Houve um tempo em que Steven Spielberg era um dos meus diretores favoritos. Quando seu nome vinha estampado no topo de um cartaz, era certo que aquele seria um dos filmes mais falados do ano. Entretanto, desde que lançou o excepcional Munique em 2005, o cineasta veio trilhando um currículo altamente irregular, do duvidoso Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal passou para o divertido As Aventuras de Tintim, que impressionava mais pela técnica. Seguiu-se a este os aborrecidos Cavalo de Guerra e Lincoln, cujos méritos pontuais não foram o suficiente para torná-los filmes mais interessantes. Já com Ponte dos Espiões o diretor se saiu melhor e mostrou que ainda tinha algum fôlego, mas tratou logo de desiludir seu público ao lançar O Bom Gigante Amigo, possivelmente o seu filme mais embaraçoso. The Post: a Guerra Secreta finalmente acaba com esse jejum de quase treze anos, e faz jus a reputação de um dos realizadores mais celebrados e icônicos do Cinema.
O interessante é que trata-se de um projeto “menor”. Quero dizer, Spielberg normalmente é sinônimo de escala de produção, não podemos esquecer que estamos falando do cara que dirigiu o pai dos blockbusters (Tubarão) e cimentou a indústria das mega-produções em Hollywood. Mesmo esses seus últimos e trôpegos esforços eram visualmente grandiosos e aspiravam ao épico de uma forma ou de outra. Já The Post se passa na maior parte do tempo nos mesmos poucos cenários, e utiliza-se de enquadramentos mais fechados que denunciam uma produção comedida. Sendo basicamente um roteiro de diálogos e bate-bocas entre os personagens dentro de salas e escritórios apertadinhos, não surpreende então que o diretor tenha encontrado aqui um ambiente fértil para ser criativo e tornar a narrativa o mais interessante possível - o que ele consegue.
Lincoln, por exemplo, que também tinha um texto verborrágico e expositivo ao extremo, sofria nas mãos de um Spielberg que estava perdido entre enaltecer a interpretação de Daniel Day-Lewis e o dispendioso design de produção - o que, no final, o converteu num filme falacioso, sem ritmo e burocrático. Aqui, contando com os diálogos ágeis de Liz Hannah e Josh Singer (este último retornando aos bastidores de uma redação jornalística depois de ter sido oscarizado pelo roteiro do excelente Spotlight: Segredos Revelados) a tarefa também fica um pouco mais fácil. A trama remonta os dias que precederam a publicação dos conhecidos Documentos do Pentágono, em junho de 1971, que revelaram ao público um estudo meticuloso sobre a investida falha dos Estados Unidos no Vietnã - até então o governo vinha mentindo para a imprensa e o povo, dizendo que a guerra estava sendo ganha pelos norte-americanos. Enquanto o editor-chefe da redação do Washington Post, Ben Bradlee (Tom Hanks), mobiliza seus melhores jornalistas para tentar desencavar essa história, Kay Graham (Meryl Streep), filha e ex-esposa dos últimos donos do jornal, se vê agora desacreditada como líder de um empreendimento que sempre esteve nas mãos de homens, justamente quando tem de tomar decisões difíceis entre manejar o processo de tornar a empresa pública e aprovar as pautas políticas escandalosas que não param de surgir.
