sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

CINQUENTA TONS DE CINZA



Então o filme não é ruim... me processem, xinguem muito nos comentários, não leiam os meus argumentos, batam o pé, tampem os ouvidos, bufem e saiam dizendo: “aquele cara entende é nada de cinema... e nem de sexo”. Talvez seja verdade, vá saber – você quer? A verdade é que eu não sei o quão bom ou o quão ruim pode ser o livro escrito por E.L. James a partir de uma fan fic de Crepúsculo (minha situação tá piorando, eu tenho consciência disso), porque não o li, e não preciso (!) – livro é livro e filme é filme, ambos têm de funcionar independentemente, um dia ainda tatuo isso pra não ter mais que repetir. Porém, como longa-metragem, Cinquenta Tons de Cinza é... sim, bom, e de dentro de seu próprio contexto, maduro – pronto, lá se vai a minha reputação rodopiando com a água da descarga. Se estiver realmente interessado(a) em saber se enlouqueci ou se por um acaso quiser mesmo entender porque achei isso, (suspiro) segue o que é provavelmente o último dos meus textos a ter algum acesso.

Mas calma, eu não estou retardado: Ana (Dakota Johnson), a nossa protagonista, é, enfim, a Bella outra vez. Ela é virgem, ela é desastrada, com pouquíssimo ou nenhum amor próprio, se veste “mal”, o pacote todo. Misteriosamente, Christian (Jamie Dornan), um popular, charmoso e misterioso homem rico se interessa por ela, e o fato de ele não ser um vampiro que brilha no sol é uma casualidade. Em menos de quinze minutos a moça consegue tropeçar, vomitar e desmaiar na presença do milionário, que sorte a dela tê-lo ao lado para ajudar, mesmo que seja socando um amigo seu e depois levando-a inconsciente para o seu quarto de hotel onde troca as suas roupas e dorme ao seu lado sem qualquer consentimento, tudo de forma muito... romântica (?!). Enfim, compreensível, afinal, como Christian mesmo diz: “você arriscou muito ontem à noite”... não é o que toda garota quer ouvir de seu príncipe encantado? Que ele se preocupe por você ter ficado bêbada junto com um grupo de amigos em uma festa, enquanto operava perigosa e fatalmente um... celular... me dá até um frio na barriga.



Mais até do que dera na primeira vez em que ele a chama para tomarem um café, quando então percebendo que talvez ela não seja o tipo de garota que curte os seus fetiches sexuais – caso você não saiba, Christian é um dominador em relações de sadomasoquismo – ele abandona o lugar dizendo: “eu não sou o homem pra você”, ao que ela se entrega febrilmente a um carinho seu de despedida, quando deveria estar furiosa ou ironicamente dizendo: “ei, cara, vai com calma, era só um café”. Melhor ainda é quando ele recebe a notícia de que ela é virgem e a pega pelo braço, levando-a pra cama sob a colocação: “vamos resolver este problema” (este p-r-o-b-l-e-m-a ), isso sem deixar passar que ele havia acrescentando antes um fofo: “eu não faço amor, eu fodo, com força”. De fato, fosse este primeiro ato que procura com tanto afinco emular um soft porn de baixo custo, e não seria difícil acreditar que, assim como Crepúsculo, o livro de James foi concebido pela mente pervertida e excitada de uma garota de quinze anos e seus hormônios como revisores de ortografia. Talvez até tenha sido, repito, não o li, mas aqui, esses problemas começam a desvanecer conforme o roteiro esquece as primeiras interações do futuro casal e passa a abordar a sua convivência e os óbvios obstáculos morais entre eles.

A trama avança e um contrato é redigido, tudo muito formal no mundo do Sr. Grey, compreensível até isso como parte de todo o fetiche. E Ana, ela parece gostar da brincadeira toda, ainda que sem jeito e surpresa com toda a formalidade em que será baseada a sua nova relação. Johnson, aliás, faz um bom trabalho com as pequenas risadas que deixa escapar e que, pro bem ou pro mal, impedem que nós mesmos acabemos rindo com o absurdo de certas situações e diálogos. Porém, é inegável que com o tempo Christian passe a demonstrar ser de fato não só o controlador que afirmara antes, ficando bravo com a namorada quando ela não o avisa de que em breve visitará a família, e aparecendo durante essa de forma intrusiva, por exemplo, como também, cada vez mais abusivo. E embora seus tapas na bunda de Ana, depois dessa ter revirado os olhos, sejam claramente uma interação em que os dois se divertem, assusta que ele comece a transparecer gostar mais do fato de estar agredindo-a do que daquele que diz respeito ao prazer que ela tem de pertencer a ele. “Eu espero que aceite o contrato” não é exatamente um “eu te amo” ou no mínimo um “gosto muito de você”, não é Sr. Grey?



Ana, por outro lado, também permite que esta postura assuma os traços opressivos que inegavelmente assume mais tarde, e se opõe com pouca veemência contra o seu dominador. E quando percebe que quem tem um p-r-o-b-l-e-m-a na verdade é Christian, que assume abertamente que sente prazer em causar dor em suas submissas, ela já está apaixonada por ele. Tão Bella, isso, e o fato de ela não se jogar de um penhasco pra dentro do mar por um motivo qualquer, também é uma mera casualidade.

