sexta-feira, 18 de outubro de 2013

OS SUSPEITOS



Os Suspeitos é um exemplo, cada vez mais raro, de um filme que confia na inteligência do público. Melhor, ele instiga e desafia essa inteligência, forçando e dando inúmeras oportunidades de interação para o espectador, e qualquer preguiçoso sentado na sala escura esperando que algum personagem desate a falar sozinho, explicando fatos da trama em detalhes, sairá dessa sem compreender quase nada do longa dirigido por Denis Villeneuve. Não que o filme seja demasiado complexo, confuso ou subjetivo, ele apenas prefere deixar para nós a tarefa de fazer as ligações necessárias entre as pistas, de ouvir os testemunhos dos envolvidos enquanto tiramos nossas próprias conclusões. E também de compreender toda a trama sozinhos ao final, enquanto apenas entrega os fatos. Mas como se não fosse imersão suficiente essa de nos colocar junto aos personagens como detetives, a história ainda estabelece uma atmosfera densa, crua e claustrofóbica, que habitada por figuras complexas e profundas, fazem desse, ao lado de Gravidade e Antes da Meia-Noite, um dos melhores filmes do ano.


O roteiro de Aaron Guzikowski desenvolve a história do desaparecimento de duas meninas durante um almoço entre as famílias de Keller Dover (Hugh Jackman) e Franklin Birch (Terrence Howard), ambas, filhas caçulas de cada um deles. Encarregado da investigação, o detetive Loki (Jake Gyllenhaal) não demora a achar e prender o principal suspeito, o jovem Alex Jones (Paul Dano), que logo é solto por falta de provas, causando a ira de Keller e sua posterior obsessão com o garoto. Assim, começamos a acompanhar a trajetória dessas duas figuras paralelamente. A do pai angustiado e a do detetive comprometido, enquanto cada um ao seu próprio modo investiga o paradeiro das pequenas Joy e Anna.


Deixar que investiguemos o caso junto com seus dois protagonistas é um dos principais méritos de Guzikowski, que junto com Villeneuve, não permite que elementos importantes chamem atenção para si mesmos. Apenas mostrando Loki achando um pé de meia num canteiro, por exemplo, diretor e roteirista confiam que o espectador entenderá uma parte importantíssima da história, deduzindo sozinho uma série de eventos e intenções por trás desses, que jamais são mostrados ou citados. Até mesmo a montagem de Joel Cox e Gary Roach investe calculadamente em fade outs, sugerindo com sutileza acontecimentos que por sua obviedade, não precisam tomar tempo em tela e podem muito bem serem imaginados por aqueles do lado de cá. O que aos poucos vai fazendo da experiência de se assistir ao filme recompensadora, ao passo em que vamos fazendo ligações entre as pistas: o apito, o colar, uma notícia antiga, etc.


Mas os desafios aos dons investigativos do espectador não param na direção, no roteiro e na montagem, pois até os figurinos e a composição dos personagens nos convidam a descobrir mais sobre eles. O Loki de Jake Gyllenhaal, por exemplo, parece extravasar o nervosismo e a ansiedade através de tiques como o de se forçar a piscar os olhos, algo que também pode ser interpretado como uma maneira simbólica do detetive de tentar limpar as vistas para poder "enxergar melhor" o quebra-cabeça a sua frente. Símbolos, aliás, definem o seu personagem, que usa discretamente (e o filme trata isso com muita discrição) um anel maçônico, representando não só sua filiação à sociedade como também aquilo que ele é dentro da trama, um ícone de crenças (pra quem não sabe a Maçonaria aceita membros de inúmeras religiões), já que é nele que são depositadas todas as esperanças fervorosas das famílias Dover e Birch. E é interessante que sendo um Maçom, Loki carregue diversos símbolos de diversos credos pelo corpo, como tatuagens do zodíaco nos dedos, de uma cruz na mão e de um octagrama no pescoço - associado comumente ao renascimento, algo pelo que Keller, advertido pelo policial, acaba passando de certa maneira.


