terça-feira, 12 de janeiro de 2016

OS OITO ODIADOS


Tarantino já lidou antes com catarses coletivas que buscavam satisfazer injustiças históricas (e às vezes atuais), e isso fica claro para qualquer espectador de Bastardos Inglórios, À Prova de Morte e Django Livre. Por isso não é loucura projetar em seu mais novo projeto uma leitura mais profunda do que a simples cabana que acaba abrigando figuras tão hostis quanto misteriosas. Os Oito Odiados - que não deixa de ser uma brincadeira com Os Sete Magníficos da tradução literal do título original do filme que conhecemos no Brasil por Sete Homens e um Destino - coloca um negro, uma mexicano, um caçador de recompensas, um xerife, uma prisioneira, um carrasco britânico, um general sulista e um vaqueiro sob o mesmo teto, e assim parece elaborar uma trama que, apesar de inspirada e reverencial a filmes como Os 7 Suspeitos e Enigma do Outro Mundo – além do próprio Cães de Aluguel -, oferece também um desenrolar original e uma leitura própria.

Com a cabeça da sua prisioneira (Jennifer Jason Leigh) valendo uma boa grana, o paranoico John Ruth (Kurt Russell) mantém-se na defensiva quando uma nevasca prende ele e o Major Warren (Samuel L. Jackson) com outros estranhos em uma cabana no meio do nada. A princípio um grupo de homens distintos, aos poucos começam a surgir suspeitas e a eclodirem conflitos gerados por preconceitos e ideologias radicalmente diferentes entres eles, não sendo surpresa que a violência ameace assumir controle da situação a qualquer momento. Esse é o plot, e não há vergonha alguma em quem preferir se divertir apenas no seu primeiro nível de leitura. Porém, para os mais curiosos em escavar mais a obra, discuto com maiores detalhes no final do texto, e com um devido aviso de “SPOILERS ABAIXO!” antes, algumas outras possibilidades mais profundas de interpretação.  

Porém, antes gostaria de comentar aspectos mais gerais, como a fantástica fotografia que Tarantino fez questão que fosse capturada em 70mm, um formato de tela longo e estreito que cobre muito cenário para todos os lados, e que soa estranhamente claustrofóbico quando isso nos lembra constantemente do enclausuramento dos personagens. Aliada a essa sensação vem a trilha, repleta de acordes que sugerem o sombrio e composta por ninguém menos do que Ennio Morricone. Consagrado como mito do cinema especialmente por compor trilhas para westerns, o compositor firma pela primeira vez uma parceira oficial com Quentin Tarantino, que já havia usado diversas faixas de outros trabalhos do músico antes, e que nunca havia tido uma trilha exclusivamente composta para um filme seu. Juntos, fotografia, Morricone e Tarantino criam esteticamente uma obra que poderia muito bem ter sido concebida na década de 1960 e lançada em meio aos westerns de Sergio Leone – aliás, note que, apesar disso, a trilha do mestre lembra mais o seu trabalho em Enigma do Outro Mundo do que os seus trabalhos no velho oeste.

Não ficando para trás na escalação elenco “bronco”, Os Oito Odiados traz Tim Roth, Bruce Dern, Michael Madsen, Walton Goggins, Kurt Russell e Samuel L. Jackson (entre outros que não vale revelar pra quem ainda não viu o filme) para trabalhar novamente sob a batuta de Quentin.  Porém, é Jackson e a personagem de Jennifer Jason Leigh, novata no universo de Tarantino, que acabam chamando a maior parte da atenção. Ele, incrivelmente diferente de Stephen, o lacaio que viveu em Django Livre, surge ameaçador e astuto, com uma calma e precisão que raramente se permitem movimentos ou palavras dispensáveis. Já Leigh, que pouco texto tem nos dois primeiros atos, cativa justamente por desenvolver sua personagem mesmo estando quase sempre ao canto do enquadramento, e assistir novamente prestando maior atenção nas suas expressões e postura enriquece o longa-metragem ainda mais,

Mas não é porque Leigh fica calada por um bom tempo que a verborragia não rola solta. característica principal dos filmes de Tarantino, os longos diálogos são a alma de Os Oito Odiados, e mais do que nunca são essenciais, afinal o roteiro investe um longo tempo apresentando os personagens através de suas interações, e somos capazes de torcer, rir, calcular e temer junto com aquelas figuras, é porque à certa altura já os conhecemos muito bem. E mesmo com uma trilha original pela primeiríssima vez, o diretor não deixa de inserir aqui e ali canções e composições de origens diversas - seguindo a tradição de seus filmes - que não raramente quebram a ambientação histórica, algo que ele já havia feito em Django Livre e Bastardos Inglórios, mas que aqui é um recurso que serve também para tornar a trama atemporal, e assim,suas interpretações também. E já que falei nelas, permitam que me aprofunde um pouco mais no filme de Tarantino, para tanto, aviso... 

