O desafio de realizar uma
história paralela de uma franquia já estabelecida na cultura popular é, sem
dúvidas, assumir sua própria independência sem que esse esforço desvincule o
projeto do seu material de origem. Um obstáculo que, por exemplo, o Prometheus de Ridley Scott falhou em
transpassar, enquanto o mais recente Animais Fantásticos e Onde Habitam se saiu incomparavelmente melhor na tarefa. Rogue One: Uma História Star Wars segue
o caminho desse último, mergulhando em uma história protagonizada por
coadjuvantes que, você não sabia, mas precisava conhecer. Descomprometidas com
a centralidade do universo concebido por George Lucas há 39 anos atrás, essas
figuras são recorrentemente menos idealizadas que Luke, seus dilemas são mais
dúbios que os de Han Solo e os arcos que percorrem, mais trágicos do que o de
Anakin, dignos de personagens que vivem na periferia de uma grande aventura – e
o que garante o sucesso do filme é entender isso sem deixar de tratar esse novo
núcleo como parte essencial da galáxia tão, tão distante.
Ambientado logo antes de Episódio IV: Uma Nova Esperança, o longa
acompanha a captura de Jyn Erso (Felicity Jones) pela Aliança Rebelde, força
que luta contra o Império Galáctico e que precisa da moça para conseguir entrar
em contato com um guerrilheiro extremista chamado Saw Gerrera (Forest
Whitaker). O homem é um velho amigo de seu pai, Galen Erso (Mads Mikkelsen),
sequestrado pelo Império quando ela ainda era uma criança, para projetar a
construção de uma arma de destruição em massa (a Estrela da Morte), e que pode
ter enviado a Saw, através do rebelado piloto imperial Bodhi (Riz Ahmed), uma
mensagem contendo informações de como destruir sua monstruosa criação. Jyn
então é colocada sob os cuidados de Cassian (Diego Luna) e do androide K-2SO
(voz de Alan Tudyk), em uma missão que ainda vai agregar dois solitários
guerreiros, Chirrut (Donnie Yen) e Baze Malbus (Wen Jiang), contra os esforços
do ambicioso oficial Krennic (Ben Mendelsohn).
Vindo do eficiente Monstros e do fraco Godzilla, o cineasta Gareth Edwards se mostra surpreendentemente
apropriado para conduzir o roteiro concebido pelos irregulares Chris Weitz (que
já escreveu o bom Um Grande Garoto,
assim como o insosso Cinderela) e
Tony Gilroy (que já escreveu a boa trilogia Bourne,
assim como sua insossa continuação, O
Legado Bourne). Seu insistente uso de câmeras na mão e enquadramentos mais fechados,
que aprendeu no cinema de baixo custo que realizava antes de partir para
Hollywood, são ideais para criar o tom de urgência e a atmosfera de guerrilha
nas cenas de ação. O diretor também tem o hábito de usar uma baixa profundidade
de campo mesmo sob a forte luz do dia, concebendo a crueza adequada para sua
estética. Além disso, demonstra ter amadurecido o suficiente para reconhecer que
é necessário localizar o espectador e abrir o quadro para que veja o cenário
inteiro (e o espetáculo visual).
Até porque, claro, se tratando de
um Star Wars, os quesitos técnicos
tem quase a obrigação de serem excelentes, mas ouso dizer que, não só por ser a
mais recente das produções, Rogue One
é também aquele que, dentre os oito filmes da saga até agora, melhor se utiliza
da tecnologia para contar a sua história – e há peças essenciais de sua
narrativa que simplesmente não funcionariam não fosse a assustadora competência
da sua equipe de efeitos visuais. E Edwards merece pontos aqui também por saber
lidar com esses elementos com o cuidado que merecem, revelando-os apenas quando
necessário – e quando alguma referência à saga surge em tela, é notória a sua
reverência, utilizando planos em contra-plongée (de baixo pra cima) que
engrandecem figuras icônicas. Aliás, as referências aos demais filmes se
distribuem por todo o projeto, às vezes de maneira mais óbvia, às vezes de
forma bem mais sutil, e é uma boa surpresa que o filme saiba lidar com elas de
maneira orgânica. Ou seja, não deixa de fazer o fanservice, que operam
menos para agradar aos fãs do que para nos ambientar naquele conhecido
universo, mas também não se torna dependente dele – algo que, por exemplo,
apontei ser um possível equívoco em Deadpool,
pois enfraqueceria o filme com o passar dos anos e as revisitas.
