Então o filme não é ruim... me
processem, xinguem muito nos comentários, não leiam os meus argumentos, batam o
pé, tampem os ouvidos, bufem e saiam dizendo: “aquele cara entende é nada de
cinema... e nem de sexo”. Talvez seja verdade, vá saber – você quer? A verdade
é que eu não sei o quão bom ou o quão ruim pode ser o livro escrito por E.L.
James a partir de uma fan fic de Crepúsculo (minha situação tá piorando,
eu tenho consciência disso), porque não o li, e não preciso (!) – livro é livro e filme é filme, ambos têm de
funcionar independentemente, um dia ainda tatuo isso pra não ter mais que repetir.
Porém, como longa-metragem, Cinquenta
Tons de Cinza é... sim, bom, e de dentro de seu próprio contexto, maduro –
pronto, lá se vai a minha reputação rodopiando com a água da descarga. Se
estiver realmente interessado(a) em saber se enlouqueci ou se por um acaso quiser
mesmo entender porque achei isso, (suspiro) segue o que é provavelmente o
último dos meus textos a ter algum acesso.
Mas calma, eu não estou retardado:
Ana (Dakota Johnson), a nossa protagonista, é, enfim, a Bella outra vez. Ela é
virgem, ela é desastrada, com pouquíssimo ou nenhum amor próprio, se veste “mal”,
o pacote todo. Misteriosamente, Christian (Jamie Dornan), um popular, charmoso
e misterioso homem rico se interessa por ela, e o fato de ele não ser um
vampiro que brilha no sol é uma casualidade. Em menos de quinze minutos a moça
consegue tropeçar, vomitar e desmaiar na presença do milionário, que sorte a dela
tê-lo ao lado para ajudar, mesmo que seja socando um amigo seu e depois levando-a
inconsciente para o seu quarto de hotel onde troca as suas roupas e dorme ao
seu lado sem qualquer consentimento, tudo de forma muito... romântica (?!).
Enfim, compreensível, afinal, como Christian mesmo diz: “você arriscou muito
ontem à noite”... não é o que toda garota quer ouvir de seu príncipe encantado?
Que ele se preocupe por você ter ficado bêbada junto com um grupo de amigos em
uma festa, enquanto operava perigosa e fatalmente um... celular... me dá até um
frio na barriga.
Mais até do que dera na primeira
vez em que ele a chama para tomarem um café, quando então percebendo que talvez
ela não seja o tipo de garota que curte os seus fetiches sexuais – caso você
não saiba, Christian é um dominador em relações de sadomasoquismo – ele abandona o lugar dizendo: “eu não sou o homem pra você”, ao que ela se entrega
febrilmente a um carinho seu de despedida, quando deveria estar furiosa ou
ironicamente dizendo: “ei, cara, vai com calma, era só um café”. Melhor ainda é
quando ele recebe a notícia de que ela é virgem e a pega pelo braço, levando-a
pra cama sob a colocação: “vamos resolver este problema” (este p-r-o-b-l-e-m-a
), isso sem deixar passar que ele havia acrescentando antes um fofo: “eu não
faço amor, eu fodo, com força”. De fato, fosse este primeiro ato que procura
com tanto afinco emular um soft porn
de baixo custo, e não seria difícil acreditar que, assim como Crepúsculo, o livro de James foi concebido pela mente pervertida e excitada de uma garota de quinze anos e seus
hormônios como revisores de ortografia. Talvez até tenha sido, repito, não o
li, mas aqui, esses problemas começam a desvanecer conforme o roteiro esquece as
primeiras interações do futuro casal e passa a abordar a sua convivência e os
óbvios obstáculos morais entre eles.
A trama avança e um contrato é
redigido, tudo muito formal no mundo do Sr. Grey, compreensível até isso como
parte de todo o fetiche. E Ana, ela parece gostar da brincadeira toda, ainda
que sem jeito e surpresa com toda a formalidade em que será baseada a sua nova
relação. Johnson, aliás, faz um bom trabalho com as pequenas risadas que deixa
escapar e que, pro bem ou pro mal, impedem que nós mesmos acabemos rindo com o
absurdo de certas situações e diálogos. Porém, é inegável que com o tempo
Christian passe a demonstrar ser de fato não só o controlador que afirmara
antes, ficando bravo com a namorada quando ela não o avisa de que em breve
visitará a família, e aparecendo durante essa de forma intrusiva, por exemplo, como também, cada vez mais abusivo. E embora seus tapas na bunda de Ana, depois
dessa ter revirado os olhos, sejam claramente uma interação em que os dois se divertem, assusta que ele comece a transparecer gostar mais do fato de
estar agredindo-a do que daquele que diz respeito ao prazer que ela tem de pertencer
a ele. “Eu espero que aceite o contrato” não é exatamente um “eu te amo” ou no
mínimo um “gosto muito de você”, não é Sr. Grey?
Ana, por outro lado, também permite
que esta postura assuma os traços opressivos que inegavelmente assume mais
tarde, e se opõe com pouca veemência contra o seu dominador. E quando percebe
que quem tem um p-r-o-b-l-e-m-a na verdade é Christian, que assume abertamente
que sente prazer em causar dor em suas submissas, ela já está apaixonada por
ele. Tão Bella, isso, e o fato de ela não se jogar de um penhasco pra dentro do
mar por um motivo qualquer, também é uma mera casualidade.
