A
Garota Dinamarquesa tem
uma história de relevância que traz, como de costume, as nuances de Tom Hooper
junto. Ainda que, aqui, os maneirismos do cineasta sejam menos incomodativos do
que eram, por exemplo, em Os
Miseráveis e O Discurso do Rei. Fã de lentes
grande-angulares, famosas por distorcerem a imagem e causarem estranheza, além
de viciado em planos estáticos que jogam seus personagens para o canto da tela
– aparentemente porque sim e ponto -, Hooper recorrentemente prefere chamar
mais atenção para si mesmo do que para o seu filme, como se tivesse uma
necessidade patológica de apontar que existe um diretor por trás daquela obra.
Entretanto,
se O Discurso do Rei possuía interpretações notáveis de um
roteiro correto, enquanto Os
Miseráveis, além disso, ainda somava as belas canções do musical original, A Garota Dinamarquesa sofre com um script raso, e é praticamente
entregue nas mãos de Eddie Redmayne e Alicia Vikander a tarefa de sustentarem o
projeto. E se o filme sobrevive - e ele sobrevive – é realmente devido aos dois.
Casados, Einar e Gerda Wegener (Redmayne e Vikander respectivamente) são pintores,
ele reconhecido, muito provavelmente por ser homem, e ela, lutando por algum
espaço em uma galeria que compreenda a sua obra. Porém, Einar
descobre que prefere as rotinas femininas, e depois de uma experiência, decide
que vai ser Lili Elbe, uma mulher, sujeitando-se a experimentos e análises
médicas para tentar encontrar alguém que não queira interná-lo, e sim, ajudá-lo
a tornar-se de fato o que realmente é: uma mulher.
Sim,
estamos falando aqui do caso real de Einar Wegener, que viria a ser a primeira
pessoa a realizar a cirurgia de mudança de sexo da história. Ou seja, um marco
no movimento da diversidade sexual e, especialmente, da transexualidade – e que
o world tenha acabado de sublinhar a palavra porque não a reconhece ainda, é
indício da importância de se falar sobre Lili Elbe. Porém, a roteirista Lucinda
Coxon, adaptando o livro de David Ebershoff - que por sua vez romantiza a história de Elbe -, parece achar que expor em diálogos
as características dos personagens é o suficiente para desenvolvê-los. E ao
invés de mostrar o relacionamento do casal, prefere colocá-los para dizer
coisas como “you are my life, you are my wife” (você é minha vida, você é minha esposa), que além de soar como um
poeminha cafona, também empobrece a química cuidadosa que Vikander
e Redmayne constroem juntos, realmente interagindo organicamente um com o outro,
como na primeira vez em que Gerda flagra seu marido usando uma camisola por
baixo da roupa, em que ele mantém os olhos arregalados e uma promessa de
sorriso ou choro na boca, esperando qual seria a reação dela, que por sua vez,
longe de qualquer espanto ou julgamento, esboça uma genuína curiosidade ao
analisá-lo naqueles trajes.
Apesar
disso, Coxon continua a trilhar uma linha de falas
vergonhosamente expositivas que denunciam que os realizadores, ao contrário dos
intérpretes, não faziam a menor ideia de quem eram as pessoas sobre quem
estavam falando. E não é preciso, de fato, saber quem e como era uma pessoal
real para criar um personagem tridimensional - e tenha-se em vista que nem o livro e, portanto, nem o filme, seguem à risca a história real. Ainda assim, é um nível que Redmayne se esforça
para conseguir alcançar, sendo notável, por exemplo, como fala baixo quando está como
Lili, para disfarçar o timbre, e em certo momento que se irrita é brilhante o
trabalho vocal do ator, que corta uma fala que tendia ao grito e volta a sussurrar,
indicando o medo de Elbe não de ser descoberta – ela estava brigando com Gerda
-, mas de que sua feminilidade desaparecesse se permitisse exibir algum antigo
traço de Einar. Um cuidado que quase se evapora quando Coxon obriga o
protagonista a dizer coisas como “Quando eu durmo, são os sonhos da Lili que eu
sonho”, para apontar que ele era ela por dentro. Ou, quando não falando de si
mesmo, Einar/Lili tem de descrever Gerda com adjetivos como “Você é tão
desnudadora” e “Você tem tanto poder”, reafirmando em falas o que Alicia
Vikander já desenvolvera com modos menos fluídos e uma postura mais dura em
relação a situações mais emotivas.
