O cineasta canadense Denis
Villeneuve, surgido apenas na última década, com um pequeno, mas impressionante
currículo, já se estabeleceu como sinônimo de produções densas e inteligentes.
Exibindo sempre uma confiança admirável no intelecto do espectador, seus filmes
raramente são óbvios ou fáceis, recheados de elementos simbólicos e também
diegéticos (aqueles inseridos no universo da trama e dos quais os personagens
estão cientes) que são colocados lá para que o enredo e seus significados
possam ser desvendados não só pelas quase sempre inquietas figuras que os
protagonizam, como também pelo público do lado de cá da tela, que não consegue
evitar ficar nervoso, tamanha a tensão que o diretor consegue
transmitir cada vez melhor.
Com toques de A Marca da Maldade, de Orson Welles, Sicario: Terra de Ninguém, a nova
investida de Villeneuve, também relata a história de um oficial destacado para
trabalhar na fronteira dos Estados Unidos com o México. E se aquele clássico do
Cinema Noir apresentava um espetacular plano sequência de abertura que
culminava em um trágico desfecho, aqui, o realizador, apesar de não ser adepto
dos planos que se demoram em tela, constrói sequências que se esticam através
da montagem. Justificando-se não só pela tensão que cria ao tratar cada
elemento envolvido com cuidado, mas também ao pintar um quadro tridimensional
dos personagens e de toda a situação em que estão inseridos. As cenas no
longa-metragem de Denis não são criadas para desenvolver o plot e seus
habitantes, mas sim eles é que são desenvolvidos e criados em detrimento das
cenas.
E em tempos que no Brasil a prova
do Enem está abordando o feminismo, é impossível conter um sorriso ao se
constatar que o oficial escolhido é uma mulher. E o melhor, que o papel não
exigiria que assim o fosse. Kate (Emily Blunt) é uma protagonista que
facilmente teria sido um homem em algum outro filme, já que o seu sexo não
interfere na narrativa. E justamente esse detalhe – é uma atriz quando poderia
ser um ator – que torna a escolha tão lúcida e acertada, além de, sim,
inovadora no meio cinematográfico. Blunt assume então o arquétipo, normalmente
masculino, tão comum no Noir: do investigador soturno, obstinado com os seus
ideais, e dono de mágoas passadas. Inclusive é divertido perceber como Sicario busca inserir outros dos
arquétipos do gênero de forma sutil, e então temos uma autoridade de passado
misterioso, o bonachão de moral dúbia, a figura pura, mas tragicamente envolvida
com os bandidos, e até mesmo uma espécie de Homme
Fatale™ (Yuri Correa, todos os direitos reservados), invertendo um papel
que se construiu na feminilidade.
Porém, os arquétipos não são os
únicos a serem atualizados, e a própria fotografia do “Cinema Noite”, elemento
tão marcante e determinante de sua concepção, é também repaginada aqui pelo
mestre Roger Deakins – em sua segunda colaboração com Villeneuve. Dotada de um
preto e branco contrastado, composto de sombras alongadas e laterais, que
reservavam o escuro para as figuras ameaçadoras e a luz para aquelas de maior
fragilidade, a estética Noir é transposta por Deakins para cá através de seus
já famosos planos em contra luz e silhuetas. Além de ser admirável que case sua
iluminação normalmente difusa com as exigências de alto contraste entre luz e
sombra do estilo – em determinado momento Kate está posicionada no único ponto
iluminado de um aposento, enquanto um frio assassino conversa com ela de dentro
de uma profunda escuridão. E devo destacar que é memorável e poderoso o plano
que traz um grupo de soldados mergulhando em um horizonte negro logo abaixo de
um poente vermelho sangue.
