"WHY DO WE FALL?"
"Por que caímos,
Bruce?" pergunta retoricamente Thomas Wayne ao filho após este ser resgatado de
um poço no qual caiu acidentalmente, logo respondendo a própria pergunta ele
diz: "Para aprendermos a levantar".
Batman nunca foi o herói preferido entre
as crianças (ele não era o meu). Sombrio e sem nenhum "poder bacana",
o morcegão nunca teve um grande apelo para com o grande público, e todas suas
versões anteriores que fizeram sucesso se calcam no humor, no "estranho"
e em vilões coloridos e absurdos para chamar atenção. Era o caso da série de TV
e dos filmes de Tim Burton. Mas esta é uma análise rasa, quase tola. Assim como
as visões do personagem que nos haviam sido apresentadas até 2005 nas telas do
cinema. Sim, pois nas HQs o herói já havia ganhado versões mais sombrias ainda
na década de oitenta e sua transposição para o cinema nestes moldes foi um
acerto e tanto seja de Christopher Nolan, David S. Goyer ou dos produtores da
Warner responsáveis por garantir o sucesso de uma nova franquia.
E o que torna este novo Batman/Bruce Wayne
um sujeito cativante? Ou o que pode torná-lo alguém com quem não conseguimos
nos identificar? Pois bem, assim como um animal exótico exibido num zoológico,
este Batman é algo que não estamos acostumados a ver por ai. Um espécime de
real altruísmo (discuto mais aprofundadamente este ponto adiante) e compaixão.
"Ah, mas Yuri, isto o Homem Aranha é também! E o Superman e o Capitão
América..." Sim! Realmente, são heróis bondosos e cheios de compaixão. Aí
que entra então o fascínio exalado pelo Batman nas mãos de Nolan. O diretor
reverte o que se tentava fazer com o personagem até então. Enquanto
anteriormente o herói era levado para as telas em situações fantasiosas, com
vilões mais fantasiosos em tramas contadas de maneiras mais fantasiosas,
compensando a falta de poderes (que não seja seu cartão crédito) em relação a
outros heróis, em Batman
Begins Nolan assume Batman
como um herói de carne e osso, colocando o personagem e seu mundo com os "pés
no chão". E isto faz toda a diferença, pois enquanto nos soa normal que o
jovem Peter Parker (por melhor que tenha sido sua educação) em meio a agitada
New York se arrisque todos os dias para salvar todos a seu alcance de situações
perigosas, este personagem só nos é tragável pela abordagem
"fantasiosa" (ótima, diga-se de passagem) feita por Sam Raimi naquele
longa. Já ao retratar Gotham City como uma cidade real, com vilões reais e
táteis, o altruísmo de Batman se destaca, chamando a atenção do público.
Afinal, no mundo real, não é comum ver este tipo de atitude ou comportamento em
um ser humano, principalmente em um que é o representante da sempre
inescrupulosa indústria, como Bruce Wayne o é. E por isso o personagem torna-se
tão mais interessante nesta revisão mais realista, pois para tornar o
protagonista algo que chame a atenção e se destaque tanto quanto seus
esquisitos vilões, era necessário que algo fizesse dele alguém diferente dos
outros cidadãos de Gotham, algo que não fosse o simples fato de possuir
montanhas de dinheiro como acontece a Tony Stark e seu Homem de Ferro. Nolan
tira o mundo fantasioso de Batman, mas mantém seu altruísmo quase impossível no
mundo real, assim, destacando seu herói.
"IT'S
NOT WHO I AM UNDERNEATH, BUT WHAT I DO THAT DEFINES ME"
A única pessoa a quem Bruce escolhe contar
que ele é o homem vestido de morcego salvando vidas em Gotham, é a Rachel.
