quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

FILHO DE SAUL


Filmado na fechada razão de aspecto 1.37:1*, com baixíssima profundidade de campo e montado em longos planos sequência que quase nunca abandonam a nuca do personagem título, Filho de Saul nos força assim a uma perspectiva claustrofóbica e angustiante, construindo situações e ambientes complexos apenas com os sons e borrões que cercam o protagonista, um judeu obrigado a trabalhar no campo de Auschwitz, na Alemanha nazista. Nesse sentido, o filme poderia ser considerado tão 3D quanto qualquer outra produção hollywoodiana que viesse com os óculos junto, pois sua capacidade de instigar a imaginação do espectador a trabalhar a seu favor, tem como resultado a sensação de que, apesar de não ser possível ver muito dos cenários e acontecimentos por onde passa Saul, esses mesmos possuem profundidade e tridimensionalidade palpáveis, e por isso mesmo, uma dimensão totalmente nova: o desespero.

* Razão de aspecto é o formato da imagem do filme, pra quem não sabe, e nesse caso ela é bem quadrada (1:37:1), que já foi padrão, e que é diferente dos formatos  retangulares e abertos a que estamos acostumados hoje em dia.

A maior parte dos espectadores não percebe a maior parte de qualquer filme, ou seja, absorvem apenas as suas camadas mais superficiais. Por isso (também, vale ressaltar) que gêneros como a comédia, o drama e o terror se tornaram tão populares com o tempo, pois as reações a que induzem superficialmente são de fácil identificação com qualquer público. E ainda nesse raciocínio, por isso (também!) que filmes que procuram outras reações menos comuns - ou ainda essas mesmas que acabei de citar - mas através de temáticas ou narrativas alternativas, estejam quase sempre relegados a nichos, sendo classificados pela grande massa diretamente como “ruins”. Ora, se uma comédia que faz rir é boa, assim como um drama que emociona e um terror que assusta também o são, por que um filme incomodativo que incomoda é ruim? A resposta, é claro, seria: não é. Ao menos não devido a isso. O problema é que os elementos que fazem surtir reações no espectador, nesse tipo de obra estão normalmente em níveis mais cuidadosos de análise, muito embora sejam eficazes tanto no público ciente quanto naquele inconsciente deles. O que enfim me traz de volta a Filho de Saul, um projeto que é eficiente em conscientizar a plateia das possibilidades narrativas, já que seus métodos para causar desconforto são imediatamente observáveis. São, na verdade, os astros principais desse longa-metragem húngaro.

A fotografia, sendo o mais óbvio deles, nos coloca no lugar de Saul com facilidade, alienando e privando de informações, provocando um sentimento de angústia que provavelmente deveria ser padrão entre os prisioneiros dos campos de concentração nazista. E mesmo que a qualquer um deles fosse dada a certeza inconteste de que sairia dali vivo, ainda assim a abordagem visual do longa-metragem reproduziria ao menos com fidedignidade a sensação de se ver preso e obrigado a trabalhar em um lugar tão labiríntico e fechado e construído para fins tão hediondos. As figuras desfocadas de corpos nus e cobertos de feridas parecem enfeitar quase todos os cômodos e corredores da instalação, jogados em uma pilha que surge no canto da tela aqui, ou arrastados por outros judeus para as fornalhas, no fundo de um plano ali, como se fossem sacos de batatas ou qualquer carga inanimada dessas. E é difícil, para qualquer um que possua um mínimo de humanidade, não questionar quem terão sido eles, que histórias não teriam para contar, quais teriam sido os seus desejos, seus medos, seus amores e suas coisas favoritas, muitas das quais vemos sendo recolhidas, selecionadas e classificadas pelo grupo de prisioneiros.

Porém, como a maior parte do que vemos em tela é Saul e os borrões em volta dele, cabe ao design de som expandir não só aquele universo, como também as possibilidades narrativas do filme a que serve. Assim, é com horror que ouvimos centenas de vozes presas em uma câmara de gás, prestes a serem assassinadas em massa, começarem a entrar em pânico, gerando uma onda crescente de protestos desesperados até o ponto em que ficam ensurdecedores e nem mesmo o filme parece ser forte o suficiente para sustentá-los, preferindo cortar de maneira seca. Do mesmo modo, Filho de Saul constrói cenários como as fornalhas, o rio, os exteriores do campo e confrontos e multidões usando apenas a sonoplastia, sem nunca mostrar mais do que o necessário. O que, aliás, faz com que nosso único elo emocional com o projeto seja Géza Röhrig, que pelos objetivos pessoais do personagem, ou pela sua performance baseada em expressões fechadas e obcecadas, quase nunca desperta a mossa torcida, o que acaba comprometendo o envolvimento, ainda mais quando o filme se demora demais em situações que, pelo sentimento geral de desesperança, não evocam tensão ou choque, por mais terríveis que sejam. 

Claro, há de se relevar um pouco a postura de Saul, desistente frente a planos de fuga e alertas de perigo dos colegas prisioneiros, já que trata-se de um homem que busca desesperadamente apenas por um último traço de sua própria cultura. E tendo em vista que parte das funções de Saul era recolher os pertences das vítimas da câmara de gás e ajudar a separá-los e classificá-los, é possível entender a sua angústia em meio a processos que retiravam a identidade cultural mesmo de pessoas mortas, como se passassem cada leva em um grande processador de gente que cuspisse do outro lado bens materiais de vários tipos. O que é, na verdade, só um exemplo prático do que faz qualquer doutrina dogmatizadora e excludente, e acompanhar e peça mais baixa de sua hierarquia só faz perceber quanto peso e pressão fazem todo o resto acima, esmagando as vítimas na parte debaixo. Por vezes literalmente, em outras psico e moralmente, mas sempre de maneira histórica.



NOTA: 7/10


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