Aliás, é curioso que com tantos elementos de tensão em jogo, o filme decida estruturar o arco de Kay em torno de seu empoderamento como mulher - sinais de que, felizmente, os tempos mais políticos absorveram o idealismo inerente de Spielberg. E aqui faz toda a diferença ter uma atriz do calibre de Meryl Streep, que sabe usar o seu espaço para preencher as lacunas do trabalho do roteiro e direção. Já na sua primeira conversa com Ben, em que ele rebate com dureza as demandas da chefe, Streep escolhe resmungar suas falas deixando clara sua desaprovação, mas também que ainda não tem confiança para bater o pé sobre suas posições. Como bem aponta a personagem de Sarah Paulson em dado momento, de tanto ser subestimada, a própria Kay passou a acreditar que não é uma pessoa capaz de conduzir os negócios - basta notar como, a princípio, ela passa pelos corredores do jornal desviando o olhar dos retratos dos antigos donos, como se confrontar as fotografias daqueles homens nos olhos fosse revelar que eles a desaprovam também. E Spielberg ajuda a atriz a construir esse sentimento de opressão ao recorrentemente colocá-la cercada por grupos inteiramente masculinos, paramentados com seus ternos acépticos. Na primeira vez em que a vemos discutir o futuro da empresa, por exemplo, o diretor enquadra Kay em planos fechadíssimos que transformam os ombros largos dos banqueiros, advogados e conselheiros em muralhas que sufocam a sua pequena figura e, consequentemente, a sua voz. Assim, num dos momentos em que Kay deve tomar uma decisão importante, é natural que Spielberg a enfoque sozinha num cômodo, circulando o seu corpo com a câmera num ângulo plongée (de cima para baixo), como se desafiasse o espectador a julgá-la junto com os outros personagens. E nesse sentido, sua evolução é pontuada quando finalmente se liberta dessas amarras e surge sob a luz do sol, cercada apenas por outras mulheres.
Um dos maiores acertos de Spielberg aqui, inclusive, é não economizar no uso da câmera, e o que poderia surgir como um “excesso de direção”, acaba se mostrando domínio de narrativa. Note, por exemplo, como o diretor é hábil ao conferir urgência à atmosfera do filme, emulando a dinamicidade da rotina dos jornalistas. Spielberg e seu fiel diretor de fotografia, Janusz Kaminski, jogam a câmera contra os personagens, os rodeiam, dançam com eles e quase nunca permitem um quadro que não esteja em movimento, investindo também recorrentemente em planos sequência ou que se alongam e seguem aquelas figuras com uma proximidade e precisão assustadoras. E mesmo quando se entrega a uma condução mais convencional, Steven insere elementos que tornam as composições de cena mais interessantes, como ao enfocar uma discussão de Kay com Robert McNamara (Bruce Greenwood) em que os dois rodeiam uma pequena mesa evitando um ao outro.
Além disso, Spielberg também pontua a narrativa com pequenos elementos de humor que conferem respiros bem-vindos de descontração - Ben aperta uma bola nervoso enquanto a criança dona dela o espera ansiosa pela devolução do objeto; um jornalista anônimo da redação descreve inutilmente a saia de uma fonte enquanto o resto dos editores debatem assuntos bem mais relevantes; um enquadramento calculado coloca todas as cabeças curiosas dos investigadores sobre a tampa de uma caixa sendo aberta; e, a minha favorita, a progressão paralela da venda de limonadas da filha de Ben, que vai expandindo seu negócio em meio ao insano e caótico ambiente de trabalho dos colegas do pai. Aliás, Tom Hanks quase vive um personagem mais “cinzento” nas improváveis mãos de Spielberg, já que à princípio nos é apresentado como um dos muitos homens que oprimem Kay e que, ainda por cima, é dono de um passado dúbio devido a suas relações políticas. Mas é óbvio que, eventualmente, o diretor volta a colocar o ator em seu pedestal de bom samaritano incorruptível e defensor da principal mensagem do projeto: a liberdade de imprensa. Não que surpreenda o cineasta ser idealista sobre isso - caramba, se faltasse assunto, Spielberg provavelmente faria um filme idealista sobre não pisar em formigas. E é apenas nisso que o longa quase desanda, pois o cineasta sente a sua típica necessidade incontrolável de finalizar o arco de seus personagens dando a eles a chance de discursar (mais para o público do que para os outros em cena) sobre os valores daquilo que o roteiro defendeu até ali. E quando chega o momento, ele realmente destoa do ceticismo geral da narrativa (tão coerente no resto da duração com o espírito político dos anos 1970, em especial nos Estados Unidos) mas não compromete o todo. Aliás, do modo como termina, The Post parece ter sido feito para se encaixar e ser uma espécie de prequel de Todos os Homens do Presidente, e quase aguardei que houvesse uma cena pós-créditos em que Dustin Hoffman e Robert Redford entrassem na redação dizendo para Ben, “temos uma nova história!”.
Nota: 9/10
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