Já os figurinos de Renée April, junto à fotografia do mestre Roger Deakins, fazem jus ao título original, o muito mais cabido Prisioneiros. Quase nunca permitindo que algum horizonte seja visto, os enquadramentos de Deakins são compostos de elementos claustrofóbicos, que sempre encarceram seus personagens de alguma forma. Assim, árvores e outras formas de linhas, verticais e horizontais, parecem preencher ao fundo muitos dos planos, como se fossem grades de uma cela, que é o que se tornou a vida daquelas famílias, presas na angústia. E quando não é o caso, a chuva, ambientes fechados e até mesmo a escuridão fazem esse papel de enclausurar os personagens dentro de suas próprias histórias. Figuras essas que são vestidas com marrom, bege, preto e cinza na maior parte do tempo, quase como se vestissem um uniforme, como em um presídio, mas que também servem para dissolvê-los em meio aos cenários baseados nas mesmas cores. Esse toque de melancólico encarceramento é exprimido pelo diretor de fotografia com habilidade ao banhar sua paleta de cores com uma dessaturada tonalidade que pende sempre para o cinza, algo que também traz certa crueza para a narrativa.


Uma atmosfera incomodativa que é habitada por figuras que são trágicas a altura. Jackman se beneficia de sua persona carrancuda para fazer de Keller um homem determinado, convicto do que acredita, e essa fé cega do personagem em suas próprias crenças é também muito bem explicada por elementos como sua religiosidade, denunciada pelos crucifixos vistos em seus carro e pescoço ou pelas constantes preces que faz, ainda que jamais seja esquecido de demonstrar toda a fragilidade emocional do desesperado pai. Já Gyllenhaal, além dos tiques, vive Loki investindo em um comportamento contido, o que nos serve de termômetro, já que quando vemos o detetive irritado ou inconformado sabemos da gravidade da situação. Enquanto isso os coadjuvantes não se intimidam com seu pouco tempo de tela e também são bem sucedidos ao criarem figuras complexas. E se a depressão destrutiva da mãe vivida por Maria Bello não é tão impactante, isso é porque o contraste entre a alegria receptiva da Nancy de Viola Davis, com o seu posterior estado de luto, é ainda mais sentido pelo público. E enquanto Terrence Howard cria um pai em conflito moral, Paul Dano volta a ser um ator sempre cativante mesmo que em participações menores, impregnando com a ambiguidade certa o seu Alex Jones. O mesmo, aliás, pode ser dito de Melissa Leo, que transforma sua insípida personagem aos poucos em uma das figuras mais intrigantes do filme.


Mantendo-se fiel a sua proposta até o último segundo da duração (que apesar de longa, passa despercebida), Os Suspeitos fecha sua história deixando que o espectador imagine a cena final, por mais óbvia que essa seja, e talvez justamente por isso faça desse um fechamento tão poderoso. Repleto de simbolismos que com certeza merecem uma segunda visita para serem melhor observados, o longa, embora apresente um universo angustiante e opressivo, se mostra contraditoriamente uma experiência imersiva e extremamente cativante, seja pelo ótimo suspense que Villeneuve desenvolve com maestria ou pelos desafios intelectuais que esse mesmo suspense nos impõe.


NOTA: 10/10


                
     
     

11 comentários:

  1. Gostaria de saber se teu tipo de crítca é externa, interna ou imanente?

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    1. Olá anônimo! Então, neste contexto, o que eu faço é uma crítica analítica, explico.

      Os termos comuns de "externa", "interna" e "imanente" são muito, digamos, castradores, pelo menos ao meu ver. Eles estabelecem conceitos que, pessoalmente, eu uso às vezes tudo em texto só. Sendo que se formos isolar apenas o conceito de crítica "externa", teremos na maioria das vezes uma resenha, que não é um texto crítico (atente às diferenças). O que me faz pensar que esta classificação é até mesmo obsoleta.

