quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

CRÍTICA: PANTERA NEGRA


“Me joguem no mar, como meus ancestrais que pulavam dos navios, pois até eles sabiam que morrer era melhor do que viver preso”.


A fala é de um personagem negro criado na periferia de uma metrópole americana, que sofreu com a pobreza, a brutalidade policial, a desigualdade de oportunidades e as demais expressões do racismo no mundo moderno. Hoje, ciente da trajetória dos povos africanos na história humana, essa figura lidera uma revolução contra a opressão racial. O curioso é que este é o vilão de Pantera Negra, sinal da complexidade temática e da força política de um projeto que já nasce necessário ao (apenas agora em 2018) finalmente estampar pela primeira vez o pôster de um blockbuster de super-herói com um elenco majoritariamente negro.



Era importante então que a Marvel trouxesse uma pessoa negra para encabeçar o projeto - não adianta fazer uma megaprodução sobre um herói africano e colocar ela sob a perspectiva de um Michael Bay. E para além de sua cor de pele, Ryan Coogler já vinha oferecendo uma visão interessante sobre as temáticas de luta, repressão e racismo na sua filmografia, que apesar de pequena, é significativa. Antes de dirigir Creed, sétimo filme da franquia Rocky focado no garoto do título, o cineasta vinha do impactante Fruitvale Station, produção independente baseada num caso de abuso policial contra um rapaz negro em 2008 - aliás, ambos protagonizados por Michael B. Jordan, com quem retoma a parceria neste seu terceiro longa-metragem, na pele do antagonista Erik Killmonger.


Dando continuidade ao Universo Cinematográfico da Marvel (o MCU), Pantera Negra se distancia bastante do núcleo central (e americano) dos Vingadores e se foca em Wakanda, um pequeno país que vive escondido do mundo na selva africana, camuflado através de sua tecnologia avançadíssima - aliás, é notório que o projeto tem consciência de seu próprio potencial político, já que busca ser acessível ao também se fazer mais independente do resto do MCU. Construída sobre uma mina quase inesgotável do precioso metal chamado Vibranium, a nação de Wakanda nunca dividiu sua tecnologia, suas armas ou conhecimento com outros povos, nem mesmo com aqueles descendentes da África e cujos antepassados sofreram com a escravidão, o racismo e agora lidam com as sequelas sociais disso; uma indiferença que causa a revolta de Killmonger, que usa o contrabandista Ulysses Klaue (Andy Serkis) para tentar tomar posse dos recursos do lugar agora que o trono está passando para as mãos de T’Challa (Chadwick Boseman), que como rei, também assume o manto do guerreiro Pantera Negra.


Erik, portanto, se destaca dentre os personagens desse universo (e me refiro a todos os filmes da Marvel aqui), pois apresenta uma ideologia muito tátil em relação ao contexto da nossa realidade, o que faz dele realmente mais um opositor do que, de fato, um vilão para T’Challa - algo mais próximo da relação Magneto e Professor Xavier. Apesar de seus métodos radicais, é difícil argumentar contra as motivações do personagem, que chega a questionar o conforto da elite e da realeza de Wakanda ao apontar que  “existem cerca de duas bilhões de pessoas que se parecem conosco e a vida delas é bem mais difícil!”. Afinal, basta olhar para fora das telas do cinema e perceber que o presidente do Brasil lida com pobre em favela através de intervenção militar, corroborando com um sistema que lota prisões em condições desumanas apenas com pessoas dessas classes. Ou ainda, é só notar como a polícia nunca “atira preventivamente” em gente branca, nem para “motorista suspeito” caucasiano em zona nobre, e que na nossa realidade, negro em universidade provavelmente conseguiu entrar lá com ajuda de cotas - mesmo que tenha quem diga que isso é “coisa pra favorecer vagabundo”.


A força de Erik Killmonger então vai além do antagonismo. Ele é um personagem escrito para ser incômodo no sentido mais literal da palavra - acabar com o comodismo de algumas ideias e posturas. E Michael B. Jordan entende a trajetória do algoz, fazendo um trabalho admirável ao dosar pelo menos um pouco de raiva em todas as suas falas, mesmo que algumas delas estejam disfarçadas com um cinismo e sarcasmo característicos dos estereótipos do “cara negro engraçado” perpetuado por Hollywood - uma tática que Killmonger parece adotar deliberadamente para demonstrar que aprendeu a esconder sua verdadeira personalidade usando os preconceitos da sociedade contra a própria. Essa sua estratégia de se disfarçar de clichê da pessoa negra fica bem óbvia nos instantes em que o personagem é posto em ação e revela seus modos pragmáticos e movimentos precisos dignos de um treinamento militar de ponta - mas acima disso, Jordan demonstra uma performance estudada quando a “persona” criada por Erik não é mais necessária, dando a ele a chance de protagonizar duas das cenas mais comoventes do filme (pra não dizer de todo o MCU).