Não o suficiente, como de
costume, Villeneuve não resiste em pincelar momentos de significado simbólico,
exclusivos para o espectador, como aqueles recorrentes que enfocam a abertura
de alguma cortina em alguma janela de algum lugar, que deixa passar pela fresta
um raio de sol dourado. Ora, quando assistimos a rima final desses planos ao
encontrar a própria Kate do lado de fora de uma varanda, por onde as cortinas
deixam entrar agora uma pálida luz cinzenta e fria, é que percebemos que antes
as frestas simbolizavam a esperança inabalável da policial nos seus ideais e
moralismos. Como se, colocada do lado de dentro dos ambientes, ela conseguisse
ainda enxergar uma nesga de sol do outro lado, e uma vez lá fora, ela enfim
conseguisse ver que tudo aquilo que ela considerava ser definido, luz e sombra,
na verdade tratava-se de uma coisa só: um grande cinza indecifrável em que nem tudo
é só ruim, ou só bom.
Uma percepção que Villeneuve, em
outro exercício de genialidade, vai inserir na figura de um policial mexicano,
do qual eventualmente temos vislumbres da rotina caseira, com o filho e a
esposa. E é apenas no clímax em que descobrimos sua verdadeira função na trama,
percebendo o quão importante era a sua introdução tão cedo. Uma vez que boa
parte do roteiro aborda o embate ideológico de Kate com os seus superiores,
Alejandro (Benicio Del Toro, econômico e por isso mesmo, brilhante, TEM que ser
reconhecido na temporada de premiações) e Matt (Josh Brolin, divertido),
acompanhar somente o time de protagonistas acabaria dirigindo o filme para uma
visão unilateral que contemplaria apenas o ponto de vista dos oficiais, por
mais que a agente insistisse em considerar o fator humano pelo lado dos traficantes
também. Pois bem, para não alienar o espectador e poder colocá-lo a par do
ponto de vista de Kate, é precioso que Sicario
resolva então acompanhar esses momentos rotineiros do policial mexicano,
levando-nos a dimensionar que por trás de cada um daqueles “capangas” mortos
friamente pelo time de “heróis”, existe uma família, uma história e até mesmo
toda uma situação que não fazem deles necessariamente maus. E se o longa já se
mostrava atual na escolha de uma mulher como cabeça do elenco, torna-se então
relevante com esse esforço de sensibilização que praticamente estapeia na cara
todo aquele que enche a boca pra dizer coisas como “bandido bom é bandido
morto”, ou ainda os que engrossam as fileiras de corruptos como Cunha na luta
pela redução da maioridade penal.
Apresentando ainda um design de
som estudado, a produção se dá ao luxo de investir minutos na apresentação de
Juarez, a cidade que vai ambientar boa parte da ação, que é antecipada por planos
das estradas que até ela levam, enquanto uma trilha opressiva e repleta de
graves vai subindo ao fundo, até se transformar praticamente em rugidos que se
complementam com a entrada ensurdecedora de helicópteros em cena, completando a
introdução do lugar como se fosse uma monstruosa besta, viva e perigosa. Uma
associação de personalidade que remete diretamente aos exercícios de Spielberg
em Encurralado e Tubarão, cineasta que obviamente deve ter inspirado Denis não só
nesse sentido como também na construção de tensão, que chega a ser quase
insuportável em certos momentos. E reparem como os sons de disparos de uma arma
equipada com silenciador durante o clímax, soam muito mais altos do que aquelas sem abafador algum, simbolizando a determinação e a ferocidade do atirador.
Pouco gentil com o seu
espectador, Sicario se encerra
deixando-o aflito, perturbado e pensativo. É uma pancada dura que atinge onde o
público menos gosta de ser cutucado quando dentro de uma sala de cinema.
Apresentando pistas que levam a verdades incomodativas e sentimentos
conflitantes, tão cinzentos quanto o céu que passa a cobrir Kate. Não é um
mundo fácil de se definir, onde assassinos são maus e policiais são bonzinhos.
Para habitar ele, da mesma forma que é para se habitar o filme, exige-se
constante observação e raciocínio. Que Denis Villeneuve continue a trazer obras
tão amargas e, por isso mesmo, tão memoráveis como essa.
NOTA: 10/10
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