Filmado na fechada razão de aspecto
1.37:1*, com baixíssima profundidade de campo e montado em longos planos sequência
que quase nunca abandonam a nuca do personagem título, Filho de Saul nos força assim a uma perspectiva claustrofóbica e
angustiante, construindo situações e ambientes complexos apenas com os sons e
borrões que cercam o protagonista, um judeu obrigado a trabalhar no campo de
Auschwitz, na Alemanha nazista. Nesse sentido, o filme poderia ser considerado
tão 3D quanto qualquer outra produção hollywoodiana que viesse com os óculos
junto, pois sua capacidade de instigar a imaginação do espectador a trabalhar a
seu favor, tem como resultado a sensação de que, apesar de não ser possível ver
muito dos cenários e acontecimentos por onde passa Saul, esses mesmos possuem
profundidade e tridimensionalidade palpáveis, e por isso mesmo, uma dimensão totalmente
nova: o desespero.
* Razão
de aspecto é o formato da imagem do filme, pra quem não sabe, e nesse caso ela
é bem quadrada (1:37:1), que já foi padrão, e que é diferente dos formatos retangulares e abertos a que estamos
acostumados hoje em dia.
A maior parte dos espectadores
não percebe a maior parte de qualquer filme, ou seja, absorvem apenas as suas camadas
mais superficiais. Por isso (também, vale ressaltar) que gêneros como a
comédia, o drama e o terror se tornaram tão populares com o tempo, pois as
reações a que induzem superficialmente são de fácil identificação com qualquer
público. E ainda nesse raciocínio, por isso (também!) que filmes que procuram
outras reações menos comuns - ou ainda essas mesmas que acabei de citar - mas
através de temáticas ou narrativas alternativas, estejam quase sempre relegados
a nichos, sendo classificados pela grande massa diretamente como “ruins”. Ora,
se uma comédia que faz rir é boa, assim como um drama que emociona e um terror
que assusta também o são, por que um filme incomodativo que incomoda é ruim? A
resposta, é claro, seria: não é. Ao menos não devido a isso. O problema é que
os elementos que fazem surtir reações no espectador, nesse tipo de obra estão normalmente
em níveis mais cuidadosos de análise, muito embora sejam eficazes tanto no público
ciente quanto naquele inconsciente deles. O que enfim me traz de volta a Filho de Saul, um projeto que é
eficiente em conscientizar a plateia das possibilidades narrativas, já que seus
métodos para causar desconforto são imediatamente observáveis. São, na verdade,
os astros principais desse longa-metragem húngaro.
A fotografia, sendo o mais óbvio
deles, nos coloca no lugar de Saul com facilidade, alienando e privando de
informações, provocando um sentimento de angústia que provavelmente deveria ser
padrão entre os prisioneiros dos campos de concentração nazista. E mesmo que a
qualquer um deles fosse dada a certeza inconteste de que sairia dali vivo,
ainda assim a abordagem visual do longa-metragem reproduziria ao menos com
fidedignidade a sensação de se ver preso e obrigado a trabalhar em um lugar tão
labiríntico e fechado e construído para fins tão hediondos. As figuras
desfocadas de corpos nus e cobertos de feridas parecem enfeitar quase todos os
cômodos e corredores da instalação, jogados em uma pilha que surge no canto da
tela aqui, ou arrastados por outros judeus para as fornalhas, no fundo de um
plano ali, como se fossem sacos de batatas ou qualquer carga inanimada dessas.
E é difícil, para qualquer um que possua um mínimo de humanidade, não
questionar quem terão sido eles, que histórias não teriam para contar, quais
teriam sido os seus desejos, seus medos, seus amores e suas coisas favoritas,
muitas das quais vemos sendo recolhidas, selecionadas e classificadas pelo
grupo de prisioneiros.
Porém, como a maior parte do que
vemos em tela é Saul e os borrões em volta dele, cabe ao design de som
expandir não só aquele universo, como também as possibilidades narrativas do
filme a que serve. Assim, é com horror que ouvimos centenas de vozes presas em
uma câmara de gás, prestes a serem assassinadas em massa, começarem a entrar em
pânico, gerando uma onda crescente de protestos desesperados até o ponto em que
ficam ensurdecedores e nem mesmo o filme parece ser forte o suficiente para
sustentá-los, preferindo cortar de maneira seca. Do mesmo modo, Filho de Saul constrói cenários como as
fornalhas, o rio, os exteriores do campo e confrontos e multidões usando apenas
a sonoplastia, sem nunca mostrar mais do que o necessário. O que, aliás, faz
com que nosso único elo emocional com o projeto seja Géza Röhrig, que pelos objetivos pessoais do personagem, ou pela sua performance baseada em
expressões fechadas e obcecadas, quase nunca desperta a mossa torcida, o que acaba comprometendo o envolvimento, ainda mais quando o filme se demora demais em situações que, pelo sentimento geral de desesperança, não evocam tensão ou choque, por mais terríveis que sejam.
Claro, há de se relevar um pouco a postura de Saul, desistente
frente a planos de fuga e alertas de perigo dos colegas prisioneiros, já que trata-se de um homem que busca desesperadamente apenas por um
último traço de sua própria cultura. E tendo em vista que parte das funções de
Saul era recolher os pertences das vítimas da câmara de gás e ajudar a
separá-los e classificá-los, é possível entender a sua angústia em meio a
processos que retiravam a identidade cultural mesmo de pessoas mortas, como se
passassem cada leva em um grande processador de gente que cuspisse do outro
lado bens materiais de vários tipos. O que é, na verdade, só um exemplo prático
do que faz qualquer doutrina dogmatizadora e excludente, e acompanhar e peça
mais baixa de sua hierarquia só faz perceber quanto peso e pressão fazem todo o
resto acima, esmagando as vítimas na parte debaixo. Por vezes literalmente, em
outras psico e moralmente, mas sempre de maneira histórica.
NOTA: 7/10
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