Demonstrando coerência com a
maturidade de sua abordagem, Rogue One
ainda dá um passo adiante na profundidade das alegorias e alusões que a série
costuma fazer com a nossa própria história – e se antes o nazismo era a
referência óbvia nas ações e concepção visual do Império, aqui surge um
paralelo nada sutil com o imperialismo estadunidense em suas investidas no
Oriente Médio, com embates entre extremistas e militares em meio a moradias pobres
no deserto que, não fossem os lasers sendo disparados, poderiam ter saído de um
filme sobre a invasão do Iraque (e notem como Jedha é apenas uma versão de
Jerusalém habitada por alienígenas). E que traga um grupo de protagonistas tão etnicamente diversificado não é nenhum acaso. Dessa perspectiva, o clímax do projeto se
inspira abertamente nas sangrentas batalhas do Pacífico durante a Segunda
Guerra, tornando apropriada então a presença de personagens de origem oriental,
enquanto os efeitos dos disparos da Estrela da Morte são flagrantemente copiados
daqueles das bombas atômicas, que pontuaram esse conflito.
Fazendo jus, portanto, a toda
essa concepção bélica, os “soldados” à frente do filme não poderiam deixar de
ser figuras torturadas pelo conflito entre sua moral e os objetivos maiores que
guiam suas causas. E se a apatia habitual de Felicity Jones serve bem a Jyn,
endurecida pelo prematuro envolvimento com a guerra, Diego Luna e sua incapacidade
de não soar carismático fazem Cassian um personagem pelo qual o espectador
decide torcer desde o início, apesar de seus atos brutais. Enquanto isso é
divertido notar Forest Whitaker, em um papel que remete ao Coronel Kurtz de Apocalipse Now, usar da mesma estratégia
que Vincent D’Onofrio recentemente empregou em Sete Homens e um Destino para emular Marlon Brando (intérprete do
icônico personagem): afinar a voz.
E se Riz Ahmed (que demonstrou
esse ano no seriado The Night Of ser
um talento promissor) pouco tem a fazer com seu Bodhi, é o Chirrut de Donnie
Yen quem rouba a cena sempre que em tela – e é ele quem acaba sendo o “Jedi” que
falta à produção. Assim, mesmo que o público saiba como a trama se encerra, é
impossível não torcer por cada membro do grupo – mesmo o sarcástico e
pessimista K-2SO, mistura interessante do Marvin de O Guia do Mochileiro das Galáxias, com o próprio C-3PO. É equilibrando
então o gosto amargo do desfecho com uma cena final arrepiante de tão adequada
(que farão os puristas até esquecerem que não tivemos os famosos letreiros
iniciais dessa vez), que esse Rogue One
se confirma como um dos mais acertados filmes da saga, mesmo que não traga como
protagonistas os personagens que aprendemos a amar, embalados pelos temas de
John Williams, que ainda assim marcam presença sob a batuta do sempre competente
Michael Giacchino.
Apesar de encontrar um ou outro
problema de ritmo, o longa se revela muito mais do que um filler (um filme feito para matar tempo enquanto o próximo episódio
não fica pronto), e prova ser um exemplar com alma própria, justificando sua existência com o aprofundamento de um dos universos mais ricos já levados para o
cinema. E mais, sua eficiência consegue enriquecer Uma Nova Esperança, que com esse "prólogo" ganha toda uma nova dimensão - e agregar conteúdo e complexidade a um clássico com quase 40 anos de idade é um feito quase tão admirável quanto os pequenos atos rebeldes que, apesar de se originarem na periferia de grandes histórias, podem levar a vitórias colossais contra o fascismo. O que, aliás, também é uma reflexão trazida para todos nós por Rogue One.
9/10
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