sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

CRÍTICA: VIVA: A VIDA É UMA FESTA


Não importa se a trama de um filme é clichê, mas sim se o modo como ela é narrada funciona e envolve o espectador. Mesmo os acontecimentos mais previsíveis podem receber uma nova visão e tornarem-se surpreendentes outra vez. Assim, quando Miguel, um menino pobre e cheio de sonhos acaba descobrindo por acidente uma passagem para um mundo mágico, naturalmente somos remetidos às trocentas vezes em que já assistimos essa mesma história antes. Então como é que Viva: A Vida é uma Festa parece recheado de frescor? Como é que as suas reviravoltas podem ser facilmente antecipadas e ainda cumprir com eficiência seus objetivos de tocar e comover? Ora, isso acontece porque o filme é pintado com as cores (vibrantes) de uma cultura muito diferente das que estamos acostumados a ver nas grandes produções hollywoodianas - e como nenhuma estética é desprovida de contexto, a nova animação da Pixar acerta por não apenas usar o Dia dos Mortos mexicano como roupagem para uma história “norte-americanizada”.

Não, o filme carrega consigo todas as diferentes percepções daquele povo sobre família, vida e, claro, sobre a morte. Então, por mais que repasse com delicadeza e competência as velhas lições sobre empatia e memória, o trunfo do projeto é realmente oferecer ao espectador a perspectiva de outra cultura sobre essas questões, o que, em última análise, desperta em nós justamente a empatia e a memória.
 

O arco de Miguel começa, como ele mesmo narra nos segundos iniciais, muito antes de ele ter nascido, quando um músico abandonou sua esposa e filha para perseguir a carreira, deflagrando o nascimento de uma família que repudiava qualquer canção ou instrumento musical. Várias gerações depois, o protagonista se revela um músico em potencial que sonha em se tornar tão famoso quanto Ernesto de la Cruz, seu herói - uma ideia que sua família rejeita veementemente, principalmente sua avó. Na tentativa de conseguir tocar num concurso de talentos às escondidas, o menino acaba roubando o violão do túmulo do falecido de la Cruz, um ato que o amaldiçoa e o manda direto para o Mundo dos Mortos, onde todos são representados pelas calaveras mexicanas.

Claro que também não é novidade nenhuma discutir a morte junto a um público mais jovem. É até clássico confrontar a infância e a adolescência com a própria finitude, com a ideia de que um dia todo mundo vai morrer. É uma percepção que serve ao amadurecimento, e por isso está presente em tantas obras sobre o tema, de Harry Potter a Stephen King. Porém, como a maior parte das narrativas que recebemos são de origem estadunidense ou europeias, são as concepções desses povos que acabamos absorvendo, e estamos falando de sociedades historicamente construídas sobre a riqueza, o conservadorismo e o peso religioso. Não é surpresa então que o Halloween, o mais próximo que os Estados Unidos têm de uma celebração como a do Dia dos Mortos, é formada por uma mitologia de monstros e coisas que assustam: a abóbora, o fantasma, o espantalho, os monstros, o diabo, as bruxas e por aí vai. Compare, por exemplo, O Estranho Mundo de Jack e seus personagens distorcidos e melancólicos com os alegres e coloridos esqueletos de Viva, que chegam a ter no rosto (ou melhor, no crânio) os adornos florais típicos das pinturas faciais que são tradicionais lá no México.

Não quero dizer que um filme é ruim porque tem uma visão pessimista de assombrações e o outro é melhor porque já se mostra bem mais alegre sobre como enxerga os espíritos dos antepassados. Apenas quero ressaltar esta diferente percepção cultural: para Tim Burton e Henry Selick, as figuras que representam a morte, o medo e o sobrenatural são criaturas esquisitas, introspectivas, párias de uma sociedade “normal”, são rejeitados e não conseguem se encaixar em comemorações mais alegres, enquanto em Viva os espíritos são seres luminosos, coloridos, passionais, bem humorados e festeiros. Isso, claro, porque o Dia dos Mortos é sobre celebrar a vida daqueles que já partiram, por mais trágico que tenha sido a sua morte, enquanto outras culturas ainda tendem a enxergar a finitude humana como um tabu, um assunto a ser evitado. Mas deveria a perda definir toda a memória que temos daquelas pessoas?

