Em anos passados o ator Riggan (Michael Keaton) foi uma
estrela de Hollywood por interpretar um popular super-herói chamado Birdman.
Quando o conhecemos, porém, ele medita no camarim de um teatro que está prestes
a receber uma peça escrita, dirigida e estrelada por ele, a fim de ser
reconhecido como um ator sério. Ele tem, inclusive, pendurado no seu espelho um
bilhete com os dizeres "uma coisa é uma coisa e não o que é dito
dela". Mas, seria esse mantra uma verdade ou apenas uma máxima em que
Riggan deseja acreditar? De certa forma, Birdman
ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) - e a partir daqui, só Birdman, ok? - se empenha em responder a
essa pergunta, habilmente colocando em xeque a validade de um conceito
deslocado e purista de "arte" (com "a" minúsculo) que ainda hoje tenta manter a ideia de que o
conhecimento erudito é apenas aquele ao alcance de uma elite social.
Há uma vertente, na
verdade uma sequela, de entendimento do que é Arte, e que vem desde a época em
que saber ler para ter acesso as grandes obras, ir ao teatro, à ópera, ou
aprender a tocar algum instrumento eram atividades culturais a que só a burguesia tinha acesso. Esse pensamento rejeita o que compõe a cultura popular porque isso
estaria relacionado ao que a população menos erudita gosta, consequentemente,
àquilo que não seria feito com qualidade ou conteúdo. O que uma vez pode ter
sido uma realidade (embora não uma verdade) hoje é antiquado e defendido
apenas por pessoas que ainda tentam usar a sua erudição como forma de afirmação
de superioridade. Mal sabem que não só soam patéticas como também se privam de
uma gama fascinante de produção artística e estéticas que abrangem do mais caro blockbuster
até o mais experimental dos filmes universitários.
Birdman chega perto de se assumir como parte deste grupo detestável
surpreendentemente ao atacar uma personagem que o representa (uma crítica de teatro), já que ao mesmo
tempo em que discorda de suas ideias, o
projeto também quase acaba vestindo uma carapuça pretensiosa ainda pior, parecendo se considerar bom demais e, portanto, acima de qualquer análise. Mas quando resolve defender a tal resenhista teatral, vivida com o desprezo correto por Lindsay
Duncan, que o longa-metragem dirigido por Alejandro G. Iñárritu se assume como uma alfinetada cínica na grande indústria hollywoodiana - uma alfinetada divertidamente hipócrita, que a reconhece como forma de expressão e, por que não, de Arte sim.
O triste é que
figuras como Tabitha (a personagem de Duncan) não se restringem a existir
apenas na ficção, e diariamente disseminam tolos pré-conceitos que impedem uma
maior democratização da Arte - isolando ainda
mais obras que por apresentarem temas mais pesados, abordagens menos
convencionais e ou linguagens experimentais ou incomuns, já são naturalmente
segregadas pelo grande público. Um modus operandi que é injusto com qualquer
filme. Afinal quem diria, por exemplo, que depois de anos se provando um
péssimo diretor, Michael Bay iria entregar um longa tão divertido e
inteligentemente autocrítico como Sem
Dor, Sem Ganho? Então se estamos passíveis de sermos surpreendidos em qualquer área, mesmo quando as expectativas apontam para outro lado, é apenas justo que estejamos abertos a qualquer produção. E já que estamos falando de uma obra tão metalinguística,
que chega a incluir o baterista da trilha sonora mais de uma vez nos cenários diegéticos,
deixe-me usar Birdman como
estudo do próprio caso: quem conhece o trabalho de Alejandro G. Iñárritu de seus densos trabalhos anteriores, como 21 Gramas, Babel e Biutiful, sabe que esteticamente em nada lembram esse projeto aqui. De fato, estou inclinado a afirmar que este é, na
verdade, um filme de Emmanuel Lubezki, o diretor de fotografia da produção e um
dos melhores profissionais da sua área.
Todo o
longa-metragem sendo um longuíssimo plano sequência (sem cortes) – linguagem
apropriada que conversa com a natureza contínua e igualmente sem cortes do
teatro, que é, afinal, o lugar que abriga toda a ação aqui – é apenas natural
que tenha sido Lubezki o designado para a complicada tarefa de filmar Birdman, tendo em vista seus
impressionantes feitos anteriores com a mesma linguagem em sequência vista em Filhos da Esperança e Gravidade (pelo qual venceu o Oscar no
ano passado) – os dois sob a batuta do cineasta Alfonso Cuarón. Fora isso, é
óbvio como Lubezki incorpora também uma iluminação e enquadramentos que juntos
formam composições de quadro absorvidas diretamente de suas colaborações com
Terrence Malick. De fato, não há quase nada de Iñárritu no longa-metragem. O
próprio humor inerente à produção se distancia dos roteiros densos e
melodramáticos de seus filmes prévios – e tenha em vista que ele é um dos
autores do texto aqui. Um humor que é menos calcado em piadas preparadas e
estruturadas na trama desde o copião original, do que na interpretação que um
elenco afiadíssimo dá a ele.
