sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AQUARIUS



Quando em certo momento de Aquarius, depois de investir em uma longa cena em torno da visita dos filhos de Clara (Sônia Braga) à casa de sua mãe (quando mantém planos fechados que nos aproximam daqueles personagens), Kleber Mendonça Filho enquadra a protagonista de longe se despedindo deles, recuando o zoom enquanto revela a pequenez da mulher em meio a um pátio vazio e estruturas desabitadas, fica claro que estamos diante de uma obra sobre perda e solidão. Não só em relação às pessoas que amamos, aos lugares e às memórias que os recheiam, mas também como indivíduos em uma existência que, pela desigualdade social, ou até pela resistência em abandonar uma estrutura que há muito não abriga mais o calor de outrora, sempre acaba encontrando um jeito de nos fazer encarar o protagonismo que temos de assumir em nossas próprias lutas.


Começando no ano de 1980, o longa se demora em um prólogo que se mostrará essencial para compreendermos a resiliência de Clara em não abandonar o seu apartamento e, em maior escala, o seu querido prédio de nome Aquarius. Com uma fotografia quente, banhada em luzes tungstênio, Mendonça Filho estabelece nessa sequência o clima acolhedor daquele ambiente, quando vizinhos e a família da então jovem protagonista (vivida nessa fase por Barbara Colen) comemoram o aniversário de 70 anos de Tia Lucia (Thaia Perez), que com seus cabelos brancos e pele frágil, não consegue evitar de se perder em lembranças dentro do apartamento – já conduzindo o espectador a se sensibilizar por aquele espaço, entendendo que as memórias daquela família estão gravadas naquelas paredes desde muito antes de Clara.

Pulando então para os dias atuais, a reencontramos já na pele de Braga, sob uma fotografia dessaturada e ainda morando no mesmo lugar, tendo como única companhia sua empregada, Ladjane (Zoraide Coleto). Nesses dias, Clara encontra amizade na figura do salva-vidas da praia em frente ao prédio, Roberval (Irandhir Santos), e é incomodada constantemente por uma construtora chamada Bonfim (um nome que se revelará irônico), que representada pelo jovem e carismático Diego (Humberto Carrão), tenta comprar dela o seu apartamento, o único que não pertence à empresa e que ainda é habitado no edifício Aquarius. E embora nos sintamos inclinados a concordar com o empreiteiro, que sempre gentil e paciente, não cansa de ressaltar os perigos de uma mulher de idade morar sozinha em um prédio tão antigo e aberto, o diretor e roteirista do projeto sugere sobre ele, de formas discretas, uma natureza sombria, gananciosa e imperialista: primeiro, o apresenta escoltado nas sombras por uma espécie de secretário que traz nas mãos um molho absurdo de chaves, revelando não só as diversas posses conquistadas por Diego, como também sua vaidade em exibir essas “vitórias” como um estandarte; depois, para concluir uma cena de embate entre Clara e ele, o cineasta toma o cuidado de enfocar os dois arrancando seus carros em direções diametralmente opostas, deixando óbvia a natureza divergente de seus ideais.

Encarnada por Sônia Braga com sua habitual naturalidade (sempre impressionante), Clara é uma mulher de personalidade forte, mas que jamais deixa de transparecer a natureza acolhedora que a vida familiar dentro daquele prédio lhe garantiu ter. Embora acuse certa amargura e dureza pelos anos de isolamento e de luta contra um câncer de mama, cuja enorme cicatriz deixada no lugar do seio direito (criada com uma ótima maquiagem e efeitos digitais) Braga exibe na tela de forma corajosa, despudorada em relação ao seu corpo sexagenário. Enquanto isso, Irandhir Santos emprega sua gentileza intrínseca para compor e fazer crescer um personagem mais secundário, que em outras mãos poderia ter passado despercebido.

Criando sequências magnéticas que saltam da comédia ao drama, do contemplativo ao suspense, do etéreo ao terror (fazendo funcionar, inclusive, uma daquelas cenas clichês de pesadelo), Kleber Mendonça Filho consegue com impressionante coesão manter um tom próprio e não desfocar a atenção da trajetória de sua protagonista. Muito embora ele também vença um obstáculo que é motivo de tropeço comum no cinema de larga escala, e jamais ignora que seus personagens coadjuvantes têm histórias e dramas singulares também. Assim, sempre que coloca em pauta a amizade entre Clara e Ladjane, é impossível que o filme não se pegue debatendo as desigualdades sociais entre patroa e empregada (ela, negra), ressaltando a divisão bruta entre a área bem abastada, onde a primeira mora, e a mais pobre onde vive a doméstica - contrapondo um alto prédio corporativo que tem como plano de fundo milhares de moradias modestas de tijolos à vista, ou estabelecendo que o fim da “praia dos ricos” é um cano de esgoto. Deste modo, quando alguém aponta certa hipocrisia num discurso de Clara, ou quando Ladjane interrompe uma reunião familiar de sua patroa em que todos admiravam fotos antigas, para mostrar um retrato de seu próprio filho, atropelado e morto por um ricaço bêbado que jamais foi punido, é natural e (obviamente) proposital que nos sintamos incomodados por: 1) estarmos absortos demais no drama daquela proprietária branca e rica; e 2) pelo filme nos negar seguirmos acompanhando a empregada ou uma solução justa para o seu conflito.

O cineasta aponta, desta maneira, que os preconceitos e ausências veladas que se impregnam em nossa rotina, acabam por corroer os nossos laços afetivos para com outros seres humanos. Não deixando então de ser o câncer de Clara um símbolo para essa “doença” social, e é notório que, hoje distante dos filhos, o mal tenha lhe custado o seio com que costumava amamenta-los. De uma forma ainda mais simbólica, o desfecho (calma, não pretendo conta-lo), embora represente uma solução engenhosa e sombria para os objetivos de certo personagem, acaba se revelando uma rima elegante para essa ideia de uma doença cancerosa que cresce e toma conta de um corpo até mata-lo.


Pontuado ainda por uma seleção pouco óbvia de excelentes canções nacionais e internacionais (que associadas à divisão do filme em capítulos, pode remeter ao estilo de Quentin Tarantino – e as comparações acabam aí), Aquarius ainda pincela, de maneira respeitosa, críticas a outros problemas sociais (além do capitalismo cego), como a homofobia, o patriarcado, o pudor em torno da libido feminina e as exageradas liberdades concedidas para apenas certas religiões, entre outros tópicos. Encabeçada por uma performance que, em um mundo justo, já teria um Oscar nas mãos, a produção é mais um destaque na carreira de Kleber Mendonça Filho, que depois de entregar o excelente O Som ao Redor, comprova sua sensibilidade com essa indiscutível obra-prima.


NOTA: 10/10


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