segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA)


Em anos passados o ator Riggan (Michael Keaton) foi uma estrela de Hollywood por interpretar um popular super-herói chamado Birdman. Quando o conhecemos, porém, ele medita no camarim de um teatro que está prestes a receber uma peça escrita, dirigida e estrelada por ele, a fim de ser reconhecido como um ator sério. Ele tem, inclusive, pendurado no seu espelho um bilhete com os dizeres "uma coisa é uma coisa e não o que é dito dela". Mas, seria esse mantra uma verdade ou apenas uma máxima em que Riggan deseja acreditar? De certa forma, Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) - e a partir daqui, só Birdman, ok? - se empenha em responder a essa pergunta, habilmente colocando em xeque a validade de um conceito deslocado e purista de "arte" (com "a" minúsculo) que ainda hoje tenta manter a ideia de que o conhecimento erudito é apenas aquele ao alcance de uma elite social.


Há  uma vertente, na verdade uma sequela, de entendimento do que é Arte, e que vem desde a época em que saber ler para ter acesso as grandes obras, ir ao teatro, à ópera, ou aprender a tocar algum instrumento eram atividades culturais a que só a burguesia tinha acesso. Esse pensamento rejeita o que compõe a cultura popular porque isso estaria relacionado ao que a população menos erudita gosta, consequentemente, àquilo que não seria feito com qualidade ou conteúdo. O que uma vez pode ter sido uma realidade (embora não uma verdade) hoje é antiquado e defendido apenas por pessoas que ainda tentam usar a sua erudição como forma de afirmação de superioridade. Mal sabem que não só soam patéticas como também se privam de uma gama fascinante de produção artística e estéticas que abrangem do mais caro blockbuster até o mais experimental dos filmes universitários.


Birdman chega perto de se assumir como parte deste grupo detestável surpreendentemente ao atacar uma personagem que o representa (uma crítica de teatro), já que ao mesmo tempo em que discorda de suas ideias, o projeto também quase acaba vestindo uma carapuça pretensiosa ainda pior, parecendo se considerar bom demais e, portanto, acima de qualquer análise. Mas quando resolve defender a tal resenhista teatral, vivida com o desprezo correto por Lindsay Duncan, que o longa-metragem dirigido por Alejandro G. Iñárritu se assume como uma  alfinetada cínica na grande indústria hollywoodiana - uma alfinetada divertidamente hipócrita, que a reconhece como forma de expressão e, por que não, de Arte sim.


O triste é que figuras como Tabitha (a personagem de Duncan) não se restringem a existir apenas na ficção, e diariamente disseminam tolos pré-conceitos que impedem uma maior democratização da Arte - isolando ainda mais obras que por apresentarem temas mais pesados, abordagens menos convencionais e ou linguagens experimentais ou incomuns, já são naturalmente segregadas pelo grande público. Um modus operandi que é injusto com qualquer filme. Afinal quem diria, por exemplo, que depois de anos se provando um péssimo diretor, Michael Bay iria entregar um longa tão divertido e inteligentemente autocrítico como Sem Dor, Sem GanhoEntão se estamos passíveis de sermos surpreendidos em qualquer área, mesmo quando as expectativas apontam para outro lado, é apenas justo que estejamos abertos a qualquer produção. E já que estamos falando de uma obra tão metalinguística, que chega a incluir o baterista da trilha sonora mais de uma vez nos cenários diegéticos, deixe-me usar Birdman como estudo do próprio caso: quem conhece o trabalho de Alejandro G. Iñárritu de seus densos trabalhos anteriores, como 21 GramasBabel e Biutiful, sabe que esteticamente em nada lembram esse projeto aqui. De fato, estou inclinado a afirmar que este é, na verdade, um filme de Emmanuel Lubezki, o diretor de fotografia da produção e um dos melhores profissionais da sua área.


Todo o longa-metragem sendo um longuíssimo plano sequência (sem cortes) – linguagem apropriada que conversa com a natureza contínua e igualmente sem cortes do teatro, que é, afinal, o lugar que abriga toda a ação aqui – é apenas natural que tenha sido Lubezki o designado para a complicada tarefa de filmar Birdman, tendo em vista seus impressionantes feitos anteriores com a mesma linguagem em sequência vista em Filhos da Esperança e Gravidade (pelo qual venceu o Oscar no ano passado) – os dois sob a batuta do cineasta Alfonso Cuarón. Fora isso, é óbvio como Lubezki incorpora também uma iluminação e enquadramentos que juntos formam composições de quadro absorvidas diretamente de suas colaborações com Terrence Malick. De fato, não há quase nada de Iñárritu no longa-metragem. O próprio humor inerente à produção se distancia dos roteiros densos e melodramáticos de seus filmes prévios – e tenha em vista que ele é um dos autores do texto aqui. Um humor que é menos calcado em piadas preparadas e estruturadas na trama desde o copião original, do que na interpretação que um elenco afiadíssimo dá a ele.