A começar por
Michael Keaton, fazendo as vezes de si mesmo. O Birdman de Riggan é o Batman de
Keaton. Roteirista, diretor, produtor e estrela de sua peça, não é surpresa que
o protagonista, vindo da vida luxuosa em Hollywood, sinta-se como um ser
superior incompreendido, o que é ilustrado com sua suposta capacidade de telecinese
e, mais tarde, com superpoderes, que ele parece administrar timidamente como se
fosse dotado de um conhecimento revolucionário que as pessoas a sua volta ainda
não estariam prontas para receber. Cabisbaixo nesses instantes e neurótico nos
bastidores da sua produção, Keaton humaniza seu personagem através de uma
vulnerabilidade que se denuncia aqui e ali em momentos como aquele em que,
confrontado pela filha (Emma Stone, genial nesta cena também), fica sem
resposta e acaba cedendo a uma tragada da maconha pela qual estivera xingando
ela minutos antes por esconder dele. Comove também quando relembra emocionado
com a ex-esposa um incidente durante seu casamento que lhe trazem lágrimas aos
olhos logo antes de sua apoteótica entrada final no palco. De certa forma, Birdman seria a versão bem humorada de Cisne Negro.
E se lá no filme de
Darren Aronofsky, Natalie Portman tinha Mila Kunis como um ótimo contraponto de
cena, aqui Keaton encontra o seu em um Edward Norton que, chegando de mancinho
com a presença de seu Mike, primeiramente apenas um ator extrovertido, aos
poucos começa a se revelar uma figura impagável com seus modos metodistas de
atuação; “eu nunca finjo nada no palco” diz ele depois de ter uma ereção
incidental no meio de uma das cenas da apresentação, o tipo de coisa que deixa
Riggan cada vez mais furioso com o seu colega, e nesse ponto, é curioso que
seja nos diálogos que troca com Sam (Stone) – com quem o nosso protagonista
vive seu outro maior atrito - que ele encontre os únicos momentos em que o
flagramos lúcido... E sim, “eu arrancaria os seus olhos e os colocaria no meu
próprio crânio para poder ver as ruas como quando tinha a sua idade” é a parte
lúcida do personagem.
Enquanto isso Naomi
Watts, Zach Galifianakis e Andrea Riseborough divertem nas interações de
transição com o trio principal, servindo não só como cortinas dramáticas para
que a história possa andar, mas desenvolvendo os personagens com quem
contracenam, também fortificando a ideia afirmada por Sam de que há um mundo
afora esse da peça de seu pai, e que nele as pessoas estão vivendo, querendo
coisas e querendo ser alguém. Algo de que qualquer um de nós faz
irremediavelmente parte, eu escrevendo esta crítica, inclusive. Um discurso que
envolve a aceitação das novas formas de mídia, o que é irônico de se apontar
para Riggan uma vez que para se provar um profissional sério ele escolheu
deliberadamente uma “mídia” que precede o cinema, do qual ele fazia parte, não
deixando de ser um retrocesso, ou no mínimo, uma visão conservadora do que é “algo
sério”. Então é mais do que apropriado que o longa encerre com um plano de
Stone, admirada por estar presenciando enfim de forma literal o alçar de voo de
seu pai – e mesmo que o conteúdo da cena em si não seja mostrado, nós sabemos o
que é, e fascina que o cinema como forma de arte se permita ocasionalmente sair
de suas curtas rédeas e tomar esse tipo de liberdade dramática. É o Tiranossauro-rex
que salva o dia no fim de Jurassic Park, é a chuva de sapos em Magnólia, é a
aranha gigante escondida no quarto em O
Homem Duplicado. São acontecimentos literais na trama cujo simbolismo
implícito que possam ter importa menos do que o efeito que causam no espectador,
que ou rejeita o elemento por não ser coerente com o resto do projeto, ou o aceita
e, portanto, a arte em si como um meio de expressão livre. Uma liberdade que deveríamos
nos dar enquanto artistas e enquanto consumidores de suas obras para que, mais
importante do que não sermos esquecidos depois de vistos, jamais esqueçamos do que
vimos.
O que me faz
repensar e admitir: eu estava errado, há algo sim de Iñárritu em como o roteiro
instiga a esses questionamentos sociais/culturais/existencialistas...
Interessante, muito interessante.
P.S. justamente por
se tratar de um filme supostamente sem cortes, mas que é óbvio que envolveram
vários disfarçados aqui e ali, é que é uma vergonha que a Academia não tenha
reconhecido o filme com ao menos uma indicação a Melhor Montagem, que tamanha
a qualidade do trabalho dos montadores Douglas Crise e Stephen Mirrione deve
ter passado batido para os votantes.
Nota: 10/10
Desde que se recusou a estrelar o quarto filme com o personagem sua carreira começou a decair. Edward Norton foi excelente no filme, este ator nos deixa outro projeto de qualidade, de todas as suas filmografias essa é Beleza Oculta que eu mais gostei, acho que deve ser a grande variedade de talentos. A chave do sucesso é o bem que esta contada a historia e a trilha sonora, enfim, um dos meus preferidos.
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