E
se os protagonistas não ganham grande desenvolvimento – e deve-se apontar ambos
como tais, pois em um de seus raros acertos, Coxon reconhece que seria
importante acompanhar a trajetória tanto de Gerda quanto de Einar/Lili – resta ainda
menos para qualquer um que ouse surgir em tela. Assim, o sempre competente Ben
Whishaw é relegado ao papel do homossexual delicado e gentil, enquanto Matthias
Schoenaerts ao do amigo próximo e preocupado, sem contar os médicos, que quase viram
vilões do James Bond, caracterizados como caricaturas estereotipadas carregadas
no sotaque e vestidos de jalecos brancos sobre roupas negras, descrevendo que esse
ou aquele experimento doloroso “Acaba com o mal e salva os bens!”, faltando
apenas a gargalhada maléfica para completar o pacote. Ainda que as definições bidimensionais de masculinidade (personalidade forte e elegante) e feminilidade (delicada e submissa) não sirvam de demérito nem ao filme nem aos atores que as incorporam, pois elas são condizentes com a própria época em que a história é retratada. E quando um personagem homem diz a uma mulher "sinto como se eu tivesse que permitir permissão para beijá-la", a fala soa absurda em nosso contexto sensivelmente mais desenvolvido, mas não deveria ser apontada como sinal de machismo por parte do longa, ao menos não mais do que A Lista de Schindler deveria ser tida como antissemita por mostrar Judeus nos campos de concentração. É uma pintura de uma época, ponto, pode ser uma chance perdida de desenvolver uma crítica sobre esse comportamento - o filme todo é -, mas conquanto não o exalte como algo ideal - o que o filme não faz -, não lhe é um problema tampouco.
Assim,
quando analisado de forma geral, o filme parece refletir as escolhas estéticas
do seu diretor, e mostra na maior parte do tempo algumas coisas bonitas de se
ver (figurino, em particular), mas cercadas por um vazio de relevância, enquanto Hooper insiste em, literalmente, colocar os
personagens nos cantos. Algo que, de outra maneira, surge no próprio
design de produção do longa, que, por exemplo, cria o apartamento dos Wegener com espaços
amplos, porém, pobres em móbilias, contendo apenas os móveis necessários, como uma cama, um
cavalete, uma mesa, etc. Ainda que também nem todos os esforços de Hooper e
Coxon sejam desprezíveis, e o momento em que Einar/Lili paga para ver uma
prostituta e a observa para aprender os seus movimentos é delicado, não porque institui que aquilo é "ser mulher", mas porque enfoca a necessidade do protagonista de se tornar uma, mesmo que dentro de seus próprios conceitos hoje antiquados. Da mesma forma, funciona aquele em que Gerda rouba um beijo e que, graças às grande-angulares do
diretor, podemos ver tanto o indivíduo por ela beijado no topo da escadaria,
quanto ela saindo correndo vários lances mais abaixo. Qualidades que, entretanto,
repito, são sustentadas muito mais por Redmayne e Vikander do que pelos autores
do projeto, que por outro lado, quando assumem o controle total de qualquer
cena, preferem o óbvio e o aborrecido, não sendo surpresa que prefiram terminar
o filme apelando para o emocional do espectador com um “deixe voar” que, se tem
efeito, é devido aos personagens construídos previamente pelos atores, e não
por uma metáfora pedestre sobre libertação que, convenhamos, jamais aconteceu, e que ainda hoje, luta-se para que aconteça.
NOTA:
6/10
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