É claro que o falecimento de um ente querido é doloroso e sempre trágico, não importa o contexto, e em certo momento, por exemplo, quando Miguel se depara rapidamente com uma mãe e sua filha no mundo do além, é impossível não se questionar sobre o que causou a morte tão prematura daquela menina. Enquanto noutro, quando um dos espíritos diz ao menino “Espero que você morra logo”, há um estranhamento entre os personagens, por mais que exista uma boa intenção na fala do outro. A questão é mesmo os valores que são dados enquanto experiência social à vida e à morte. Não importa no que você acredita ou não sobre aquilo de que somos feitos e para onde vamos (ou, não vamos) depois, pois de qualquer forma Viva funciona como uma alegoria para a memória. Naquele mundo, memória é capital, os falecidos mais bem lembrados no mundo dos vivos são os mais ricos no submundo, e os mais pobres vivem em periferias e somem por completo quando são esquecidos do lado de cá. Ou seja, se você não fala ou relembra as pessoas que perdeu de alguma maneira, não há como manter a memória delas viva - e memória é aprendizado, é trajetória e evolução. Numa época em que o atual presidente dos Estados Unidos está reunindo esforços para construir um muro justamente entre os EUA e o México, memória é essencial para que tenhamos empatia e senso de comunidade para com pessoas e culturas diferentes, para com visões, perspectivas e experiências diversas àquelas que fomos submetidos nas nossas vivências. Viva é um projeto atento a isso, interessado em demonstrar como aquilo que um repudia pode ser o que dá alma ao outro, e que o ódio pode crescer a partir daquilo que é esquecido, do que se perde na memória - memória do indivíduo e do social. É esse entendimento que torna seus vinte minutos finais tão comoventes, ao aplicar essas “lições” às relações do pequeno Miguel com sua família.

Não fosse o bastante essa maturidade para explorar um tema tão sensível, Viva ainda apresenta um dos visuais mais impressionantes que a Pixar já concebeu - e basta relembrar seus outros projetos para perceber que isso não é pouca coisa. A vila onde mora Miguel é recheada de personalidade, com casinhas modestas grudadas umas nas outras e ruazinhas estreitas cheias de janelas que dão direto na calçada e portões pesados de madeira, enquanto o pátio da casa do menino é de terra batida, com telhas, caixas e árvores distribuídos de forma orgânica, convencendo o espectador de que por ali já passaram muitas gerações - além disso, esses elementos claramente evitam glamourizar a realidade pobre daquelas pessoas, preferindo ressaltar que se o povoado é cheio de pessoas alegres, isso se dá apesar da miséria. Aliás, outro dos elementos interessantes das culturas latinas que o filme incorpora é o viés matriarcal das famílias, já que com homens mais ausentes por trabalharem fora, são as mulheres quem acabam assumindo uma espécie de liderança - algo bem demonstrado pela ferocidade carinhosa da avó de Miguel, da importância de sua bisavó, Coco, que dá título ao filme na versão original, e de sua tataravó, Mamá Imelda, que surge como a líder da família no Mundo dos Mortos.

Um lugar que, divertidamente contraditório, é vivo com suas belíssimas cores e o design assustadoramente detalhado. Da cidade que parece concebida por colunas imensas de casas amontoadas de forma impossível a se perder no horizonte, até a riqueza de detalhes de uma estação de trem, com direito a uma alfândega e filas de embarque e conferência de visto para o mundo dos vivos. O design de produção de Viva contrasta o ambiente noturno daquele mundo com luzes e pessoas (as calaveras, na verdade) em constante atividade e festa, tornado fácil para o espectador mergulhar naquela realidade fantástica por resgatar um sentimento de suspensão de descrença que é acompanhado pela noção de que aquela aventura se passa durante uma noite, longe das autoridades e demais regras sociais do mundo real - desse modo, locais mais introspectivos daquele mundo acabam encantando de maneira ímpar, como a velha barraca de um espírito que mora na periferia da cidade dos mortos, já que quase ninguém mais lembra dele.

Frente a tantos méritos, a resolução dos conflitos com o vilão da história acaba pecando por soar simples demais. Porém, Viva tem muito mais sobre o que se sustentar, e ainda arremata o filme com uma das mais delicadas sequências do estúdio. Não é, de fato, a melhor coisa que a Pixar já lançou, mas é comovente e talentoso o bastante para ficar… Bem, para ficar na memória.

Nota: 9/10


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