Apesar do esquema atual de Hollywood conectar diversas produções, em teoria, cada filme deveria funcionar dentro de si mesmo, sem o auxílio de nenhum material extra. Entretanto, para citar um exemplo do universo Marvel, Capitão América: Guerra Civil deve boa parte de sua força ao fato de que os seus personagens já tinham sido apresentados e desenvolvidos ao longo de outros títulos anteriormente. Já Thor: Ragnarok não precisaria disso para se firmar como um bom exemplar do subgênero das comédias de ação, pois seu humor funciona sozinho - traz uma narrativa segura do cineasta Taika Waititi, que além de construir um filme divertido do início ao fim, consegue fazer um trabalho orgânico ao adequar o projeto à estética e ao estilo assentados nos volumes 1 e 2 de Guardiões da Galáxia, com suas cores vivas e as gags recorrentes. É uma pena, portanto, que para isso o longa sacrifique a sua coesão com o resto do universo a que se conecta, destoando não só como sequência dentro da sua própria franquia, como também corrompendo muito do que já havia sido estabelecido sobre seus protagonistas.
E quando falo em “destoar” não me refiro à abordagem, outras franquias já mudaram seu tom abruptamente de um filme para o outro sem que isso destruísse sua coesão interna. Pegue como exemplo o salto dado entre Harry Potter e a Câmara Secreta e O Prisioneiro de Azkaban, ou como os filmes Alien mudaram de ritmo e atmosfera ao passar das mãos de Ridley Scott para James Cameron, e deste para David Fincher - sem contar a miscelânea (até então divertida) que é a série Missão: Impossível. O problema aqui é que Ragnarok pega os personagens que conhecíamos de Thor, Thor: O Mundo Sombrio, Os Vingadores e Vingadores: Era de Ultron e os reescreve, quase como se pretendesse reiniciar a franquia. Claro que este não é o objetivo, o que se sucede é que, ao mudar drasticamente o tom da narrativa, Taika Waititi acabou deslocando a personalidades daquelas figuras para que se adequassem ao seu estilo.
Responsável por poucos, mas hilários títulos como O Que Fazemos nas Sombras, o cineasta neozelandês se provou dominar um tipo de comédia que depende de personagens mais caricatos, “parodiosos” - são basilares neste caso gags envolvendo a postura destes em quadro ou como salientam ou contradizem de forma inesperada estereótipos das suas personas através de diálogos e ações. Assim, quando vemos Loki (Tom Hiddleston) repreender um subalterno asgardiano dizendo “Você tinha só um trabalho, um!”, o momento pode até ser engraçado, porém, se distancia muito da figura passional e cheia de amargura e instabilidade que era o Deus da Trapaça nos filmes anteriores - um personagem que Hiddleston foi tão cuidadoso em evoluir a cada nova aparição. Note, por exemplo, como o ator investia em um Loki introspectivo e cheio de culpa e mágoa em Thor, abraçando a insanidade destes sentimentos de rejeição em Os Vingadores, que enfim resultaram no seu amadurecimento em Thor: O Mundo Sombrio - só para surgir aqui como um ser alegre a quem é delegada um tanto de piadinhas secundárias.
E repito, não é que o humor do filme não funcione. Ragnarok é engraçado, sim. Só é triste constatar como parece deixar a essência de seus personagens escapar entre os dedos ao criar algo que se aproxima mais de uma sátira daquele mundo.
De outra forma, quem também acaba sofrendo com isso é a vilã do projeto. Hela (Cate Blanchett) é a Deusa da Morte, e volta de uma espécie de limbo para reclamar o trono de Asgard, matando literalmente qualquer um que se oponha à ideia. Algumas de suas primeiras vítimas são coisas e pessoas com quem o público já tinha estabelecido conexão antes, entretanto, o tom de leveza e o humor onipresente do filme jamais permite que essas perdas tenham peso na narrativa e, portanto, que sejam sentidas pelo espectador. Novamente, vamos retomar os filmes anteriores e lembrar que a morte de Frigga (Rene Russo) em O Mundo Sombrio, era pontuada com uma sequência belíssima envolvendo seu funeral viking ao estilo asgardiano, enquanto a própria “despedida” de Loki era algo comovente também. A falta desta seriedade pontual prejudica a antagonista vivida por Blanchett e, ao subir dos créditos, a impressão é de que Hela não representou um grande obstáculo - e pior, os danos causados pela vilã soam igualmente desimportantes.