Alfred esteve presente em todo o desenvolvimento, portanto não precisou ser
informado. Mais tarde quando precisou de ajuda para curar Bruce do
envenenamento pelo gás do Doutor Crane (chegarei nos vilões já), Alfred conta a
Lucius Fox que torna-se o principal fornecedor de equipamentos ao Batman. Ao
final de Batman Begins confrontado por Rachel sobre as
chances que Batman tinha de morrer durante sua missão de salvar Gotham do plano
de Ra's Al Ghul, o personagem vira-se e diz: "Não é quem eu sou por
dentro, mas o que eu faço que me define" revelando assim por tabela que
sua identidade era Bruce Wayne. Porém, o herói não o faz para que caso morra,
fique no anonimato e ninguém saiba que ele era o Batman, e sim porque considera
as chances de morrer e ficar sob a visão de Rachel como um playboy babaca e
egoísta. Bruce ao revelar sua identidade à garota que ama, não pretende ganhar créditos
com isso, ele apenas quer que ela saiba que estava certa sobre ele. Quer
garantir que se caso sobreviva, ele poderá contar com ela. E a prova de que não
é com sua reputação que ele está preocupado vêm algumas cenas antes, quando
Bruce banca o idiota de propósito para salvar os convidados de sua festa do
incêndio que seria provocado por Ra's Al Ghul em sua mansão. O milionário abre
mão completamente de sua reputação para salvar aquelas pessoas, provando que o
que Bruce Wayne busca não é reconhecimento pelas ações de Batman. Ele é um ser
dedicado a sua causa de trazer o simples e velho "bem" a sua cidade.
Mas é ao final de O Cavaleiro das Trevas que Bruce estabelece o tamanho de seu
altruísmo e de sua dedicação a sua causa. Ao constatar os terríveis feitos de
Harvey Dent, a quem ele havia apoiado e ajudado a ganhar popularidade, o herói
decide assumir os crimes do promotor para salvar sua cidade do caos em que ela
se transformaria caso soubessem que a paz em que viveriam era fruto do trabalho
de um criminoso. E assim, Batman não só assume o fardo como também aposta que
isto será o suficiente para garantir a paz em Gotham, aposentando o uniforme do
homem morcego. E sob um discurso do comissário Gordon e de um mashup das faixas
"A Dark Knight" e "I'm Not a Hero" da trilha maravilhosa de
Hans Zimmer e James Newton Howard (postadas abaixo), o herói adentra a escuridão e as entranhas
de Gotham em um ato de sacrifico próprio tão denso, intenso e profundo como
poucos que vimos no cinema. Um sacrifício que se não é tão grande quanto dar a
própria vida, possuí pelo menos o mesmo peso dramático. Um ato de verdadeiro altruísmo definindo apenas ali,
sim, ali, no final do segundo filme, Batman como o herói física e
psicologicamente preparado para ser aquele que conhecemos.
"YOU'RE JUST A FREAK, LIKE ME"
Uma das coisas que mais
aprecio nos Batman's de Nolan é a naturalidade com que
introduz seus vilões. Mesmo em O
Cavaleiro das Trevas que tem
um antagonista bem definido, sua entrada em cena, seu desenvolvimento e seu
destino final são tratados com extrema realidade. Não é como acontece na
maioria dos outros filmes de super heróis em que cada longa parece ser dedicado
ao surgimento e derrota de um novo vilão. Nas trilogias Homem Aranha e X-men isto é bem definido. Homem Aranha 2 acontece em torno do Doutor Octopus
assim como X-men acontece em torno dos planos de
Magneto. E não estou diminuindo estes filmes, apenas comparando as diferentes
abordagens. O que quero dizer é: Nolan põe seus personagens a favor da trama e
não o contrário. Por exemplo, por Begins e O Cavaleiro das Trevas, já passaram
pela tela pelo menos oito vilões saídos das HQs. Em dois filmes, oito vilões.
Sob a batuta de qualquer outro realizador talvez tivesse havido oito filmes,
cada um para que o herói tivesse como algoz um destes vilões.
