A trama remonta um incidente
acontecido no norte dos Estados Unidos com o explorador Hugh Glass (Di Caprio),
que fazia parte de uma companhia comerciante de peles. Cercado por índios, o grupo é forçado para dentro da floresta, onde Glass é atacado por um urso,
que o deixa em estado grave. Vendo-o como um fardo, os homens o deixam sob o
cuidado de alguns voluntários, entre eles, Fitzgerald (Tom Hardy), que mata o
filho de Hugh e o deixa para morrer. Entretanto, não é isso que acontece e Glass maneja se
manter vivo para voltar e se vingar do assassino. A história do explorador que
voltou depois de dado como morto se tornou famosa nos Estados Unidos e chegou
mesmo a gerar outro filme, Fúria Selvagem,
de 1971, em que o personagem recebeu o nome de Zachary Bass e era interpretado
por Richard Harris. Os pormenores de sua expedição de volta são míticos, o que
permitiu a cada versão fantasiar um pouco em cima dessa parte, não sendo
diferente o que Iñárritu faz aqui.
O problema é que o realizador
mexicano acredita precisar dar complexidade à relação e o passado de Glass, e
já inicia o longa com uma montagem que explica sua história prévia com uma índia,
que antes de acabar de forma trágica, gerou um filho seu. Porém, temendo talvez
pela clareza dessa sequência de acontecimentos, o filme volta a trazê-la em
forma de sonhos e alucinações que aspiram a uma poesia e abstração que estão
simplesmente distantes do restante do tom que o resto do projeto adota. E se
quando escrevi sobre Birdman no ano
passado, indiquei como um ponto positivo daquele excelente longa-metragem que
Alejandro parecia passivo às referências do seu diretor de fotografia, o
brilhante Emmanuel Lubezki, que já firmou parcerias duradouras com Alfonso
Cuáron – grande fã de longos planos – e Terrence Malick – dono de uma linguagem
narrativa única justamente pelo tom poético e abstrativo -, aqui, tenho que
apontar essa mesma característica como algo no mínimo problemático, pois embora
os eximiamente bem executados planos sequência – em que Lubezki já se tornou
autoridade – trabalhem a favor da trama, por outro lado, os interlúdios
absorvidos esteticamente de A Árvore da
Vida são aborrecidos, repetindo ideias que já teríamos compreendido mesmo
que nenhum deles existisse e ainda arriscando a credibilidade do roteiro ao
tentar expandir sua complexidade dramática para um nível que a aventura solo de
Glass não sustenta, já que, repito, pela terceira vez, ela tem maior força
quando se foca na sua objetividade.
Iñárritu, então, deveria ter
absorvido por tabela a condução de Gravidade,
dirigido por Cuáron e também fotografado por Lubezki, que, veja só, também
conta sobre um protagonista em um ambiente hostil que, além de possuir um
passado igualmente traumático, sobrevive a um acidente que deveria ter sido
fatal e consegue arquitetar um retorno sofrido. Uma trama objetiva contada
través de uma técnica irrepreensível que sobrevivia justamente pela sua
simplicidade. E mesmo lá, brincando com cenários quase sempre digitais e uma
câmera que não necessitava de eixo e lhe permitia os mais diversos movimentos,
Cuáron não desperdiçava tempo exibindo-se com o seu poderio, como se isso
adicionasse peso ao drama vivido pelos personagens, o que pode ser notado na
duração de Gravidade, 91 minutos. Em contrapartida, temos os 156 minutos de O Regresso, que não raramente se detém
em planos de belíssima plasticidade, mas que conversam menos com o enredo do
que gostariam, como o momento em que Hugh observa uma avalanche gerada pelo som de
um tiro, cena que deve ter entrado para o corte final apenas porque a produção
provocou uma avalanche de verdade para filmá-la.
Porém, esses momentos, se
incomodam, é mais por incharem a duração, já que, sim, por mais exibicionista
que seja, uma avalanche de verdade impressiona, e quando esse é um dos planos
menos admiráveis do filme, o resto só pode ser descrito como assustadoramente
competente. Por exemplo, já nos primeiros minutos Iñárritu e Lubezki investem
em um plano sequência cuja coreografia precisamente ensaiada constrói sem
problemas o cenário de batalha por eles explorado, ao mesmo tempo em que estabelece
o nível de violência que podemos esperar do resto da produção – não que Alejandro
seja conhecido por ser pudico, e mesmo Birdman
tinha sua parcela de choque visual. Filmado totalmente em luz natural, algo com
que Lubezki já havia lidado antes em A
Árvore da Vida, O Regresso traz
como sua pérola técnica a antecipada sequência do ataque do urso, toda feita em
um plano só, que integra maravilhosamente bem os movimentos de Leonardo Di Caprio
aos da criação digital, com movimentos de câmera que se afastam e se aproximam
da ação expondo tanto o preciosismo da maquiagem e da performance do ator,
quanto a dimensão do embate. Algo que, em maior ou menor escala, é possível se
notar em toda a duração do projeto, que aposta de maneira orgânica tanto em
planos abertos que ajudam não só a sintonizar o espectador quanto aos espaços
habitados pelos personagens, mas também ao confrontá-los com sua pequenez
perante forças naturais como montanhas, planícies cobertas de neve e rios
sinuosos, quanto naqueles mais fechados que exploram perigosamente os detalhes
das próteses e pinturas que, incrivelmente, sobrevivem a closes com lentes
grande-angulares que descortinam os menores poros nos rostos como o de Glass e
Fitzgerald.
