sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

CRÍTICA: AQUAMAN


Em dado momento deste filme, uma atriz gabaritada e respeitada de Hollywood surge vestindo uma armadura feita do coro de uma criatura marinha, com as escamas e barbatanas contrastando com o corte customizado para se assentar à silhueta elegante da intérprete. Entretanto, ao invés de ridicularizar o visual absurdo da personagem, o projeto entende que esse instante representa uma catarse emocional séria para os protagonistas e o trata como tal. Isso resume muito bem a essência do novo esforço da DC nos cinemas: mesmo brega e cartunesco ao extremo, Aquaman jamais deixa de se levar a sério, e enquanto outras produções não hesitariam em fazer alguma piadinha fácil com uma cena dessas (sim, Marvel, estou falando contigo), essa dirigida por James Wan não ri de si mesma, muito pelo contrário, assume sua galhofa, suas roupagens chamativas e as poses heróicas com orgulho e seriedade.


Aliás, ao menos de um ponto de vista estritamente estilístico, Aquaman deve ser o longa mais queer do ano, e ao final não restam dúvidas: este era exatamente o filme que ele queria ser.





É quase como se o projeto tivesse pego uma lista dos clichês e breguices do cinema de ação para conferir se cumpriu todos os itens:


Um casal deu seu primeiro beijo com a câmera circulando em volta deles? Com certeza.
O herói andou de costas para uma explosão? Sim.
E ele fez isso em câmera lenta? Várias vezes, inclusive.
O vilão deu um discurso explicando seus planos? Cada detalhezinho.
Ele lutou só com o herói no final? Sim, e todo mundo tava assistindo.
Teve câmera lenta aqui também? Nem te conto.


Noutro examplo, é interessante notar que James Wan usa os atores olhando diretamente para a câmera não para sugerir um plano subjetivo ao ponto de vista dos mesmos, mas apenas porque eles ficam maneiros centralizados no quadro falando os diálogos diretamente com o público. A coisa é: eles ficam mesmo.


Wan sobe à bordo desse barco para ancorar de vez (é, eu sei, desculpa) o Universo da DC nos cinemas em uma paleta de cores mais vivas e num tom mais leve. Depois que a nova leva de filmes da editora começaram a ser produzidos à sombra dos sombrios e melancólicos Batman de Christopher Nolan, que chegou ele mesmo a produzir O Homem de Aço, o selo descobriu abaixo de duras críticas que o tom fantástico que estava procurando não casava muito bem com as paletas dessaturadas e a visão tenebrosa que Zack Snyder é tão talentoso ao empregar em seus filmes. Por isso, quando o bom Mulher-Maravilha já trouxe uma atmosfera menos densa, esse universo pegou um pouco mais de fôlego - eu tô tentando não fazer isso, eu juro.


Vindo de uma excelente carreira no cinema de horror, James Wan não abdica de alguns vícios do gênero aqui em Aquaman. E se o primeiro plano do filme, que já rebenta numa trovoada e enfoca uma janela batendo em meio à tempestade resgata de forma reverente alguns arquétipos do Terror, as vezes em que o herói do título é surpreendido por uma explosão repentina, que estoura nas caixas de som com o óbvio intuito de assustar a plateia, tornam-se um recurso cansativo depois da terceira ou quarta vez que acontecem. Além disso, Wan, que já tinha demonstrado na franquia Invocação do Mal ser adepto dos planos sequência feitos por grua, voando por dentro dos cenários e sobre eles, aqui parece deslumbrado com o orçamento bem mais inchado e não se abstém de explorar as grandiosas sequências de ação fazendo sua câmera mergulhar no meio de prédios e por dentro de janelas e portas e até atravessando paredes em planos sem cortes.


