quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A GRAVIDADE DE LEMBRAR

Conto escrito pela minha pessoa:



Não conseguia mais dormir na sua cama. Já fazia algum tempo que uma mão pútrida batia na janela. Mosine agora se remexia no sofá da sala, sob a fina coberta que protegia sua pele do vento uivante que rebatia na soleira de entrada e passava por debaixo da porta.


Era uma mistura estranha de frio e calafrio, mas na prática o efeito era o mesmo. O relógio na parede, desses em forma de gato, em que a cauda pendula e os olhos felinos valsam de um lado pro outro, marcava 3 horas. O problema é que essa era a segunda vez que os ponteiros voltavam a esse número nesta mesma noite.



Não sabia se dormira demais ou de menos, mas tinha certeza de que a lua estava parada no mesmo ponto do céu, podia jurar. Antigamente aquela bola prateada fora sua melhor amiga, quando da sua cama conseguia enxergar todo o céu, estivesse estrelado ou açoitando as vidraças com chuva. Agora aquela luz fantasmagórica não passava de um farol agourento.

“Blunk! Blunk! Blunk”! fazia uma das gavetas na cômoda do corredor. Algo a estava esmurrando por dentro, fazendo o móvel todo chacoalhar e os delicados objetos sobre ele bambolearem vertiginosamente. A casa toda parecia velha naquele momento, e não importa para onde fugisse, algo começava a ranger e estalar. Tinha certos livros na estante que pareciam querer escorrer para fora das prateleiras, prontos para se abrirem no chão, enquanto uma das cadeiras na cozinha resmungava como se alguém muito pesado se mexesse sobre ela.

Com a coberta felpuda enrolada em si, Mosine tocou alguns pedaços de lenha na lareira e esperou o fogo crepitar, sentando-se no chão com as costas no sofá. Com as mãos ásperas de sujeira, percebeu que o chão estava poeirento, como se não fosse limpo há anos. Espanou-as uma na outra e juntou da mesa de centro (que não ficava no centro) um livro que vinha lendo para se distrair. Esse não escorria, não batia ou lamuriava, nunca o tinha aberto antes, e diferente dos tomos inquietos que arquejavam na estante, estava limpo, como se tivesse acabado de ser comprado.

Ignorando os solavancos na gaveta, o teto que gemia, como se alguém no andar de cima se arrastasse pelo chão, e também o distante “Tum! Tum! Tum!” das batidas da mão no vidro do seu quarto, retomou a leitura de um ponto interessante em que parara, tentando encarar o assovio do vento como a música de algum filme antigo de faroeste, passando em uma televisão que não estava ali: “...massa e energia formam gravidade, que por sua vez deforma o espaço-tempo...”. Mosine levantou a cabeça e olhou para a estática lua pela janela da sala, e pensou se o tempo na Terra teria parado por causa de algo parecido.

Não entendia merda alguma de astrofísica, mas tinha absoluta certeza de que já deveria ter amanhecido há muito tempo. Voltando os olhos para a página, encontrou uma frase algumas linhas abaixo, que dizia: “...o tempo estaria mais comprimido quando próximo de uma singularidade, passando mais devagar em relação a um observador que se mantivesse à distância...”. Novamente Mosine sentiu que deveria observar o luminoso astro no céu, mas dessa vez encontrou a visão obstruída por um vulto macilento do lado de fora, que com uma mão apodrecida, batia no vidro fazendo “Tum! Tum! Tum!”.

Saltou para o lado deixando escapar um grito curto, arrastando-se no chão empoeirado até bater com as costas na estante, de onde não conseguia mais enxergar a janela nem a coisa do lado de fora. “BRAK!” estourou um livro no chão ao seu lado, abrindo uma enorme rachadura no chão. Embora fosse menor do que o outro tomo que tinha nas mãos, esse era bem mais pesado, e mal conseguiu arrastá-lo alguns centímetros para poder passar, ainda engatinhando de costas. Reconhecia a capa muito bem, e não tinha tempo para lhe lançar outro olhar.

Escondeu-se na cozinha, sob a mesa, observando que, seja lá o que estivesse batendo na janela da sala, não produzia sombra no chão mesmo com a forte luz lunar que entrava por ali. Recolhendo os pés para que ficassem enrolados nas cobertas e exatamente embaixo do tampão, porque isso lhe fazia sentir melhor, notou que agora o relógio, na parede oposta de onde estava, marcava quase 7 horas. O mais estranho, porém, foi notar que ele parecia acelerar, e já quase não conseguia distinguir o longo ponteiro vermelho dos segundos, agora não mais do que uma mancha rubra no disco numérico.