...Spoilers abaixo!

PLANO INICIAL, RIMA NO FINAL

Uma figura esculpida em madeira de Jesus Cristo, coberta e cercada por todos os lados pela neve, serve como fundo para os créditos de abertura de Os Oito Odiados, enquanto a trilha de Ennio Morricone anuncia a proximidade do perigo. De certa forma, o plano simboliza aquilo em que a trama logo se converterá: sofrimento e a tortura sufocados pela neve. Por outro lado, Jesus Cristo, como símbolo máximo do cristianismo, também significa a origem de muitos preconceitos e segregações, que por sua vez levaram a guerras e a discriminação, e se pensarmos que esses são todos motivos pelos quais os personagens do filme de Quentin Tarantino vão entrar em conflito eventualmente, o surgimento de Cristo na abertura é apenas apropriado. E em uma terceira leitura Jesus Cristo está ali para representar aquilo que ele é para muitas pessoas: o exemplo de “pessoa ideal”. O homem bom, puro e incorruptível que teria sido sacrificado para salvar a humanidade dos pecados, dando-lhe uma chance de recomeçar como iguais. E nesse caso, encontramos uma rima no desfecho do filme que corrobora essa interpretação. 

Pois quase 3 horas depois, ou, pouco mais de 1800 anos depois se considerarmos o tempo diegético do filme em relação à suposta data da morte de Jesus, encontramos dois homens que se odiavam por questões de raça, um negro e outro branco, tendo superado as suas diferenças pela cor da pele e unidos na tarefa de enforcar uma mulher. Admirando o corpo desfalecido dela enquanto esperam sangrar eles mesmos até a morte, um deles lê uma carta escrita por Abraham Lincoln, um dos maiores símbolos da moral e boa conduta que os estadunidenses têm para si. E é flagrante que a carta jamais tenha sido de fato redigida pelo icônico presidente dos Estados Unidos, e sim forjada por um dos dois homens, já que ela reflete então a visão que aquele indivíduo falho, cruel e violento tem de um “homem ideal”, escrevendo coisas como:

Espero que esta carta o encontre com saúde e bem (...) Os tempos estão mudando devagar, mas seguramente estão mudando, e são homens como você que farão a diferença (...) Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas de mãos dadas, sei que chegaremos lá (...) Espero que nossos caminhos se cruzem no futuro”. 

Ora, se a cabana onde o filme se passa é uma alegoria a América, como o filme leva a entender e várias críticas por aí apontam (e recomendo especialmente a do Pablo Villaça, que pode ser lida aqui: http://cinemaemcena.com.br/Critica/Filme/8223/os-oito-odiados), então a carta representa o estado social utópico do futuro ao que o ser humano almeja, personificado e dirigindo-se a quem ele é hoje: uma raça que, apesar de já ter superado confrontos pela independência, lutado pelo fim da escravidão e de estar trabalhando na reconciliação entre raças, ainda se mantém segregada pelos valores fundamentais do deus abraâmico - aquele mesmo cujo maior símbolo ficou lá no começo do filme, ou, seguindo a alegoria, lá nos primórdios da história humana – e por isso é uma espécie que tem “um longo caminho a percorrer” até estar em pé de igualdade com outras raças, mulheres, ateus e com a diversidade de orientações sexuais que existem.

E claro que, por representarem cada um deles conflitos superados, é nada menos do que ideal que Tarantino não permita que nenhum dos seus personagens sobreviva para ver o final da trama, sendo revelador que, como signos (símbolos) para problemas maiores, eles terminem unindo-se contra uma minoria – tanto representativa quanto literalmente, já que Daisy era a única mulher na cabana. Ou seja, seguindo essa lógica, Tarantino está nos dizendo que o bicho homem sempre encontrou algum motivo através da história para aniquilar o próximo, seja por causa da raça, do país de origem ou de relações políticas, e hoje encontra-se fortemente unido acima de qualquer desavença para ao menos manter sua supremacia enquanto gênero. Não estranho é então que machistas e homofóbicos facilmente encontrem partidários em extremistas religiosos, elitistas sociais, etc. O que Tarantino diz é: estamos distante ainda de nos tornarmos o “homem ideal”, mas do jeito que estamos hoje, assistindo a nossas minorias sufocarem com uma corda que nós mesmos laçamos no seu pescoço, vai nos restar apenas sangrar até a morte.


NOTA: 10/10


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