Escritos sobre as imagens do
filme, surgem ocasionalmente trechos dos registros reais e oficiais da
vigilância governamental feita em cima de Martin Luther King (David Oyelowo) e
das pessoas envolvidas com o seu movimento, mais especificamente, aqueles
referentes ao caso da cidade Selma, que dá título ao projeto, e onde King usou a
população negra oprimida como fonte de catarse para alavancar o seu pedido junto
ao presidente Johnson (Tom Wilkinson) por mudanças na constituição eleitoral.
Usando palavras como “agitadora”, “crioulos” e “incita” para descrever Coretta
King (Carmen Ejogo), os pacíficos manifestantes e o discurso do protagonista em
uma igreja, respectivamente, esses registros denunciam com clareza a segregação
que ainda estava impregnada no próprio sistema do governo dos EUA em 1965, mesmo que
seu presidente já desde a primeira cena encha a boca para dizer que esse é um
problema já superado. E essa é a parte menos revoltante de Selma, que mais
tarde chega a trazer imagens de arquivo do verdadeiro protesto sobre que fala,
aterrorizando minutos depois ao revelar que várias pessoas foram mortas e
gravemente agredidas durante ele. Mais aterrorizante ainda, porém, é pensar que
estas filmagens foram feitas há apenas cinquenta anos... E tem gente, no
Brasil, que, assim como achava Johnson, pensa que o racismo e a segregação ficaram
nesse passado obscuro, posicionando-se contra programas como o de cotas raciais
e os demais de conscientização, como se as centenas de anos de escravidão,
humilhação e restrição de direitos fossem ser curados em apenas meio século.
“Eles querem conscientizar os
negros, eu digo que temos que conscientizar os brancos” diz King em certo
momento resumindo eficientemente a questão pertinente levantada por Selma, que
poderia facilmente glorificar o seu personagem central, o que não faz. É um
homem, sim, bondoso e sábio que Oyelowo interpreta aqui, mas também um
pragmático, que não se ilude e entende como funciona a fria aparelhagem governamental, sabendo jogar com ela e com a mídia, arriscando e pagando o
preço de, por exemplo, ver um senhor de idade ser espancado na sua frente. O
Martin Luther King desse longa-metragem encara o acontecido com dor, mas
duramente, sem arredar o pé, tem sangue-frio o suficiente para saber que os
direitos de milhões e de gerações futuras valem o sacrifico de alguns poucos.
Mais de uma vez também o vemos preparando algum de seus famosos e eloquentes
discursos, ensaiando-os, o que não só o torna mais crível como ser humano, mas
também acusa nele a consciência de que seus passos precisam ser estudados e
executados com segurança e precisão, algo que muitos militantes de várias
causas ainda hoje desentendem e apostam na força bruta contra um sistema que se
alimenta justamente deste embate direto.
David Oyelowo, assim, executa um trabalho
formidável, principalmente com seu sotaque que hora expressa suas opiniões de forma
polida e noutra já sussurram para a irmã pelo telefone pedindo que lhe cante
uma canção para que relaxe. Situações que se diferenciam da cadência que usa para
discursar, quando então conhecemos não o homem que ele finge ser, mas o símbolo
que ele precisa ser. Humanizado, é possível se emocionar com a sua comoção ao
conversar com o pai de um dos jovens manifestantes brutalmente assassinados,
que revela que o sonho do filho era que ele pudesse votar, assim como não é
difícil chegar às lágrimas ouvindo o discurso que dá como encerramento do
longa, não porque é um mais tocante que seus anteriores, mas porque a esse
ponto do filme, é possível entender a importância, não de King – que sim, foi
importantíssimo – mas do tal “sonho” pelo qual clamava lutar, e que ainda hoje
deveria ser dito com tanta veemência em praça pública quanto o era há tantas
décadas atrás. O filme dirigido pela diretora Ava DuVernay e produzido por
Oprah Winfrey (que aliás, faz uma ponta aqui) poderia facilmente, deste modo,
se tornar maniqueísta e apelativo. Mas esses defeitos jamais chegam a se
concretizar quando o que Selma usa como dispositivo para comover é apenas a
verdade. A triste verdade que, neguem o quanto quiser, ainda é uma realidade a
ser combatida.
NOTA: 8/10
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