De outra forma, em dois momentos o cineasta escolhe silenciar os efeitos sonoros e priorizar a trilha para enfatizar a dramaticidade de algum evento. São escolhas como essa que concedem certa seriedade a um projeto que jamais evita a composição carnavalesca de cenários e figurinos, tão chamativos e saturados que quase chegam a poluir o visual do filme - o que, é preciso ressaltar, não ocorre. Aliás, a visualidade de Aquaman é toda ela deslumbrantemente ambiciosa, Wan chega a criar não apenas um, mas incontáveis planos memoráveis de uma plasticidade impressionante, tanto na criatividade como na execução - fica na memória, ao menos, aquele que acompanha Aquaman e Mera mergulhando para fugir de um enxame de monstros marinhos. Mas o design de produção tem destaque nesse assunto, e a cidade subaquática de Atlantis, em especial, é uma mistura orgânica de ruínas ancestrais com prédios da mais alta tecnologia arquitetados em típicas formas marinhas, como medusas, corais e algas. Da mesma forma, os veículos seguem essa ideia e se inspiram no formato de tartarugas e camarões, por exemplo - o que lembra bastante a ideia por trás da composição de Wakanda em Pantera Negra.


Por outro lado, os efeitos das realizações digitais variam bastante. Embora sejam geralmente de alta qualidade e competência, os trabalhos em CG (computação gráfica) são utilizados para tornar reais os poderes-sobre-humanos dos atlantes, e isso implica em substituir o corpo dos atores por bonecos digitais na maior parte do tempo e em praticamente todas as cenas de ação. E por que isso é ruim? Bom, porque nos lembra o tempo inteiro que estamos assistindo a algo animado, e não real. Ou seja, Aquaman esbarra no limiar mais básico que existe entre filmes live-action e de animação. As piruetas e pirotecnias não despertam o escrutínio do público em um filme que se propõe a ser completamente animado, mas em um live-action (com atores de carne e osso), sim.


O roteiro acompanha a história de Arthur Cury (Jason Momoa), filho da rainha Atlanna (Nicole Kidman) com um faroleiro humano. Descendente bastardo do trono do reino de Atlantis, Arthur é contra a ideia de disputar a coroa com seu meio-irmão Orm (Patrick Wilson). Entretanto, quando este último convoca uma guerra contra o povo da superfície, Arthur, que é filho dos dois povos, é compelido por Mera (Amber Heard) a tentar mudar o rumo catastrófico desse confronto.


Heard, inclusive, chega a ser mais heróica do que o próprio Aquaman, que opta por se abster do protagonismo na maior parte do tempo. Isso compensa bastante a falta de carisma da atriz e a química que ela jamais chega a criar com Momoa. Seus poderes, porém, são mais interessantes e usados de forma mais criativa do que os do herói-título - aquela que envolve uma adega é excelente. Junto a ela, confirmando a vontade que o estúdio certamente teve de dar visibilidade às mulheres da produção, Nicole Kidman já protagoniza uma curta e, ainda assim, fantástica sequência de ação nos minutos iniciais do projeto. E se Patrick Wilson consegue tornar Orm num vilão compreensível, especialmente levando em conta suas motivações, Willem Dafoe emprega sua postura intelectual para construir em Vulko uma figura de calma e sabedoria. Já Momoa, por fim, tem o trabalho mais fácil do filme, vivendo um personagem que ficou marcado pela personalidade insossa e os poderes risíveis com a postura indiferente e bruta dignas de um badboy de raíz, o que, em última análise, o torna no mínimo magnético, e embora pouco fale qualquer coisa, sua presença é sempre divertida e confere segurança ao espectador.


Provavelmente o esforço mais acertado da DC nos cinemas desde que Nolan encerrou a trilogia do Cavaleiro das Trevas, Aquaman é divertido justamente porque não tem vergonha alguma de colocar seu herói para fazer pose em roupas coladas que combinam laranja e verde e de frente a um vilão cujo figurino é tomado pelo prata e o roxo. O espírito “quanto mais melhor” do filme rompe com a barreira que poderia torná-lo equivocado, algo que Wan certamente trouxe de sua aventura em Velozes e Furiosos 7. Não que tenha algo de errado em ser sombrio e melancólico, mas a nova “fase” da DC com certeza está mais interessante e, apesar de ter abandonado o drama e a introspecção, bem mais profundo também… Essa nem foi um trocadilho, nem vem.


Nota: 8/10


Nenhum comentário:

Postar um comentário