo estar furiosa. Afinal, a personagem
de Theron é a representação da mulher que luta pelos seus direitos e pela sua
liberdade. É como a feminista militante que, justamente por ser isso, mostra pelo
corpo as marcas que um mundo ainda misógino garantiu-lhe ter, seja na cabeça
raspada, nas cicatrizes pelo corpo ou no próprio braço amputado que exibe sem
vergonha alguma. Ela é a responsável por conduzir as outras mulheres a
encontrarem o seu caminho contra a repressão masculina. Por mantê-las focadas
nesse objetivo de igualdade mesmo quando elas mesmas querem desistir e voltar a
se submeterem aos homens que as tratam como objetos; quando uma das parideiras
se desespera e tenta se entregar aos capangas de Joe, Furiosa acerta um tiro...
Nos capangas, combatendo o mal de onde ele vem, e ainda por cima deixando a
decisão de continuar lutando para a garota tomar.
O próprio nome dado ao vilão,
Joe, é um equivalente a “mais um da Silva” no Brasil. É um nome comum que é
usado como João Ninguém por lá, Chuck Palahniuk chega a usar o nome em Clube da Luta num livro sobre o corpo
humano onde Joe é o nome do homem usado de exemplo, já que ele pode ser
qualquer um. Ou seja, o antagonista aqui é o “Imortal Homem Comum”, e pode ser
eu, pode ser você, pode ser, de fato, qualquer um. Ideia reforçada pela máscara
e maquiagem que cobrem o seu rosto durante toda a exibição, impedindo que
concretizemos uma identidade nele que não a do monstro que todos os homens
poderiam ser, deslocando-se desesperadamente pelo deserto para defender o seu
direito de superioridade masculina, de possuir mulheres, e não conviver com
elas como iguais. “É minha propriedade!” ele grita para uma de suas parideiras
grávidas.
Enquanto isso Nux, primeiro um
capanga sanguinário e, aos poucos, um fiel escudeiro, passa por um arco de
redenção ao entender pelo que Furiosa está realmente lutando. E note como
Miller não procura exaltar essa mudança, comemorando-a ou engrandecendo Nux por
compreender algo que, além de óbvio, deveria ser apenas a sua obrigação
entender. Do mesmo modo o próprio Max, que dá título ao longa-metragem, não é
exatamente o protagonista e divide ombro a ombro a ação com Charlize Theron.
Longe da idealização de um herói com os seus modos taciturnos – em uma
performance corporal admirável de Tom Hardy -, é até mesmo divertido como,
durante o clímax e de um ponto de vista privilegiado, Max contempla admirado
uma explosão às suas costas.
Então é genial que Miller use um
gênero e um estilo que normalmente atraem primeiramente o público masculino de
meia-idade e cabeça dura, em um filme que serve de isca para atrair e
aprisionar com ação espetacular e ininterrupta estas mentalidades retrógradas
em uma lição de igualdade. Uma lição que o filme carrega e gesta durante duas
horas, que do plano inicial, trazendo um homem solitário e sem esperanças em
frente a um mundo desolado, chega até aquele que encerra a exibição e que traz
lado a lado mulheres, homens, raças, idades e formas de todos os tipos sendo
elevados como iguais a um novo mundo cheio de potencial de prosperidade.
E entre um e outro desses planos,
George Miller insere sequências de ação que transcendem os limites do insano na
sua criatividade. Possuindo um controle assustador da mise en scène, o cineasta
comprova que, ao lado de seu montador e fotógrafo realmente pensou e planejou o
longa-metragem plano a plano com apavorante minúcia: tendo nas mãos infinitas
perseguições em ambientes parecidos, com carros que basicamente são todos cor
de ferrugem cobertos de areia, onde existem às vezes mais de três grupos
envolvidos e com objetivos diferentes, Miller consegue a proeza de jamais
deixar que o espectador se perca e deixe de entender quem está onde em relação a
que e a quem e quando. Tudo é perfeitamente compreensível e, por isso, divertido
de se acompanhar. Com câmeras de verdade, em cenários reais, envolvendo atores
e figurantes de carne e osso montados em veículos que estão ali na frente das
lentes, o diretor consegue se superar em um quesito em que realizadores
como Michael Bay, que em cenas muito menos complexas onde tem ao seu dispor
câmeras virtuais para enquadrar como quiser cenários, personagens e objetos
digitais, são incapazes de se fazerem entender. E não quero nem imaginar a dor de
cabeça que não foi ter de decupar o filme e, ainda mais, cuidar de sua continuidade caótica.
