sábado, 6 de fevereiro de 2016

O REGRESSO


O Regresso é impressionante em seus aspectos técnicos, já se tornou até lugar comum afirmar. E apesar do que poderia ser acusado, a simplicidade da sua estrutura não lhe serve de demérito, pelo contrário, tem grande força a jornada de renascimento do protagonista, seja através dos seus símbolos ou da interpretação visceral de Leonardo Di Caprio. Porém, o próprio Alejandro G. Inñárritu, diretor e roteirista do projeto, parece desentender o poder da objetividade, e teme que o seu filme se torne simplório demais, se perdendo por vezes na sua excelência visual e adicionando elementos narrativos que não só destoam do resto do projeto, como também almejam uma maior complexidade que fragiliza o filme, já que esse funciona melhor, conforme apontei antes, como um arco simples, mas de força inegável.


A trama remonta um incidente acontecido no norte dos Estados Unidos com o explorador Hugh Glass (Di Caprio), que fazia parte de uma companhia comerciante de peles. Cercado por índios, o grupo é forçado para dentro da floresta, onde Glass é atacado por um urso, que o deixa em estado grave. Vendo-o como um fardo, os homens o deixam sob o cuidado de alguns voluntários, entre eles, Fitzgerald (Tom Hardy), que mata o filho de Hugh e o deixa para morrer. Entretanto, não é isso que acontece e Glass maneja se manter vivo para voltar e se vingar do assassino. A história do explorador que voltou depois de dado como morto se tornou famosa nos Estados Unidos e chegou mesmo a gerar outro filme, Fúria Selvagem, de 1971, em que o personagem recebeu o nome de Zachary Bass e era interpretado por Richard Harris. Os pormenores de sua expedição de volta são míticos, o que permitiu a cada versão fantasiar um pouco em cima dessa parte, não sendo diferente o que Iñárritu faz aqui.

O problema é que o realizador mexicano acredita precisar dar complexidade à relação e o passado de Glass, e já inicia o longa com uma montagem que explica sua história prévia com uma índia, que antes de acabar de forma trágica, gerou um filho seu. Porém, temendo talvez pela clareza dessa sequência de acontecimentos, o filme volta a trazê-la em forma de sonhos e alucinações que aspiram a uma poesia e abstração que estão simplesmente distantes do restante do tom que o resto do projeto adota. E se quando escrevi sobre Birdman no ano passado, indiquei como um ponto positivo daquele excelente longa-metragem que Alejandro parecia passivo às referências do seu diretor de fotografia, o brilhante Emmanuel Lubezki, que já firmou parcerias duradouras com Alfonso Cuáron – grande fã de longos planos – e Terrence Malick – dono de uma linguagem narrativa única justamente pelo tom poético e abstrativo -, aqui, tenho que apontar essa mesma característica como algo no mínimo problemático, pois embora os eximiamente bem executados planos sequência – em que Lubezki já se tornou autoridade – trabalhem a favor da trama, por outro lado, os interlúdios absorvidos esteticamente de A Árvore da Vida são aborrecidos, repetindo ideias que já teríamos compreendido mesmo que nenhum deles existisse e ainda arriscando a credibilidade do roteiro ao tentar expandir sua complexidade dramática para um nível que a aventura solo de Glass não sustenta, já que, repito, pela terceira vez, ela tem maior força quando se foca na sua objetividade.

Iñárritu, então, deveria ter absorvido por tabela a condução de Gravidade, dirigido por Cuáron e também fotografado por Lubezki, que, veja só, também conta sobre um protagonista em um ambiente hostil que, além de possuir um passado igualmente traumático, sobrevive a um acidente que deveria ter sido fatal e consegue arquitetar um retorno sofrido. Uma trama objetiva contada través de uma técnica irrepreensível que sobrevivia justamente pela sua simplicidade. E mesmo lá, brincando com cenários quase sempre digitais e uma câmera que não necessitava de eixo e lhe permitia os mais diversos movimentos, Cuáron não desperdiçava tempo exibindo-se com o seu poderio, como se isso adicionasse peso ao drama vivido pelos personagens, o que pode ser notado na duração de Gravidade, 91 minutos. Em contrapartida, temos os 156 minutos de O Regresso, que não raramente se detém em planos de belíssima plasticidade, mas que conversam menos com o enredo do que gostariam, como o momento em que Hugh observa uma avalanche gerada pelo som de um tiro, cena que deve ter entrado para o corte final apenas porque a produção provocou uma avalanche de verdade para filmá-la.