Agora, o que separa Crepúsculo de Cinquenta Tons de Cinza? A abordagem. Bella é a protagonista e está certa quando assume uma postura autodestrutiva em favor de um homem que a tem como um objeto que possui, e é isso que os filmes lá dos vampiros nos vendem. Ana é a protagonista aqui e está apaixonada por um homem que a tem como objeto e por quem assume uma postura autodestrutiva, estando errada em alguns pontos, iludida em outros e completamente certa em mais alguns dentro deste assunto. O longa-metragem dirigido por Sam Taylor-Johnson (veja só, uma mulher!) não defende Ana ou Christian, não se abstém e deixa lá os elementos para que o espectador faça o julgamento por si mesmo. Não, o filme mostra o que têm de mostrar e assume um posicionamento: aquilo passa de um elaborado fetiche sexual, aquilo é algo mais sério, mais deturpado, mais moralmente corrompido. O final, original do livro ou não, propositalmente ou não, estabelece com o “não” gritado por Ana: ela se apaixonou por um homem que não tinha percebido ser na verdade um ruim, e por mais que apreciasse a relação dominador e submissa, ela é uma pessoa que não vai se deixar continuar, como uma Bella da vida, a se anular em detrimento das fantasias de um homem misógino.

Não posso julgar um filme pela moralidade de seus personagens. Posso discordar das ideias deles, condenar as suas ações e contestar o seu caráter, mas o quanto isso afeta um filme enquanto obra depende diretamente da abordagem. Essa que o longa aqui nos traz como desfecho satisfaz por reconhecer o problema sério de que está tratando e por tabela ainda fazer do arco percorrido pelos personagens um mais interessante quando pensamos no Christian e Ana que conhecemos ao final. Então me condenem...



Se o dominador usa em certo momento o problema da fome na África para mandar uma indireta para sua namorada (“eu sei o que é estar faminto”), se a trilha de Danny Elfman insiste em ser delicada enquanto Christian fala pela primeira vez em castigar Ana caso itens do contrato sejam desobedecidos, e se tecnicamente o que mais chama a atenção no projeto é uma câmera lenta falsa usada de maneira absurdamente péssima e batida – todo o tratamento que Tayolor-Johnson dá ao sexo em geral no filme é convencional e, com certeza, as cenas mais explícitas são as que menos cativam – isso tudo deixa de ser demérito para tornar-se parte da construção (seja ela intencional ou  não) de uma dinâmica que chega ao seu ápice com o cair do martelo no fim do longa-metragem. Talvez venha a continuação e destrua tudo de que gostei no projeto, que aqui mesmo tenta várias vezes se sabotar, e ao fim, sinceramente, devido ao modo extremamente comum com que vinha sendo dirigido o filme, eu esperava que houvesse mesmo um epílogo que resolveria tudo, mas lembro de ter pensado: “se o filme terminasse ai, iria gostar bastante dele”, dito e feito. Enquanto é apenas este filme a ser avaliado, vão em frente, me processem, xinguem muito nos comentários, ignorem meus argumentos, batam o pé, tampem os ouvidos, bufem e saiam dizendo: “este cara entende é nada de cinema... e nem de sexo”, algo do que talvez eu não entenda realmente, porque não me incomodou, por exemplo, que as atividades sexuais do casal não tenham explicitado tanta violência assim. Aliás, o cinema mesmo já mostrou transas comuns muito mais brutais que as vistas no quarto vermelho do Sr. Grey - embora fidedignidade às práticas de BDSM se releve, é um blockbuster, afinal, e tem de ser bem aceito e agradar o maior número de pessoas, dá pra entender a mensagem e isso é o que vale.

Mas se ao fim, então, uma história escrita por uma fã de Crepúsculo na tentativa de criar o seu próprio Edward Cullen consegue, mesmo que entre tropeços e escorregões, entregar a sua mensagem e levar ao debate maduro – ainda que todo embrulhado em papel cor-de-rosa - como posso eu condenar um produto, mesmo com todos os seus problemas, que de um terreno tão infértil, produziu algo que no mínimo  instiga a falar com seriedade de um tema sério? Não, não o BDSM (pfff), mas o abuso social e sistemático que a mulher ainda sofre atualmente. É muito fácil odiar Cinquenta Tons de Cinza e ignorar que trata-se, além de apenas um grande estorvo nas salas de cinema, também de uma pequena evolução para as criaturinhas que ontem babavam nos abdominais do Jacob... E é claro que eu compreendo que o público alvo do filme - as menininhas excitadas de quinze anos - não vão enxergar mais do que a base do pênis do Sr. Grey (quase da pra ver todo!), e para essas pessoas o projeto então converte-se em uma peça nociva de propaganda misógina que provável e infelizmente será absorvida.


NOTA 5/10 


Nenhum comentário:

Postar um comentário