Em Batman Begins conhecemos primeiramente Ra's Al Ghul,
que do senhor "natureba evil" retratado nas HQs torna-se um idealista
em busca da perfeição. Ele não é mau ou cruel, ele é apenas metódico e frio. Os
sacrifícios humanos em busca da perfeição para ele são necessários. Se há um
grande vilão no filme seria ele. Ao que Nolan nos apresenta então Carmine
Falcone (nas HQs, o "Romano"), um mafioso que tem as autoridades de
Gotham na palma da mão, controlando a cidade através do medo que exerce sobre
as pessoas. Durante o filme descobrimos que Falcone é responsável por trazer as
drogas, que Ra's Al Ghul usará em seu plano, junto com as outras que o
criminoso já trazia para dentro da cidade. Para garantir que a polícia não se
envolva nesse contrabando, Falcone suborna o corrupto Tenente Flass, que é um
pequeno vilão, mais de Gordon do que do Batman, na HQ Ano Um, e que aqui, embora ganhe uma
encarnação mais obtusa e menos ameaçadora, marca presença como uma das figuras
entre Batman e a limpeza da cidade. Mas precisava-se de alguém para tratar a
droga e prepará-la para ser despejada nas águas de Gotham. O responsável por
esta tarefa é o Doutor Jonathan Crane, apaixonado pela loucura e a insanidade
de seus pacientes, o psiquiatra aproveita uma parte do composto fornecido por
Ra's Al Ghul para testar suas fórmulas nos internos do Asilo Arkham, enquanto
dá o destino combinado ao resto dele. Crane e seu composto do medo são
conhecidos das HQs, o Doutor vem mais tarde a se tornar o conhecido vilão
Espantalho. Entendem então o que eu quero dizer? Quatro vilões das HQs em
apenas um filme, inseridos naturalmente na trama, com funções que a empurram
pra frente. Nolan entende que no mundo real os vilões são assim, não agem
sozinhos, sempre há vilões menores prontos a ajudar, cada um no que sabe fazer.
E assim, vilões icônicos das HQs ganham suas versões "realistas" em
tela. E se nas HQs a figura do Espantalho montado sobre um cavalo causando o
terror era algo comum, Nolan faz com que isso seja também aceitável se visto
naquele mundo. Ao introduzir esta cena em um ambiente de caos onde o
Doutor Crane, já enlouquecido pelo próprio veneno, cavalga um animal que
provavelmente pertencia a guarda montada da polícia. Assim, torna-se uma tarefa
cativante ver cada um destes seres saírem das páginas e se concretizarem de
maneira crível na tela.
Ao final então de Begins, Gordon entrega a Batman
o "cartão de visita" de um novo criminoso, o Coringa. A introdução
simplesmente genial (Nolan já assumiu ter se inspirado em Fogo contra
Fogo para realizá-la) de O Cavaleiro das Trevas e a entonação com que Batman diz
"ele de novo?" quando Gordon lhe revela o responsável pelo assalto ao
banco, são detalhes que nos dizem muito sobre a convivência com a presença
deste criminoso. Ou seja, passou-se algum tempo entre um filme e outro, e o tal
Coringa já vem aprontando desde então. E nem ele é um inimigo tão importante
assim naquele momento, já que Batman ainda desconhece seu potencial para a
vilania e logo prefere caçar a máfia inteira do que um criminoso só. É quando
no tribunal somos apresentados a Harvey Dent que todos sabemos irá se tornar o
Duas Caras. Lá o encontramos ao lado de Rachel (lembra dela? O amor da vida de
Bruce Wayne?) processando Salvatore Maroni que tomou o controle da organização
criminosa após Falcone ter sido internado fora de si. Maroni é outro vilão
vindo das HQs (lá ele morre pelas mãos de Alberto Falcone, filho de Carmine),
aqui um de seus capangas tenta matar Hervey Dent em pleno tribunal. Algo que se
no filme serve para estabelecer o caráter destemido de Dent e sua obsessão por
fazer justiça, acaba servindo também aos fãs das HQs que ganham pelo menos uma
homenagem à icônica cena dos quadrinhos onde o próprio Maroni jogava ácido no
rosto do promotor, transformando-o no perturbado vilão que conhecemos. E pra
finalizar, outro vilão que aparece, mas que no filme não é tratado como um, é o
comissário Loeb, que antecede o Tenente Gordon no cargo, e que no filme não é
um "carinha do bem" nem do mal, mas que nas HQs é um corrupto que se associa
a Falcone e apoia que Flass ameace Gordon, encobrindo as ações da violenta SWAT
de Gotham contra civis e contra o próprio Batman. Mais quatro vilões vindos das
HQs e inseridos de forma natural na trama, de forma a servi-la. Mas um deles,
um dentre estes quatro merece uma avaliação melhor.