Agora, o que separa Crepúsculo de Cinquenta Tons de Cinza? A abordagem. Bella é a protagonista e está
certa quando assume uma postura autodestrutiva em favor de um homem que a tem
como um objeto que possui, e é isso que os filmes lá dos vampiros nos vendem.
Ana é a protagonista aqui e está apaixonada por um homem que a tem como objeto
e por quem assume uma postura autodestrutiva, estando errada em alguns pontos,
iludida em outros e completamente certa em mais alguns dentro deste assunto. O
longa-metragem dirigido por Sam Taylor-Johnson (veja só, uma mulher!) não
defende Ana ou Christian, não se abstém e deixa lá os elementos para que o
espectador faça o julgamento por si mesmo. Não, o filme mostra o que têm de
mostrar e assume um posicionamento: aquilo passa de um elaborado fetiche
sexual, aquilo é algo mais sério, mais deturpado, mais moralmente corrompido. O
final, original do livro ou não, propositalmente ou não, estabelece com o “não”
gritado por Ana: ela se apaixonou por um homem que não tinha percebido ser na
verdade um ruim, e por mais que apreciasse a relação dominador e submissa, ela
é uma pessoa que não vai se deixar continuar, como uma Bella da vida, a se
anular em detrimento das fantasias de um homem misógino.
Não posso julgar um filme pela
moralidade de seus personagens. Posso discordar das ideias deles, condenar as
suas ações e contestar o seu caráter, mas o quanto isso afeta um filme enquanto
obra depende diretamente da abordagem. Essa que o longa aqui nos traz como
desfecho satisfaz por reconhecer o problema sério de que está tratando e por
tabela ainda fazer do arco percorrido pelos personagens um mais interessante
quando pensamos no Christian e Ana que conhecemos ao final. Então me condenem...
Se o dominador usa em certo
momento o problema da fome na África para mandar uma indireta para sua namorada
(“eu sei o que é estar faminto”), se a trilha de Danny Elfman insiste em ser delicada
enquanto Christian fala pela primeira vez em castigar Ana caso itens do contrato
sejam desobedecidos, e se tecnicamente o que mais chama a atenção no projeto é
uma câmera lenta falsa usada de maneira absurdamente péssima e batida – todo o tratamento
que Tayolor-Johnson dá ao sexo em geral no filme é convencional e, com certeza,
as cenas mais explícitas são as que menos cativam – isso tudo deixa de ser
demérito para tornar-se parte da construção (seja ela intencional ou não) de uma dinâmica que chega ao seu ápice com o cair do martelo no fim do
longa-metragem. Talvez venha a continuação e destrua tudo de que gostei no
projeto, que aqui mesmo tenta várias vezes se sabotar, e ao fim, sinceramente,
devido ao modo extremamente comum com que vinha sendo dirigido o filme, eu
esperava que houvesse mesmo um epílogo que resolveria tudo, mas lembro de ter
pensado: “se o filme terminasse ai, iria gostar bastante dele”, dito e feito.
Enquanto é apenas este filme a ser avaliado, vão em frente, me processem, xinguem
muito nos comentários, ignorem meus argumentos, batam o pé, tampem os ouvidos,
bufem e saiam dizendo: “este cara entende é nada de cinema... e nem de sexo”, algo
do que talvez eu não entenda realmente, porque não me incomodou, por exemplo, que
as atividades sexuais do casal não tenham explicitado tanta violência assim.
Aliás, o cinema mesmo já mostrou transas comuns muito mais brutais que as
vistas no quarto vermelho do Sr. Grey - embora fidedignidade às práticas de BDSM se
releve, é um blockbuster, afinal, e tem de ser bem aceito e agradar o maior
número de pessoas, dá pra entender a mensagem e isso é o que vale.
Mas se ao fim, então, uma história escrita por uma fã de Crepúsculo
na tentativa de criar o seu próprio Edward Cullen consegue, mesmo que
entre tropeços e escorregões, entregar a sua mensagem e levar ao debate maduro – ainda que todo
embrulhado em papel cor-de-rosa - como posso eu condenar um produto, mesmo com todos os
seus problemas, que de um terreno tão infértil, produziu algo que no mínimo instiga a falar com seriedade de um tema sério? Não, não o BDSM (pfff), mas o abuso social e sistemático que a mulher ainda sofre atualmente. É muito fácil odiar Cinquenta Tons de Cinza e ignorar que trata-se, além de apenas um grande estorvo nas salas de cinema, também de uma pequena evolução para as criaturinhas que ontem babavam nos abdominais do Jacob... E é claro que eu compreendo que o público alvo do filme - as menininhas excitadas de quinze anos - não vão enxergar mais do que a base do pênis do Sr. Grey (quase da pra ver todo!), e para essas pessoas o projeto então converte-se em uma peça nociva de propaganda misógina que provável e infelizmente será absorvida.
NOTA 5/10
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