quinta-feira, 22 de novembro de 2018

CRÍTICA: INFILTRADO NA KLAN



Dentro dos acontecimentos de 2018, ano que segue com Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e no qual o Brasil elegeu um notório fascista para o cargo máximo do poder executivo (ambos, diga-se de passagem, apoiados abertamente por antigos membros da Ku Klux Klan), um filme como Infiltrado na Klan representa mais do que a sempre bem-vinda e necessária oportunidade de discutir e combater o racismo estrutural da sociedade moderna. É, também, uma denúncia de que esse mesmo racismo tem ganho força, ao invés de perder.

Estreando aqui no país na semana que marca o Dia da Consciência Negra, o novo projeto do cineasta Spike Lee, cuja carreira foi construída em cima de um cinema militante em prol das causas negras, se baseia no livro e conta o caso real do policial Ron Stallworth (John David Washington, filho de Denzel, e que já tinha trabalhado com o diretor ao lado do pai em Malcolm X), que, em meados dos anos 1970, se infiltrou numa das filiais da sociedade de supremacistas brancos nos Estados Unidos, a Ku Klux Klan. Embora tome a iniciativa e assuma de certa forma o comando da operação, Ron, que é negro, obviamente não pode comparecer pessoalmente aos encontros da Klan, e para isso conta com o colega detetive Flip (Adam Driver), que se passa por ele na tentativa de flagrar os membros da organização cometendo algum crime que pudesse colocar um fim ao movimento racista.


Entretanto, como eles descobrem, isso não vai ser tão fácil. Não porque os membros da Klan, assim como os racistas e supremacistas modernos, não cometam crimes de ódio, mas porque nem tudo o que fazem é considerado crime pela opinião pública - ainda é muito difícil explicar para as pessoas que simplesmente empregar termos como “negão” e expressões como “coisa de preto” é o tipo de atitude que implica na morte de inocentes negros e na prevalência do sentimento de superioridade branca sobre todas as outras raças, inibindo essa parcela da população do acesso à educação e às demais oportunidades de ascensão social. Aliás, a importância que a organização da KKK dá a sua imagem pública é escancarada já na cena inicial, que acompanha a gravação de um vídeo propaganda do grupo em que o apresentador (numa ponta acertada de Alec Baldwin, graças ao timing cômico do ator) se corrige em diversas passagens, trocando palavras e inflexões em tempo real para soar não violento, mas patriótico. Não racista, mas injustiçado.


Para quem assistiu também ao recente Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald, não vai ser difícil reconhecer o mesmo discurso do vilão daquele filme, aqui nas falas dos membros da Klan. Bem mais do que isso, o jardim de um dos mais fanáticos deles traz uma placa dizendo “América: ame-a ou deixe-a”, um slogan idêntico ao “Brasil: ame-o ou deixe-o” que era usado pela Ditadura Militar brasileira e que, não por nenhuma coincidência, foi utilizado novamente há algumas semanas pela rede de televisão SBT numa propaganda em homenagem o nosso novo presidente da república, Jair Bolsonaro - deixando, assim, bem claro, com que ideias compactua a chapa eleita e seus eleitores mais fervorosos.


Entretanto, para além da relevância contextual, Infiltrado na Klan é também bom Cinema, e um dos melhores projetos de Spike Lee nos últimos anos. Adotando um bom humor que parece estranhar as temáticas revoltantes com que lida o roteiro, o tom leve da narrativa, na verdade, acaba destacando os momentos mais pesados. Desde gags envolvendo o posicionamento ou o movimento dos personagens dentro de um plano, até a sobreposição de pôsteres dos filmes sobre os quais dois deles estão falando em dada cena, a missão dos protagonistas fica mais divertida de se acompanhar com esses recursos que apelam ao riso. Ou melhor, fica mais digerível, e, portanto, mais acessível a outros públicos. Ao mesmo tempo, essa descontração também remete ao “breguismo” do movimento da Blaxploitation, denunciado pelo uso de uma trilha jazzística, das cores básicas saturadas, das telas divididas de forma extravagante e até mesmo no marcante e propositalmente lúdico plano que acompanha Ron e a ativista Patrice (Laura Harrier), de armas em punho, como se deslizassem junto à câmera.


De maneira ligeiramente diferente, Lee também torna os membros da Klan em figuras cômicas, mas nunca carismáticas, transformando-as nas caricaturas que são - e indicando com isso a distorção com que essas pessoas, seus apoiadores e os líderes que apoiam (como certos presidentes por aí) enxergam o mundo. Nesse quesito, Paul Walter Hauser faz um bom trabalho ao tornar as risadas de Ivanhoe numa espécie de grunhido, enquanto noutro instante, um dos “cavaleiros” da Klan discute tópicos de extermínio em massa com sua esposa na cama, como se falassem sobre comprar uma nova casa e ter filhos um dia. Aliás, Spike Lee não é nada sutil ao se posicionar contra esse tipo de pensamento (e nem deveria ser, ninguém deve). Se por um lado as imagens documentais das marchas supremacistas de 2017 pontuam como um letreiro luminoso a mensagem ao final do filme, é um pouco mais orgânico a forma como Lee inclina sua câmera para lados opostos ao enfocar Ron e um dos líderes da Ku Klux Klan, David Duke (Topher Grace, corretamente desprezível), ao cortar de um para o outro quando conversam pelo telefone.


Já de forma um pouco mais discreta, gosto particularmente como o cineasta ressalta as listras nos ambientes que cercam Ron antes deste entrar de cabeça na nova missão, enfatizando a rotina enfadonha do policial. Ou mesmo como acompanha em closes os rostos de pessoas na escuridão de uma plateia (negra) ouvindo a um discurso inspirador.


Encabeçado ainda por duas performances carismáticas que se contrapõe diretamente às figuras asquerosas dos membros da Klan, o longa traz John David Washington com a energia apropriada a um novato que pensa ter em mãos a chance de acabar com o racismo de um vez por todas, ao passo em que o ator também confere ao policial a calma que esperamos de um homem infelizmente já acostumado a não bater de frente com seus perseguidores. Enquanto isso, Adam Driver investe em uma postura tranquila que exala o profissionalismo do detetive Flip, se contrapondo a postura segura que assume como o alter-ego de Ron, e não deixando de colocar alguns vincos em sua testa que atestam o lado a que realmente pertence, no meio de toda essa dissimulação.


Com tanto, ainda assim, depois de muito debater em meio ao processo eleitoral deste ano, me entristece constatar e pensar que é bem provável certas pessoas assistirem ao filme e saírem dizendo: “isso aí é tudo montagem e fake news”.


Nota: 10/10




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