Quando já não conseguia enxergar nem mesmo o curto ponteiro das horas, devido a sua velocidade, Mosine notou, não sem arregalar os olhos e sentir um puxão dentro do umbigo, que a cadeira ao seu lado estava com as pernas vergadas, prestes a explodir sob o peso de algo que não conseguia ver. Rolou o seu corpo para o lado a tempo de evitar o jorro de farpas que voaram em todas as direções quando a estrutura cedeu e grudou no chão esmagada. Aquele velho assento viu dias demais, mas em nenhum deles desfrutara de seu conforto. Naquela casa que agora parecia velha, a cadeira de Mosine sempre fora a que estava logo ao lado dessa, que agora jazia destruída.

“Tum! Tum! Tum!” fez o vidro da janela da cozinha logo atrás. Sem parar para confirmar do que se tratava, se lançou pelo chão imundo, coberto de folhas secas e insetos mortos, em direção à sala outra vez. O cobertor ficou enganchado na velha cadeira, e agora distante, tinha uma aparência desbotada, desfiada e corroída. Esperava sentir calor à esquerda quando passasse pela lareira, mais a encontrou apagada. Além disso, parecia que a parte de cima havia despencado para dentro da chaminé, e seus destroços estavam depositados onde antes estava a lenha. Engatinhou para a parede, logo abaixo do relógio, que agora, ela notava, seguia em velocidade normal. Muito embora o rabo do gato não balançasse mais com o mesmo vigor e um dos olhos com pupila vertical estivesse travado pelo acúmulo de sujeira – deixando-o estranhamente estrábico.

Na cozinha, pela pequena basculante sobre a pia, uma mão descarnada de tons escuros se estendia para dentro, agarrando uma das lâminas da janela e arranhando o vidro com suas compridas unhas negras. Mosine olhou mais para o lado, e percebeu que as prateleiras das estantes estavam inclinadas para frente, estalando enquanto os livros nela pareciam força-la para baixo, até que uma das lombadas que mais abrira na vida, tombou junto ao outro pequeno tomo que já estava no chão, aumentando a rachadura de maneira a formar, na verdade, um buraco. Mais uma vez, o livro parecia ter um peso muito maior do que deveria. Outro deles despencou então, e com o choque todo aquele pedaço do chão cedeu com um grande estalo, fazendo com que, estrondosamente, todos os outros livros caíssem ali. A casa inteira tremeu, a estante e todos os livros foram engolidos pela escuridão enquanto o piso de madeira inclinou na direção da cratera que se formara.

Mosine agarrou numa rachadura entre duas tábuas, e contemplou o relógio de gato abandonar a parede quando essa também se inclinou para frente. O objeto quicou uma vez na madeira antes de se dividir em dezenas de pedaços que saíram rodopiando para o buraco. O sofá escorregava vagarosamente, devido a seu peso, como se dançasse em direção a um precipício; a cadeira despedaçada na cozinha também deslizava na direção do abismo, mas seja qual fosse o peso que a tinha quebrado, parecia ainda estar sobre ela, pois a frágil madeira arrastava consigo o ladrilho do chão como uma escavadeira faria. Atrás disso tudo, conseguiu perceber que tudo aquilo fizera com que as paredes se inclinassem de formas alongadas, despedaçando o marco da porta dos fundos e deixando-a pendendo apenas nas dobradiças. Lenta como uma cobra, a mão decomposta empurrou a folha de madeira pelo trinco, e foi seguida por um corpo de ângulos estranhos que escorria como cera de vela. Sua barriga projetada não fazia distinção com o fim do peito e o início da papada; das laterais dessa forma se projetavam ombros ossudos que seguravam braços grossos e retos. O que deveria ser o rosto, porém, era uma forma mais familiar. As órbitas que deveriam abrigar os olhos eram covas fundas e escuras, e a boca parecia menos isso do que um rasgo dentado. Apesar da monstruosidade daquela criatura, sua concepção básica lhe remetia a algo.