Isso ainda que Blanchett claramente se divirta ao compor Hela de forma teatral, sendo beneficiada também pelo interessante design longilíneo da personagem, cujos chifres surgem levemente diferentes conforme sua situação, lembrando de forma pouco sutil as formas de Malévola, vilã de A Bela Adormecida - e aí a cor verde esmeralda que representa os poderes de ambas as algozes também entra na trama de forma escrachada, já que este tom específico de verde tem uma associação histórica com a morte. Aliás, apesar das incoerências externas, em sua maioria as figuras que desfilam em tela são cativantes e carismáticas. Mesmo como versões exageradas e superficiais de seus personagens não dá pra dizer, por exemplo, que Tom Hiddleston e Chris Hemsworth deixam a desejar no timing cômico e na química que dividem em suas alfinetadas e discussões. Assim como Tessa Thompson vive uma das Valquírias com a dureza correta para fazer rir, e de forma similar, Karl Urban vai contra a sua persona carrancuda ao criar um brutamontes meio covarde, enquanto Mark Ruffalo faz (como de costume) seu Bruce Banner soar um dos melhores momentos da narrativa, recorrentemente forçando o prognatismo para enfatizar a luta contra o Hulk dentro dele. Sendo, entretanto, Jeff Goldblum quem rouba a cena ao interpretar ele mesmo no papel do Grão-Mestre - e não é difícil acreditar que Goldblum tenha, de fato, uma nave especialmente desenhada para abrigar orgias.
Já o diretor Taika Waititi vive Korg, uma adição que surge indiferente à primeira vista, mas que ganha o carinho do público conforme o alienígena feito de pedregulhos e de voz fina assume mais destaque como um revolucionário no Planeta Arena - onde Loki e Thor vão parar ao fugir de Hela. Waititi, entretanto, não se limita apenas a viver Korg e em transformar o filme em uma comédia, e é preciso ressaltar que o cineasta possui um apuro visual - apesar de vez ou outra o chroma key falhar miseravelmente em omitir que os personagens não estão realmente em dado cenário, e sim na frente de uma tela verde. Taika cria sequências de ação que conseguem ser compreensíveis, divertidas e belas de se contemplar, como o instante em que o Deus do Trovão voa escapando de uma espécie de dragão demônio, com uma estrela poente ao fundo, ou noutro quando Thor aterrissa sobre seus inimigos trazendo raios junto consigo - ainda que, nesse sentido, um dos meus momentos favoritos seja quando ele mergulha sua câmera no chão espelhado do palácio do Grão-Mestre apenas para introduzir o personagem através de sua imagem refletida.
Se beneficiando ainda da trilha eletrônica de Mark Mothersbaugh, que enfatiza o tom arcade do projeto, Thor: Ragnarok não é a melhor coisa que a Marvel Studios já produziu, mas é suficientemente divertido para ser lembrado - ainda que seja difícil enxergá-lo como parte de um todo maior. Se tivesse a coragem de se levar um pouco mais a sério aqui e ali, talvez chegasse a ser brilhante. Hoje é um filme mais independente do que parte de um universo expandido, e embora esse “egoísmo” tenha lhe garantido uma identidade toda própria e a liberdade de construir figuras que facilmente ganham a torcida do público, acaba também por tirá-lo de seus alicerces, tornando-o demasiadamente superficial.
P.S.: Há, como de costume, cenas durante e após os créditos. Além de algumas participações especiais alheias ao universo Marvel que são divertidas demais.
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