Num suspense policial sobre assassinatos em série, não é bom sinal quando a coisa mais chocante e surpreendente é constatar o que a idade e as plásticas fizeram com o rosto de um dos atores - no caso, Val Kilmer. Mas esse é o caso de Boneco de Neve, que apesar da direção dedicada do cineasta Tomas Alfredson e de um elenco esforçado em conferir peso e seriedade aos seus personagens, sofre com um roteiro mecânico e um desfecho, enfim, chato - o que deve ser uma das piores coisas que já me senti obrigado a escrever sobre um thriller.
Baseado no livro homônimo do escritor norueguês Jo Nesbo, o longa tem um bom início ao investir numa espécie de prólogo que desperta o interesse por duas razões: primeiro, a bela ambientação de inverno das paisagens nórdicas (a fotografia de Dion Beebe é recorrentemente um dos pontos altos do projeto); e segundo, por causa da montagem abrupta de toda a sequência, que vai saltando no tempo rapidamente para resumir o que, logo percebemos, é a lembrança traumática de infância do assassino em que o filme irá se focar - aliás, que a estrutura narrativa do filme seja interessante não surpreende, já que ele é montado por ninguém menos do que Thelma Schoonmaker, colaboradora habitual de Martin Scorsese (que é produtor executivo aqui).
A partir daí a trama acompanha o detetive Harry Hole (Michael Fassbender), aparentemente um alcoólatra que entra em crise quando não tem um caso intrincado para resolver - o que não seria demérito algum, o próprio Sherlock Holmes era um personagem viciado nos mais diversos psicotrópicos como forma de saciar sua mente na ausência de mistérios para desvendar. Porém, se essa natureza autodestrutiva do protagonista de Sir Arthur Conan Doyle normalmente ganha uma abordagem cômica que infantiliza suas ações, Hole surge aqui involuntariamente como uma figura patética, que some do trabalho e dorme em pracinhas cercado de garrafas vazias - o que, em contraste com o tom sombrio e austero estabelecido por Alfredson, o fazem soar mais como uma criança birrenta do que com o intelectual niilista que o filme tenta pintar.
Desafiado através de bilhetes por um correspondente misterioso, que assina suas mensagens com o desenho de um boneco de neve, Harry se junta à recém-transferida detetive Katrine (Rebecca Ferguson) em casos de desaparecimentos de mulheres que podem estar correlacionados. O que, de alguma forma envolve um empresário local fazendo campanha para sediar as Olímpiadas de Inverno em Oslo, o ricaço Arve Stop (J.K. Simmons). A aparente complexidade da teia de eventos, aliás, não é, a princípio, algo ruim. Pelo contrário, a forma como Alfredson e Schoonmaker saltam de um núcleo a outro sem muita cerimônia confere importância a todos eles, e deixa o espectador na expectativa de como eles irão convergir - em especial, gosto da estranheza com que a dupla insere um flashback abruptamente no primeiro terço do longa, que surge através de um establishing shot (normalmente um plano geral de um cenário onde a ação da cena subsequente vai se passar) como se estivéssemos apenas mudando de cenário, o que nos faz dar especial atenção ao que se passa nesse instante.
Além disso, o diretor não se entrega sempre a planos ou movimentos óbvios com sua câmera, como quando enfoca Harry observando um bar do lado de fora, só para revela-lo bêbado e desmaiado na calçada apenas com uma pan lateral. Alfredson, que dirigiu os ótimos Deixa Ela Entrar e O Espião que Sabia Demais, parece uma escolha acertada para o tipo de projeto que Boneco de Neve gostaria de ser, pois através desses recursos simples e discretos, consegue causar o estranhamento necessário para preparar o espectador para qualquer esquisitice ou absurdo. O problema é que o roteiro (escrito a três pares de mãos, nunca um bom sinal) jamais recompensa esse sentimento - pelo contrário, nos bombardeia com clichês do gênero, tipo “quem será o assassino?”, “que tal a gente matar aquele personagem carismático agora no intuito de dar motivação ao protagonista?”, “ahhh, o que é aquilo? Uma família em perigo na mira do vilão? Melhor correr hein senhor detetive!” etc.
E o que é mais triste, Michael Fassbender se entrega a Harry Hole. Sempre com os cabelos desgrenhados e os olhos vermelhos, o policial também exibe eventualmente uma gentileza inerente a sua personalidade, o que torna crível sua dedicação ao trabalho de resolver crimes. Enquanto isso, Rebecca Ferguson, uma atriz que, embora nem sempre tenha escolhido os melhores projetos, tem me chamado cada vez mais a atenção, consegue transformar a aborrecida figura da “aprendiz curiosa” em uma pessoa multifacetada, que esconde uma dor angustiante por trás de suas motivações - e note como em uma de suas primeiras cenas, ela traz nas mãos uma xícara com a alça quebrada, denotando sua praticidade e, também, sua consciência danificada por algum trauma passado. Já Val Kilmer, mesmo com as deformações citadas no início deste texto, consegue transformar a sua ponta em algo interessante ao compor Rafto como um homem que esconde inteligência e empatia sob a bebedeira - não deixando de ser um anúncio do que Harry poderia se tornar.
Entretanto, nem os esforços destes ou de J.K. Simmons, Charlotte Gainsbourg e Toby Jones conseguem salvar o projeto de si mesmo, principalmente quando este se entrega a um desfecho absolutamente desinteressante - que revela um culpado óbvio e ainda constrói um embate tedioso e sem vida entre mocinhos e vilão - e aqui, Alfredson e Dion Beebe tentam soprar alguma vida no roteiro outra vez, criando um belíssimo plano lateral que enfoca Hole e o algoz frente à frente numa paisagem gélida de beleza ímpar. O que também acaba não sendo o suficiente, pois Boneco de Neve se entrega logo em seguida à burocracia narrativa, pontuando a trama sem qualquer resquício de vontade de fazê-lo - quase como se fosse uma obrigação tediosa dos roteiristas conferir um final ao filme.
Aliás, se o longa não encontra vontade para terminar com algum entusiasmo, com algum tom que seja, imagina eu para terminar sua crítica…
NOTA: 5/10
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