Não satisfeita, a equipe de Mad Max: Estrada da Fúria ainda entrega
um design de produção precioso em sua composição e detalhes, e cada veículo
parece ter a sua história e identidade próprias, de acordo com quem os
construiu. Enquanto o trabalho de figurino e maquiagem – nenhuma parte dela
digital – impressiona ao dar atenção a um grupo de figurantes infinito e muito
distinto em sua variedade. E mesmo os Garotos de Guerra como o próprio Nux são
facilmente distinguíveis apesar de seu design básico ser idêntico. E pra fechar,
o longa ainda vem embalado com uma trilha sonora empolgante e muitas vezes
insuspeita ao, por exemplo, exaltar com beleza a catástrofe que é um carro
sendo puxado por um furacão, cena em que Miller – acertando em tudo! – ainda encontra
tempo para que acompanhemos o deslumbramento de Nux ao presenciar tal
acontecimento, algo que se repete quando o grupo também observa um grupo de
homens-corvos andando sobre pernas de pau num lodaçal, momentos que podem
parecer frívolos, mas que na verdade são ferramentas essenciais para que nos
identifiquemos com as figuras em tela (afinal, nós mesmos também paramos para
observar deslumbrados) em um filme que não tem muito tempo para desenvolver
essa relação. Além disso, o filme demonstra ter feito o seu dever de casa, e
elementos como a banda de heavy metal móvel que citei antes não servem apenas
para chamar atenção para si próprios; o som do rock pesado inúmeras vezes é
usado pelo design de som para criar tensão ao anunciar a proximidade ou a
ferocidade dos vilões, em um recurso que, de certa forma, se inspira em Butch Cassidy, onde o grupo de
antagonistas também era precedido por um som crescente que os identificava – lá
era o galope dos cavalos, aqui é a guitarra do músico deformado.
E é incrível que, mesmo com uma
montagem alucinante na maior parte do tempo, Miller ainda consiga espaço para
inserir planos estáticos (ou quase) de beleza ímpar, como aquele que acompanha
ao longe dezenas de carros seguindo em direção a uma monstruosa tempestade de
areia, ou aquele outro que enquadra em câmera lenta Max acordando ainda coberto
de terra. Porém, o plano que mais pesa e impressiona é mesmo aquele já nos
segundos finais da projeção, que mostra o nosso herói misturando-se a multidão
enquanto Furiosa e seus, agora, iguais, ascendem para começar a construir um
mundo totalmente novo. Porque é isso que Miller está dizendo o filme todo, que
Max não é o protagonista ou o herói da história daquelas mulheres, nem mesmo
daquelas pessoas, ele é mais um, mais um homem comum que ao contrário de
Imorten Joe, escolheu ajudar ao invés de ignorar e, por tabela, ajudar que aquela
situação se perpetuasse. Max decidiu fazer parte daquela história não pela
glória, mas porque era o certo. E ver esse Max mergulhando em um mar de pessoas é
ouvir Miller nos dizer que é apenas o que todos deveríamos fazer, para que – e aí
vem o plano de encerramento que já mencionei – todos possamos evoluir (ou subir,
como fazem literalmente os personagens) como sociedade para outro nível de
respeito e igualdade. Pobre machista misógino e ortodoxo que achou que
assistiria a mais um filme de ação divertido, porém, vazio. Mad Max: Estrada da
Fúria prova que, além de um filme muito bem feito em todos os sentidos, é
também um muito bem pensado, o que o faz desde já – e falo isso sem medo de
estar exagerando – não só um exemplar de ação genial e impressionante, como também
uma obra-prima recém nascida seja de que gênero for.
NOTA: 10/10 (dã?!)
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