"...OR YOU LIVE LONG ENOUGH TO SEE YOURSELF BECOME THE
VILLAIN"
Muito já foi dito e
discutido sobre o Coringa de O
Cavaleiro das Trevas e não
vou negar aqui que é um dos meus vilões favoritos de todos os tempos. Sua áurea
ameaçadora provida pela total falta de informações sobre suas motivações, a
interpretação genial de Heat Ledger, o papel caótico e as linhas marcantes
ditas pelo personagem e escritas por Jonathan e Christopher Nolan, a
caracterização icônica do personagem, todos elementos que fizeram do Coringa um
dos personagens mais populares de todos os tempos quase
que instantaneamente. Porém, não é do palhaço psicopata que quero falar, e
sim, de Harvey Dent e seu arco para se tornar um vilão. Nolan trabalha muito
bem a transformação da personalidade do promotor em Duas-Caras, dando
embasamento a seus atos, tornando-o crível e tal mudança convincente,
conseguindo ainda usá-lo efetivamente como vilão dentro do filme. Coisa que
George Lucas fez muito atrapalhadamente em três filmes com Darth Vader, Nolan faz de forma
satisfatória em apenas um.
Conhecemos Dent, sua busca por justiça,
seu amor a Rachel e sua moeda de dois lados iguais. A transformação de Harvey
em Duas Caras a meu ver começa logo após a morte de Rachel. Empregando uma
linguagem puramente visual a cena, Nolan "conta" a Harvey a sua perda
de forma a explorar o máximo que o cinema pode nos dar em questões de
linguagem. Pelo luto a morte da personagem, a cena teria de ser silenciosa, mas
Dent precisava saber do acontecido. Então vemos o seguinte: Harvey acorda, vê a
sua moeda da sorte ao lado da cama no hospital (a moeda estava com Rachel antes
de eles se separarem), ele a pega e olha um de seus lados, que está intacto. Vira-a
e constata que o outro está carbonizado, indicando que Rachel não escapou da
explosão. Uma maneira elegante e altamente eficiente de mostrar Harvey
começando sua jornada para se tornar o vilão. Seu pseudônimo já surge num
diálogo com Gordon e suas motivações finais em outro com o Coringa. Então
Duas Caras começa sua caçada aos responsáveis pela morte de Rachel. Veja, ele
não é um ser monodimensional que só busca destruir o herói. É alguém perturbado
procurando fazer justiça com as próprias mãos. Ele não é cruel, sua raiva do
sistema corrupto e seus integrantes o domina, mas ele está preso à ideia da
justiça imparcial. Note que ele não mata Ramirez, a policial corrupta que
entregara Rachel aos bandidos. Em seu discurso final ele diz: "pensamos
que podíamos ser homens decentes, em tempos indecentes" chegando ali
então, ao ápice de sua transformação. E enquanto em outros filmes, o vilão
teria sido deixado para uma continuação, Nolan respeita seu público não distorcendo
a trama que quer contar por razões comerciais, deixando que o arco do vilão
termine ali.
Foi o medo que criou o Batman, e o medo é
a principal arma de seus inimigos. Medo é o
efeito do gás do Espantalho, com o qual Ra's Al Ghul queria destruir
Gotham. Medo é a chave para o caos nas mãos do Coringa.
"A DARK KNIGHT"
O plano genial onde Nolan
inverte sua câmera num diálogo de Batman com o Coringa, não só colocando ambos
no mesmo nível, mas praticamente desenhando na tela as visões totalmente
díspares dos dois personagens, é um bom momento dos filmes para se observar a
preocupação cinematográfica que o cineasta tem para com o projeto. E esta
preocupação em dar profundidade aos longas é o que me permite estar aqui criando
um post especial para analisar estes. E sei que uns dirão: "mas é só
um filme do Batman", porém, enquanto cineastas como Nolan se dedicarem
desta forma a não filmar apenas mais um filme, eu sentirei orgulho em dizer que
gosto, aprecio e que posso analisar exemplares como Batman
Begins e O Cavaleiro das Trevas.
É por isso que a próxima
parte do Especial sobre Batman será sobre ele, Christopher Nolan.
Enquanto isso não deixe
de checar a primeira parte deste Especial clicando aqui.
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