Já T’Challa volta a ganhar de Chadwick Boseman uma aura de dignidade e gentileza que casam bem com a figura do rei e herói, e é interessante como seu arco engrandece quando complementado pelos embates com Erik - ele não deixa de enxergar o antagonista como um monstro despótico, apesar de compreender sua revolta. Aliás, depois de dizer mais de uma vez que adota os métodos dos opressores para combater os mesmos, não é por acaso (e nem mesmo soa como uma crítica sutil) que os planos de Killmonger envolvam armar a população. O entrelace entre as trajetórias do protagonista e vilão, inclusive, é amarrado por Ryan Coogler de forma elegante através de rimas visuais aqui e ali: se a câmera começa invertida de cabeça para baixo ao acompanhar Erik entrando na sala do trono, ela volta a se estabilizar quando enfoca T’Challa no mesmo enquadramento em outro instante; se o filme começa com o quadro de algumas crianças negras observando wakandianos abandonando-as à própria sorte, ele termina com a imagem de outras crianças no mesmo lugar descobrindo figuras negras de poder em quem se inspirar (o que, em si, já sintetiza simbolicamente o papel do projeto).


Porque sim, é importante que se façam filmes sobre todos os horrores que a escravidão e o racismo produziram por séculos, mas igualmente é preciso não reduzir a figura da pessoa negra somente a esses papéis (o escravo, o mordomo, o marginal, o pobre, o cara engraçado etc.), ou se não, por mais espaço que dê a artistas negros, a mídia vai passar apenas a endossar as condutas racistas enraizadas. Ver um exército liderado e formado apenas por mulheres negras que se tratam não como soldados, mas como irmãs, um homem negro que é rei de um país desenvolvido e pacífico, uma garota negra que é mestre em ciências e tecnologia, além de uma senhora negra cuja jornada diplomática lhe garantiu o respeito de diversos líderes, são construções praticamente inéditas no imaginário popular, mas que agora estão à frente de um filme de grande orçamento e visibilidade. E Pantera Negra, enquanto produto, entende isso. O design de produção, por exemplo, concebe Wakanda como uma grande metrópole desenvolvida repleta de arranha-céus que misturam a esterilidade do vidro e metal com coberturas de palha e acabamentos de madeira, remetendo às cabanas africanas, assim como, ao nível do chão, a cidade apresenta a configuração de bairros periféricos, com ruas apinhadas de gente, linhas de metrô que passam por cima do vivo comércio local, instalados em prédios decorados com grafite e embalados por composições Hip-Hop - todos elementos historicamente ligados aos movimentos de luta contra a opressão.


A trilha de Ludwig Göransson também faz jus a essa ideia, e investe em cânticos tribais baseados principalmente no trabalho vocal, tornando-os harmônicos a composições eletrônicas que remetem diretamente às faixas criadas a partir de sintetizadores, bastante presentes na musicalidade das periferias, principalmente porque são recursos acessíveis às pessoas que não têm condições de se submeter a um ensino musical clássico. Enquanto os figurinos de Ruth E. Carter trazem uma miscelânea de referências que transitam entre o ancestral e o moderno de forma orgânica, e acho especialmente belo como os mantos dos sacerdotes do templo onde é cultivada a planta sagrada que dá poderes ao Pantera Negra, possuem a mesma cor e textura semelhante às flores que nascem ali. Aliás, a presença de mulheres no universo tanto dentro quanto fora da tela não é para ser ignorada também - além de Carter (que já vestiu o elenco de filmes como Malcom X, Amistad e Selma), há também a diretora de fotografia Rachel Morrison (indicada ao Oscar na categoria por Mudbound) e a montadora Debbie Berman. Já em Wakanda, Lupita Nyong’o e Danai Gurira fazem o suficiente em apenas uma sequência para fazer o espectador implorar por um filme solo de suas personagens, enquanto a Shuri de Letitia Wright se estabelece como uma das personagens mais carismáticas de todo o MCU - e o diálogo que divide em certo momento com Ross (Martin Freeman), não deixa de ser uma inversão divertida das expectativas sobre os papéis de um americano branco e uma menina negra, quando ela infere a famosa frase de Arthur C. Clarke sobre tecnologia e magia contra a admiração do Agente da CIA.


O que, por fim, prova que Pantera Negra é um filme pensado de ponta a ponta e ciente do marco que é - o fato de funcionar como narrativa acaba sendo um bônus. O projeto representa um passo da Marvel em direção à relevância, pois embora cheio de filmes divertidos e envolventes, o MCU raramente tinha se arriscado a ser demasiadamente político - uma cartilha que é jogada pro alto quando T’Challa fala (quase que diretamente para Donald Trump) sobre sábios que constroem pontes e tolos que levantam barreiras. E se a jornada desses personagens comove mesmo a este branquelo que vos escreve, eu nem posso começar a mensurar o que ela significa para as pessoas que têm na pele as vivências que ainda tornam um filme assim necessário.



Nota: 9/10


Um comentário:

  1. Diferentes de muitas outras produções da Marvel, ‘Pantera Negra’ não se concentrou exclusivamente na ação, mas sim em seus personagens entregando uma abordagem séria, necessária, relevante politicamente e reflexiva aos olhos do público. Killmonger, graças a Michael B. Jordan, é meu personagem favorito. Sem dúvida, vou segui-lo de perto em seu novo projeto. Na minha opinião, Fahrenheit 451 será um dos melhores hbo filmes de este ano. O ritmo do livro é é bom e consegue nos prender desde o princípio. O filme vai superar minhas expectativas. Além, acho que a sua participação neste filme realmente vai ajudar ao desenvolvimento da história.

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