Conhecer as reviravoltas de uma trama pode destruir a experiência de acompanhá-la. Há, entretanto, os filmes que se preparam para essa eventualidade e que oferecem um olhar completamente novo e revigorante para o espectador que já sabe os rumos da história. É o caso, por exemplo, de Um Corpo que Cai, O Sexto Sentido, Clube da Luta, Oldboy, A Chegada etc - projetos que a cada revisita parecem contrair novas dimensões, ao invés de subtraí-las. Já tendo sido adaptado em mais de um país, para o cinema e para a TV, Assassinato no Expresso do Oriente é um dos livros mais célebres de Agatha Christie, e como tal, a solução de seu mistério central é famosa - tanto quanto polêmica. As implicações éticas do desfecho ainda geram discussões mesmo 82 anos depois de sua publicação - o que não é surpresa; mesmo mais de oito décadas depois o epicentro da questão ainda é um dos maiores divisores de água no sistema penal pelo mundo.
E a boa notícia é que a nova versão do romance policial de Christie, dirigida e estrelada por Kenneth Branagh, não ignora essa problematização - o que, de cara, já a difere das demais adaptações do texto, mesmo aquela tão divertida conduzida pelo mestre Sidney Lumet em 1974, e que no geral sempre preferiram dar ênfase à surpresa do final, ignorando ou tratando de forma leviana suas implicações morais. Igualmente satisfatório é perceber que Branagh também consegue evitar se tornar exclusivamente dependente do desfecho, e constrói sua narrativa de modo a entreter mesmo um leitor voraz dos mistérios da escritora.
Para quem não conhece o plot, durante uma viagem de trem, alguns distintos estrangeiros ficam presos juntos quando o veículo é obrigado a parar devido à neve. Enquanto aguardam os trilhos serem liberados, um dos passageiros é assassinado, tornando a todos suspeitos. Por “sorte”, à bordo do Expresso do Oriente também está o famoso detetive Hercule Poirot (Branagh), que a contragosto começa investigar o caso intrincado, já que aparentemente nenhuma das pessoas ali poderia ter cometido o crime.
E como a graça do mistério, então, é poder considerar qualquer um dos passageiros como o possível assassino, para que o espectador aproveite seu desenrolar é preciso que cada um deles esteja bem estabelecido. Na versão de 1974, um elenco de estrelas da época deu conta de marcar bem cada um dos suspeitos no trem, e o desfile de nomes famosos contava com Lauren Bacall, Sean Connery, Anthony Perkins, Vanessa Redgrave e até a premiada Ingrid Bergman (que levou o Oscar de Atriz Coadjuvante pelo papel). Aqui, embora a produção também aposte em astros em voga no momento (Johnny Depp, Michelle Pfeiffer, Daisy Ridley, Penélope Cruz, Judi Dench, Willem Dafoe e Josh Gad), ela não comete o erro de se apoiar apenas nisso - e uma nova geração que vá buscar a versão de Sidney Lumet talvez encontre dificuldades para lembrar lá pelo meio do filme quem era mesmo MacQueen ou Miss Debenham.
Aqui, a maquiagem, os figurinos de Alexandra Byrne e os pequenos momentos concebidos por Kenneth Branagh para apresentar cada uma daquelas figuras se juntam para distingui-las, independente de quem as interprete. O casal de condes Andrenyi, por exemplo, é introduzido de forma quase caricatural numa cena envolvendo artes marciais e alguns fotógrafos impertinentes, trajando vestes impecáveis, enquanto o professor Hardman (Dafoe), com seu terno antiquado e ajeitadinho, encimado por óculos grandes e redondos, já surge fazendo comentários racistas, e assim por diante. Aliás, é interessante também notar que o roteiro de Michael Green (que está fazendo um ano memorável, já tendo co-escrito os excelentes Logan e Blade Runner 2049) entende a necessidade de lidar com a superpopulação de pessoas, juntando dois personagens importantes do livro em um só, dando luz ao Dr. Arbuthnot (Leslie Odom Jr.), que por ser negro, acaba permeando a trama com pinceladas de um olhar mais atual: “deixe para a polícia resolver e vão escolher um culpado, provavelmente o Dr. Arbuthnot pela cor de sua pele”, argumenta o diretor do trem ao tentar convencer Poirot a investigar o caso. Além disso, para quem conhece o universo literário de Agatha Christie, é divertido notar como Green insere aqui e ali referências a outras obras protagonizadas por Hercule: a personagem de Penélope Cruz, que no livro se chama Greta Ohlsson, aqui torna-se Pilar Estravados, que é o nome de outra figura suspeita no livro O Natal de Poirot; já Katherine Grey, antiga paixão do detetive, no filme surge como um elemento presente e relevante para sua personalidade, enquanto de forma bem mais óbvia é deixado um gancho claro para Morte Sobre o Nilo ao final do longa.
Aliás, não só pelo desenvolvimento, mas pelo próprio Branagh, Hercule Poirot ganha aqui uma de suas melhores encarnações. Não só todas as características mais conhecidas do detetive estão lá (a arrogância e o perfeccionismo), como o ator também confere delicadeza a Poirot, denunciando fraquezas no outrora imperturbável investigador que, por fim, o tornam mais humano - e consequentemente mais divertido de se acompanhar em suas excentricidades. Já como diretor, Branagh se destaca como não fazia há anos (pois estava comprometido com grandes produções de estúdio, como Thor e Cinderela), e tem a chance de demonstrar sua segurança narrativa. Ao invés de se usar o recurso como estilismo, por exemplo, o cineasta investe em plongées absolutos (quando a câmera aponta diretamente para baixo) apenas nos dois momentos em que a cena gira em torno do corpo da vítima, implicando nesse “ponto de vista de Deus”, julgando a situação - algo que Branagh já usara de forma muito coesa em Frankenstein de Mary Shelley.
De outra forma, o realizador se junta ao design de produção para fazer do Expresso do Oriente um lugar vivo e com ambientes distintos: do vagão de jantar cheio de divisórias transparentes à cabine requintadamente decorada da Princesa Dragomiroff (Dench), todos sugerem um pouco sobre as figuras que temporariamente estão ocupando aqueles espaços. O diretor também aproveita as vidraças que enfeitam os vagões para enquadrar os passageiros diversas vezes através delas, refratando a imagem dos seus rostos e sugerindo a ideia de duas caras e falsidade sobre todos eles. Mais adiante, Branagh ambienta um diálogo decisivo entre Poirot e um dos passageiros à beira de um penhasco, tornando o interrogatório ainda mais tenso. Além disso, por mais que seja uma composição visual batida, sua decisão de enfocar os 12 suspeitos como numa releitura de A Última Ceia carrega um subtexto interessante no que diz respeito ao assassinato e a noção de justiça debatida ali - não devemos esquecer que um júri também é composto de 12 pessoas. E esse é o Kenneth Branagh de Frankenstein, Hamlet e Henrique V que há algum tempo andava desaparecido, voltando aos textos clássicos de sua terra natal sem esquecer de dar a eles uma atualizada - não só os personagens deixam de ser apenas os típicos brancos europeus, temos um cubano, um negro, uma espanhola, como o final seco que funciona tão bem no livro (até de uma forma bem-humorada), aqui é substituído por algo mais dramático e reflexivo, tratando de tratar a resolução do caso com a seriedade que ela merece nos dias de hoje.
NOTA: 8/10
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