Porém, esses momentos, se incomodam, é mais por incharem a duração, já que, sim, por mais exibicionista que seja, uma avalanche de verdade impressiona, e quando esse é um dos planos menos admiráveis do filme, o resto só pode ser descrito como assustadoramente competente. Por exemplo, já nos primeiros minutos Iñárritu e Lubezki investem em um plano sequência cuja coreografia precisamente ensaiada constrói sem problemas o cenário de batalha por eles explorado, ao mesmo tempo em que estabelece o nível de violência que podemos esperar do resto da produção – não que Alejandro seja conhecido por ser pudico, e mesmo Birdman tinha sua parcela de choque visual. Filmado totalmente em luz natural, algo com que Lubezki já havia lidado antes em A Árvore da Vida, O Regresso traz como sua pérola técnica a antecipada sequência do ataque do urso, toda feita em um plano só, que integra maravilhosamente bem os movimentos de Leonardo Di Caprio aos da criação digital, com movimentos de câmera que se afastam e se aproximam da ação expondo tanto o preciosismo da maquiagem e da performance do ator, quanto a dimensão do embate. Algo que, em maior ou menor escala, é possível se notar em toda a duração do projeto, que aposta de maneira orgânica tanto em planos abertos que ajudam não só a sintonizar o espectador quanto aos espaços habitados pelos personagens, mas também ao confrontá-los com sua pequenez perante forças naturais como montanhas, planícies cobertas de neve e rios sinuosos, quanto naqueles mais fechados que exploram perigosamente os detalhes das próteses e pinturas que, incrivelmente, sobrevivem a closes com lentes grande-angulares que descortinam os menores poros nos rostos como o de Glass e Fitzgerald.

Esse último, aliás, confere maior nuances ao seu personagem trazendo sempre na cabeça uma bandana que cobre a cicatriz deixada por uma tentativa de escalpo, o que contrasta com sua tendência a raciocinar em cima de sua posição temerária e traiçoeira que ele não tem vergonha de admitir ser fruto justamente desse mesmo trauma. Ou seja, Fitz é um homem a quem o medo tornou perigoso, e Hardy reflete isso nas suas expressões que são quase sempre variações de uma fixa de espanto, terminando enfim de construir tridimensionalmente o seu personagem quando esse revela uma pequena história sobre seu pai, que aprofunda as suas fugas a apelos religiosos quando se encontra em desespero: “Deus é um esquilo... Ele atirou no filho da mãe e o comeu”. Mas Hardy não é o único dos coadjuvantes a se destacar, e Domhnall Gleeson merece uma menção depois de ter estado, tão articuladamente diferente, em nada menos do que quatro filmes no último ano, sem jamais deixar de compor personagens multifacetados apesar de quase sempre relegado a curtas participações em Star Wars: O Despertar da Força, Ex-Machina: Instinto Artificial e Brooklin.

Entretanto, é realmente Leonardo Di Caprio quem carrega mais do que o próprio corpo ferido pelo filme, levando consigo também o peso dramático de todo o projeto, fazendo da sua performance essencial para o seu funcionamento, e qualquer ator menos intenso e entregue o arruinaria completamente. Expondo-se à neve, água gelada, terra e até a carcaças, o ator veste a obstinação de Glass com vivacidade, rompendo inclusive uma dieta vegetariana para se deixar devorar desesperado e esfomeado um pedaço de carne. Mudo por quase toda a duração, Di Caprio é obrigado a apenas reagir a maior parte de suas cenas, com expressões, olhares, grunhidos, posturas e movimentos. E ainda assim, saímos da sessão tendo certeza de que conhecemos e entendemos Hugh Glass como uma figura de três dimensões, alguém que mesmo amargurado e determinado a se vingar não esquece de quem era, se permitindo uma pausa com um companheiro índio, com quem saboreia a neve que cai na língua, e jamais esquecendo da dor que experimenta, e a cada vez que ele parece se renovar em casulos pelo caminho, é mais um pesar do que ódio que encontramos em sua expressão. Até que, enfim, no desfecho, é apenas o luto amargurado que vemos tomar conta de sua busca por Fitz, o “vilão” que a essa altura já está apropriadamente vestido discretamente de roxo, cor que remete diretamente à morte.

Um confronto que supera a sua própria simplicidade e se infla de grande força, principalmente através das interpretações de Hardy e Di Caprio, mas também através daquilo que os cerca, como a técnica e os símbolos – ainda que o meteoro simbolizando a ascensão violenta e flamejante de uma pessoa seja reciclado de Birdman, de modo que posso jurar que foi usado o mesmo modelo digital para concebê-lo aqui. O Regresso ainda culmina em um clímax satisfatório e que faz jus à ferocidade apresentada antes, toda pontuada por uma trilha dissonante que por vezes investe eficientemente em batidas altas e espaçadas que remetem à tribalidade, ressaltando os conflitos não só físicos entre indígenas e “brancos”, como também os sociais, o que poderia ser mais uma desculpa para Iñárritu querer aprofundar o passado de Glass, mas que não funciona pelos mesmos motivos sobre os quais argumentei antes, o que é uma pena, pois este sim é um tema sobre o qual Alejandro tem bastante conhecimento, sendo que o choque entre intrusos estrangeiros e nativos (decida você quem é quem) é foco central de ao menos três de seus filmes, 21 Gramas, Babel e Biutiful. Felizmente, suas falhas tentativas de sofisticação autoral não são suficientes para estragar o filme em análise aqui, soando mais como um incomodo suportável do que como um defeito incontornável.


NOTA: 8/10


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