Beira-Mar conta a mais simples das
histórias, sobre a mais clichê das situações desenvolvidas em filmes que
abordam a diversidade sexual: a descoberta. Afinal, é quase irresistível para
quem se infiltre no meio não enfocar a sedutora exploração dos primeiros passos
discretos de um indivíduo em direção ao outro, enquanto ambos vão velando os
seus reais sentimentos em prol de uma convivência normalmente aceita. Porém, o
lugar comum do roteiro de maneira nenhuma lhe serve como demérito, uma vez
que encontra na direção dos estreantes Filipe Matzembacher e Marcio Reolon uma
abordagem intimista e delicada que confere uma instigante complexidade aos seus
personagens.
Martin
(Mateus Almada) é enviado pelo pai para recuperar um documento em posse de
parentes que vivem no litoral gaúcho. Sabendo que pode hospedar-se na bela casa
da família, leva consigo o amigo de longa data, Tomaz (Maurício Barcellos).
Juntos eles tentam passar pelo final de semana cinzento com algum
aproveitamento, tirado ou de alguma festinha de boate ou fazendo uma eles
mesmos na casa de praia, enquanto Martin enfrenta grande resistência dos
familiares para conseguir o tal papel que veio buscar.
[O parágrafo a seguir talvez contenha spoilers, mesmo que por tabela. Eles não
estragam a narrativa, como normalmente o fazem, mas aviso de qualquer maneira.]
Houve
um momento após a sessão de Beira-Mar
na qual estive, em que alguém que não gostou do filme argumentou: “...se vende
muito pelo lado gay, se fosse um casal heterossexual, não seria nada demais”. Ora,
não pude deixar de pensar, Cidadão Kane
sem Orson Welles também não seria grande coisa, mas ele TEM. Primeiramente,
claro, não se pode depreciar um filme porque ele não funcionaria em determinada
situação. Analisa-se um exemplar no contexto em que ele está, e não em um
imaginário que o espectador propõe. Entretanto, resolvi aqui “morder a isca”, e
digo que: se fosse protagonizado por um casal heterossexual, Beira-Mar não existiria. Na melhor das
hipóteses, teria uma trama muito diferente da que hoje ele tem. Pois o conto
simplista apresentado pelo projeto só seria possível em uma relação homossexual, o
que torna o filme um reflexo de sua realidade, e logo também, uma denúncia da
mesma. Explico:
Talvez
chegue o dia em que gays, lésbicas, bis, trans entre tantos outros grupos que
compõe a diversidade sexual atualmente, não precisem marchar dia sim e dia não
por seus direitos; talvez chegue o dia em que não precisem temer o ódio e a
violência contra a sua orientação sexual; talvez chegue o dia em que uma garota
ou um garoto que se interesse pelo mesmo sexo que o seu, possa falar sobre isso
desde cedo abertamente com os pais; e talvez chegue o dia em que esses garotos
e garotas descansarão tranquilos sabendo que seus interesses estão sendo
defendidos por políticos devidamente eleitos e que, de preferência, não
convoquem orações coletivas na Câmara dos Deputados. Infelizmente, esse dia não
é hoje (Aragorn, um beijo seu lindo!). Hoje, Tomaz receia contar ao seu amigo
sobre a atração que sente por ele. Hoje, Martin precisa fazer toda uma
encenação para conseguir demonstrar que também sente isso. E por mais honesto e
delicado que seja esse momento em particular (você vai reconhecê-lo quando o
vir), é impossível não pensar que aquela “dança” só é possibilitada porque “ser
gay”, “ser bi”, “ser trans”, etc., ainda é um grande tabu. Mas Beira-Mar, felizmente, sobrevive muito mais além do que apenas como um retrato de sua própria época.
Construído
por closes, iluminação pálida e uma profundidade de campo quase sempre
baixíssima, o universo habitado pelos garotos os coloca com recorrência em lugares fechados
um com o outro. Não só literalmente como ocorre em algumas cenas, mas também em
enquadramentos que constantemente enfocam um a frente e o outro logo atrás, "amontados" no quadro, em
um veículo, num pequeno cubículo e também em uma janela. Não por acaso em uma das poucas
cenas em que vemos um deles sozinho, escorado em seu carro, Matzembacher e
Reolon abrem o plano e o deixam estático, confrontando o personagem com a falta
que o outro faz. Em um exercício menos sutil, porém, os diretores brincam de
maneira óbvia com uma sugestão de masturbação, que me faz preferir o simbolismo
mais implícito nas cores azuladas que passam a enfeitar os cabelos de Tomaz,
tornando-o não só um desejo quase inalcançável (por medo) de Martin, como
também a personificação da sua fobia do mar. O que explica a cena final.
Vividos
com segurança por Almada e Barcellos, ainda que com proposital pouca
naturalidade, os protagonistas não temem a proximidade da câmera e inclusive
usam dessa intimidade a seu favor. Assim, pequenos movimentos no rosto ou sutis
expressões são facilmente detectáveis em suas composições, com destaque para
Barcellos, que consegue contar muito sobre Tomaz e seus sentimentos com a
postura, o olhar e a entonação de diálogos econômicos. Também escritos pela
dupla de cineastas, que fazem sua estreia em longas-metragens com esse pequeno,
mas importante, frame da atualidade
sobre a natureza de uma relação entre dois jovens descobrindo nada mais do que,
amor. Aquele mesmo que tantos outros casais já se sentem livres para expressar
e exercer no mundo inteiro, mas que eles, Tomaz e Martin, ainda tem que sussurrar sobre, conversar
com olhares e com o corpo, e tudo isso no espaço de uma casa na praia, ou
talvez, no ainda menor de um sofá.
NOTA:
9/10
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