terça-feira, 3 de novembro de 2015

BEIRA-MAR



Beira-Mar conta a mais simples das histórias, sobre a mais clichê das situações desenvolvidas em filmes que abordam a diversidade sexual: a descoberta. Afinal, é quase irresistível para quem se infiltre no meio não enfocar a sedutora exploração dos primeiros passos discretos de um indivíduo em direção ao outro, enquanto ambos vão velando os seus reais sentimentos em prol de uma convivência normalmente aceita. Porém, o lugar comum do roteiro de maneira nenhuma lhe serve como demérito, uma vez que encontra na direção dos estreantes Filipe Matzembacher e Marcio Reolon uma abordagem intimista e delicada que confere uma instigante complexidade aos seus personagens.


Martin (Mateus Almada) é enviado pelo pai para recuperar um documento em posse de parentes que vivem no litoral gaúcho. Sabendo que pode hospedar-se na bela casa da família, leva consigo o amigo de longa data, Tomaz (Maurício Barcellos). Juntos eles tentam passar pelo final de semana cinzento com algum aproveitamento, tirado ou de alguma festinha de boate ou fazendo uma eles mesmos na casa de praia, enquanto Martin enfrenta grande resistência dos familiares para conseguir o tal papel que veio buscar.

[O parágrafo a seguir talvez contenha spoilers, mesmo que por tabela. Eles não estragam a narrativa, como normalmente o fazem, mas aviso de qualquer maneira.]

Houve um momento após a sessão de Beira-Mar na qual estive, em que alguém que não gostou do filme argumentou: “...se vende muito pelo lado gay, se fosse um casal heterossexual, não seria nada demais”. Ora, não pude deixar de pensar, Cidadão Kane sem Orson Welles também não seria grande coisa, mas ele TEM. Primeiramente, claro, não se pode depreciar um filme porque ele não funcionaria em determinada situação. Analisa-se um exemplar no contexto em que ele está, e não em um imaginário que o espectador propõe. Entretanto, resolvi aqui “morder a isca”, e digo que: se fosse protagonizado por um casal heterossexual, Beira-Mar não existiria. Na melhor das hipóteses, teria uma trama muito diferente da que hoje ele tem. Pois o conto simplista apresentado pelo projeto só seria possível em uma relação homossexual, o que torna o filme um reflexo de sua realidade, e logo também, uma denúncia da mesma. Explico:

Talvez chegue o dia em que gays, lésbicas, bis, trans entre tantos outros grupos que compõe a diversidade sexual atualmente, não precisem marchar dia sim e dia não por seus direitos; talvez chegue o dia em que não precisem temer o ódio e a violência contra a sua orientação sexual; talvez chegue o dia em que uma garota ou um garoto que se interesse pelo mesmo sexo que o seu, possa falar sobre isso desde cedo abertamente com os pais; e talvez chegue o dia em que esses garotos e garotas descansarão tranquilos sabendo que seus interesses estão sendo defendidos por políticos devidamente eleitos e que, de preferência, não convoquem orações coletivas na Câmara dos Deputados. Infelizmente, esse dia não é hoje (Aragorn, um beijo seu lindo!). Hoje, Tomaz receia contar ao seu amigo sobre a atração que sente por ele. Hoje, Martin precisa fazer toda uma encenação para conseguir demonstrar que também sente isso. E por mais honesto e delicado que seja esse momento em particular (você vai reconhecê-lo quando o vir), é impossível não pensar que aquela “dança” só é possibilitada porque “ser gay”, “ser bi”, “ser trans”, etc., ainda é um grande tabu. Mas Beira-Mar, felizmente, sobrevive muito mais além do que apenas como um retrato de sua própria época.

Construído por closes, iluminação pálida e uma profundidade de campo quase sempre baixíssima, o universo habitado pelos garotos os coloca com recorrência em lugares fechados um com o outro. Não só literalmente como ocorre em algumas cenas, mas também em enquadramentos que constantemente enfocam um a frente e o outro logo atrás, "amontados" no quadro, em um veículo, num pequeno cubículo e também em uma janela. Não por acaso em uma das poucas cenas em que vemos um deles sozinho, escorado em seu carro, Matzembacher e Reolon abrem o plano e o deixam estático, confrontando o personagem com a falta que o outro faz. Em um exercício menos sutil, porém, os diretores brincam de maneira óbvia com uma sugestão de masturbação, que me faz preferir o simbolismo mais implícito nas cores azuladas que passam a enfeitar os cabelos de Tomaz, tornando-o não só um desejo quase inalcançável (por medo) de Martin, como também a personificação da sua fobia do mar. O que explica a cena final.

Vividos com segurança por Almada e Barcellos, ainda que com proposital pouca naturalidade, os protagonistas não temem a proximidade da câmera e inclusive usam dessa intimidade a seu favor. Assim, pequenos movimentos no rosto ou sutis expressões são facilmente detectáveis em suas composições, com destaque para Barcellos, que consegue contar muito sobre Tomaz e seus sentimentos com a postura, o olhar e a entonação de diálogos econômicos. Também escritos pela dupla de cineastas, que fazem sua estreia em longas-metragens com esse pequeno, mas importante, frame da atualidade sobre a natureza de uma relação entre dois jovens descobrindo nada mais do que, amor. Aquele mesmo que tantos outros casais já se sentem livres para expressar e exercer no mundo inteiro, mas que eles, Tomaz e Martin, ainda tem que sussurrar sobre, conversar com olhares e com o corpo, e tudo isso no espaço de uma casa na praia, ou talvez, no ainda menor de um sofá.



NOTA: 9/10


Nenhum comentário:

Postar um comentário