A começar por Michael Keaton, fazendo as vezes de si mesmo. O Birdman de Riggan é o Batman de Keaton. Roteirista, diretor, produtor e estrela de sua peça, não é surpresa que o protagonista, vindo da vida luxuosa em Hollywood, sinta-se como um ser superior incompreendido, o que é ilustrado com sua suposta capacidade de telecinese e, mais tarde, com superpoderes, que ele parece administrar timidamente como se fosse dotado de um conhecimento revolucionário que as pessoas a sua volta ainda não estariam prontas para receber. Cabisbaixo nesses instantes e neurótico nos bastidores da sua produção, Keaton humaniza seu personagem através de uma vulnerabilidade que se denuncia aqui e ali em momentos como aquele em que, confrontado pela filha (Emma Stone, genial nesta cena também), fica sem resposta e acaba cedendo a uma tragada da maconha pela qual estivera xingando ela minutos antes por esconder dele. Comove também quando relembra emocionado com a ex-esposa um incidente durante seu casamento que lhe trazem lágrimas aos olhos logo antes de sua apoteótica entrada final no palco. De certa forma, Birdman seria a versão bem humorada de Cisne Negro.


E se lá no filme de Darren Aronofsky, Natalie Portman tinha Mila Kunis como um ótimo contraponto de cena, aqui Keaton encontra o seu em um Edward Norton que, chegando de mancinho com a presença de seu Mike, primeiramente apenas um ator extrovertido, aos poucos começa a se revelar uma figura impagável com seus modos metodistas de atuação; “eu nunca finjo nada no palco” diz ele depois de ter uma ereção incidental no meio de uma das cenas da apresentação, o tipo de coisa que deixa Riggan cada vez mais furioso com o seu colega, e nesse ponto, é curioso que seja nos diálogos que troca com Sam (Stone) – com quem o nosso protagonista vive seu outro maior atrito - que ele encontre os únicos momentos em que o flagramos lúcido... E sim, “eu arrancaria os seus olhos e os colocaria no meu próprio crânio para poder ver as ruas como quando tinha a sua idade” é a parte lúcida do personagem.


Enquanto isso Naomi Watts, Zach Galifianakis e Andrea Riseborough divertem nas interações de transição com o trio principal, servindo não só como cortinas dramáticas para que a história possa andar, mas desenvolvendo os personagens com quem contracenam, também fortificando a ideia afirmada por Sam de que há um mundo afora esse da peça de seu pai, e que nele as pessoas estão vivendo, querendo coisas e querendo ser alguém. Algo de que qualquer um de nós faz irremediavelmente parte, eu escrevendo esta crítica, inclusive. Um discurso que envolve a aceitação das novas formas de mídia, o que é irônico de se apontar para Riggan uma vez que para se provar um profissional sério ele escolheu deliberadamente uma “mídia” que precede o cinema, do qual ele fazia parte, não deixando de ser um retrocesso, ou no mínimo, uma visão conservadora do que é “algo sério”. Então é mais do que apropriado que o longa encerre com um plano de Stone, admirada por estar presenciando enfim de forma literal o alçar de voo de seu pai – e mesmo que o conteúdo da cena em si não seja mostrado, nós sabemos o que é, e fascina que o cinema como forma de arte se permita ocasionalmente sair de suas curtas rédeas e tomar esse tipo de liberdade dramática. É o Tiranossauro-rex que salva o dia no fim de Jurassic Park, é a chuva de sapos em Magnólia, é a aranha gigante escondida no quarto em O Homem Duplicado. São acontecimentos literais na trama cujo simbolismo implícito que possam ter importa menos do que o efeito que causam no espectador, que ou rejeita o elemento por não ser coerente com o resto do projeto, ou o aceita e, portanto, a arte em si como um meio de expressão livre. Uma liberdade que deveríamos nos dar enquanto artistas e enquanto consumidores de suas obras para que, mais importante do que não sermos esquecidos depois de vistos, jamais esqueçamos do que vimos.

O que me faz repensar e admitir: eu estava errado, há algo sim de Iñárritu em como o roteiro instiga a esses questionamentos sociais/culturais/existencialistas... Interessante, muito interessante.

P.S. justamente por se tratar de um filme supostamente sem cortes, mas que é óbvio que envolveram vários disfarçados aqui e ali, é que é uma vergonha que a Academia não tenha reconhecido o filme com ao menos uma indicação a Melhor Montagem, que tamanha a qualidade do trabalho dos montadores Douglas Crise e Stephen Mirrione deve ter passado batido para os votantes.   




Nota: 10/10 




Um comentário:

  1. Desde que se recusou a estrelar o quarto filme com o personagem sua carreira começou a decair. Edward Norton foi excelente no filme, este ator nos deixa outro projeto de qualidade, de todas as suas filmografias essa é Beleza Oculta que eu mais gostei, acho que deve ser a grande variedade de talentos. A chave do sucesso é o bem que esta contada a historia e a trilha sonora, enfim, um dos meus preferidos.

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