      Por exemplo: eu não avalio um filme pela sua bilheteria (conforme o conceito de "externa" pode sugerir), mas se este fator é relevante de algum modo, irei com certeza apontá-lo em meu texto. Entende? Cada obra é uma obra, com suas individualidades, mas ainda assim, estão inseridas num meio cinematográfico, por isso o que tento fazer é analisá-las parcialmente (ou seja, sujeito aos meus conhecimentos e gostos) afim de interpretar suas nuances, destacar seus acertos e assinalar seus eventuais tropeços. Algo que entra mais no conceito de uma "análise". Por isso que: considerando os conceitos de uma crítica "externa", "interna" ou "imanente", ou seja, que avalia o processo de produção e o impacto desta no mercado, mas que também a enxerga como uma obra única e à parte das outras todas, posso dizer que o que faço é um crítica cinematográfica que não se prende a nenhum destes conceitos individualmente. Enquanto o que também faço são análises cinematográficas devido a natureza interpretativa do que escrevo. Logo, uma "crítica analítica", como havia dito no começo.

      Mas para notar isso, basta ler meus textos kkk

      :)

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  2. Muito interessante a crítica. O filme de fato é cativante. Você acha que a história continua?
    Penso também que o anel de Loki, representando ele ser um maçom, tenha um simbolismo muito forte e oculto. Você acha que é só? Um abraço

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    1. Se eu acho que teria uma continuação? Não. O filme se fecha muito bem ali na cena final. Se eu acho que a história do Keller e do Loki continua? Ah sim, claro. (SPOILERS>>) Eu gosto de imaginar que o Loki achou ele no buraco, que ele foi preso por ter torturado o Alex, e que o Loki visita ele quase sempre na prisão, é um pensamento que me agrada sobre o destino dos personagens (<<<SPOILERS).

      Oculto em que sentido? Se for de "ocultismo", então não, não acho. Conheço muito bem a Maçonaria e posso dizer com propriedade que pensamentos do tipo passam longe dos objetivos desta sociedade. Agora se for "oculto" no sentido de haver algo escondido ali, daí sim. Podem se fazer várias interpretações, a minha está ai em cima. Mas claro, também pode significar que ele esconde algo, ou prefere ser discreto sobre seus assuntos pessoais... Enfim, o que eu interpretei sobre foi o que escrevi, e pessoalmente me sinto confortável pensando que é este o significado. Que significado você atribuiria?

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  3. Muito interessante a crítica. O filme de fato é cativante. Você acha que a história continua?
    Penso também que o anel de Loki, representando ele ser um maçom, tenha um simbolismo muito forte e oculto. Você acha que é só? Um abraço

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  4. quando vi o filme,pensei que somente ru tive-se visto o anel de ouro no dedo do detetive não sou o unico,sua matéria é a unica que fala sobre esse detalhe.ele tbm tem tatuagem nos dedos,n sei se viu isso!

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    1. Vi sim, inclusive está ali minha análise sobre essas tatuagens nos dedos e no pescoço.

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  5. Gostaria de tentar entender uma parte que ficou um pouco confusa pra mim...
    Qdo o personagem do Hugh Jackman chega ao hospital para ver a amiguinha da filha que já tinha sido encontrada, ela diz pra ele: "você esteve lá.. vc amordaçou a gente". Depois disso ele saiu correndo e foi direto pra casa da suposta tia do Alex...
    Pq a menina disse que viu ele lá no cativeiro?

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    1. Então, a menina estava meio dopada e sendo mantida naquele quarto ao lado da cozinha na casa dos Jones, ok? Ela deve ter ouvido o Keller (personagem do Hugh Jackman) quando ele foi visitar a "tia" do Alex, e associou ele lá com o sequestro. Enquanto ele, o Keller, com o raciocínio mais apurado, logo deduziu isso e fez a ligação correta: se a menina tinha visto ele no cativeiro onde ela estava, então por eliminação dos lugares onde ele havia estado, o único que poderia ser o cativeiro era a casa dos Jones.

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  6. Excelente critica...a melhor que li sobre esse filme, que é excelente!!

    Parabéns!

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