Esse último, aliás, confere maior
nuances ao seu personagem trazendo sempre na cabeça uma bandana que cobre a
cicatriz deixada por uma tentativa de escalpo, o que contrasta com sua
tendência a raciocinar em cima de sua posição temerária e traiçoeira que ele
não tem vergonha de admitir ser fruto justamente desse mesmo trauma. Ou seja,
Fitz é um homem a quem o medo tornou perigoso, e Hardy reflete isso nas suas expressões
que são quase sempre variações de uma fixa de espanto, terminando enfim de
construir tridimensionalmente o seu personagem quando esse revela uma pequena
história sobre seu pai, que aprofunda as suas fugas a apelos religiosos quando
se encontra em desespero: “Deus é um esquilo... Ele atirou no filho da mãe e o
comeu”. Mas Hardy não é o único dos coadjuvantes a se destacar, e Domhnall
Gleeson merece uma menção depois de ter estado, tão articuladamente
diferente, em nada menos do que quatro filmes no último ano, sem jamais deixar
de compor personagens multifacetados apesar de quase sempre relegado a curtas
participações em Star Wars: O Despertar
da Força, Ex-Machina: Instinto
Artificial e Brooklin.
Entretanto, é realmente Leonardo
Di Caprio quem carrega mais do que o próprio corpo ferido pelo filme, levando
consigo também o peso dramático de todo o projeto, fazendo da sua performance
essencial para o seu funcionamento, e qualquer ator menos intenso e entregue o arruinaria
completamente. Expondo-se à neve, água gelada, terra e até a carcaças, o ator veste
a obstinação de Glass com vivacidade, rompendo inclusive uma dieta vegetariana
para se deixar devorar desesperado e esfomeado um pedaço de carne. Mudo por
quase toda a duração, Di Caprio é obrigado a apenas reagir a maior parte de
suas cenas, com expressões, olhares, grunhidos, posturas e movimentos. E ainda
assim, saímos da sessão tendo certeza de que conhecemos e entendemos Hugh Glass
como uma figura de três dimensões, alguém que mesmo amargurado e determinado a
se vingar não esquece de quem era, se permitindo uma pausa com um companheiro
índio, com quem saboreia a neve que cai na língua, e jamais esquecendo da dor
que experimenta, e a cada vez que ele parece se renovar em casulos pelo
caminho, é mais um pesar do que ódio que encontramos em sua expressão. Até que,
enfim, no desfecho, é apenas o luto amargurado que vemos tomar conta de sua
busca por Fitz, o “vilão” que a essa altura já está apropriadamente vestido
discretamente de roxo, cor que remete diretamente à morte.
Um confronto que supera a sua
própria simplicidade e se infla de grande força, principalmente através das
interpretações de Hardy e Di Caprio, mas também através daquilo que os cerca,
como a técnica e os símbolos – ainda que o meteoro simbolizando a ascensão violenta
e flamejante de uma pessoa seja reciclado de Birdman, de modo que posso jurar que foi usado o mesmo modelo
digital para concebê-lo aqui. O Regresso
ainda culmina em um clímax satisfatório e que faz jus à ferocidade apresentada antes, toda pontuada por uma trilha dissonante que por vezes investe
eficientemente em batidas altas e espaçadas que remetem à tribalidade,
ressaltando os conflitos não só físicos entre indígenas e “brancos”, como
também os sociais, o que poderia ser mais uma desculpa para Iñárritu querer
aprofundar o passado de Glass, mas que não funciona pelos mesmos motivos sobre
os quais argumentei antes, o que é uma pena, pois este sim é um tema sobre o qual
Alejandro tem bastante conhecimento, sendo que o choque entre intrusos
estrangeiros e nativos (decida você quem é quem) é foco central de ao menos
três de seus filmes, 21 Gramas, Babel e Biutiful. Felizmente, suas falhas tentativas de sofisticação
autoral não são suficientes para estragar o filme em análise aqui, soando mais
como um incomodo suportável do que como um defeito incontornável.
NOTA: 8/10
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