Com uma leveza insuspeita, a coisa familiar atravessou a cozinha, passando por cima da cadeira que agora afundava o chão na borda do buraco, aumentando-o. Com um movimento que deveria ter lhe custado a estrutura óssea, a coisa desviou da cômoda com a gaveta palpitante quando essa se precipitou para a cratera também, a tempo de finalmente deixar seu inquieto conteúdo explodir para fora: um velho álbum de fotografias que arrebentou o madeirame e mergulhou para o escuro como uma âncora, muito mais pesado e rápido do que o próprio móvel. Agora só havia uma estreita tábua em frente à lareira que poderia permitir à coisa (que se assemelhava com algo de maneira vaga) chegar ao outro lado da sala. A criatura colocou um pé grande sobre a tábua, que sequer rangeu. Ela era como um borrão, com as formas difíceis de delimitar, como se a visão estivesse embaçada somente no que tangesse o seu corpo. Ainda agarrada à rachadura no chão, Mosine não pode deixar de espiar para baixo e enxergar lá uma escuridão que parecia sólida. Tinha certeza de que se escorresse para dentro, cairia por quilômetros até se achatar contra uma grande superfície negra. Então o teto estalou alto, ela olhou para cima e constatou que ele estava abaloado, até que a envergadura do piso de cima cedeu e tudo caiu, arrastado por um pequeno objeto. Antes que sumisse nas trevas, ela reconheceu o par de sapatos pretos que ainda hoje eram guardados embaixo da sua cama, e que um dia, lustrosos, tinham dançado junto dos seus, cor-de-pérola. A cama foi a próxima coisa a escorregar do andar de cima, e terminou de levar o chão do primeiro andar consigo. Separadas agora por uma trincheira, Mosine e a criatura se encaravam.


Não havia nada pairando entre eles, nem mesmo poeira suspensa. Era possível afirmar que o próprio tempo estava congelado naqueles poucos metros, e se qualquer um deles se movesse, descobririam que não existia espaço também entre seus rostos. Apenas uma fina membrana de infinito dividia seus lados. Mosine fechou os olhos, esperando.

O que viu, entretanto, era iluminado pela luz do sol, parecia macio, quente e cobria suas costas. Ao abri-los novamente, a coisa estava mais definida, suas formas também pareciam menos estranhas, mais próximas de um ser humano. Porém, o chão aos seus pés cedeu alguns centímetros.

Ela fechou novamente as pálpebras e agora não tinha mais sol, mas uma pálida luz cinzenta que atravessava uma janela que sacolejava, como em um ônibus. Ao longe, uma risada muito próxima ao ouvido fez os cabelos da sua nuca arrepiarem com o hálito quente que se espalhou por trás da orelha e para dentro da gola da camiseta.

Abrindo novamente os olhos, descobriu que agora sua assombração era definitivamente uma pessoa, com a pele mais lisa e menos pálida, seus contornos, como vistos através de uma lente, vagarosamente estabeleciam um foco e adquiriam nitidez. Entretanto, a beirada em que estava estalou, cedendo um tanto mais.

Uma última vez fechou os olhos, e como se tivesse acabado de ser dito, ainda gravado na vibração dos tímpanos, ouviu um comentário engraçado. Riu, porque entendia as dezenas de por menores do contexto daquela fala. E mais uma vez, reabriu os olhos.

Ainda em tempo, viu a beirada ceder e a coisa cair, arrastando consigo todo o resto. Já com uma forma definida, reconhecia inteiramente seu rosto. Os olhos não eram crateras, mas profundos. A boca, longe de ser um rasgo, sorria radiante.

Toda a casa pareceu convergir para o buraco. Mosine baixou a cabeça com tranquilidade, as lascas e pedaços grandes de alvenaria desviando por milímetros do seu corpo. Repousou o rosto sobre as mãos e esperou o barulho cessar.

Quando se levantou, somente o pedaço de chão em que estivera segurando e mais um ou outro de madeira ainda se projetavam para a beira do enorme buraco, que agora, podendo enxerga-lo em toda sua dimensão, duvidava que jamais fosse ser preenchido outra vez. Mosine foi embora.

Descobriu que ao redor da casa, a vegetação havia crescido de forma desproporcional. Já distante dela, quando o sol amanhecia, notou que as pessoas tinham mudado, e o tempo não era mais o mesmo.

Apesar de ainda sentir o suor da ultima noite escorrer pelo rosto, seu terror foi perceber que para o mundo, aquilo tudo era memória.



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