Steven Spielberg
está voltando. Agora, o que isso significa?
Spielberg sempre foi
um cineasta extremamente emocional. Não por acaso acabou sendo mitificado -
porque nem "eternizado" sintetiza suficientemente bem o peso que o
seu nome passou a carregar com os anos - justamente por conseguir criar sentimentos,
personagens e momentos tão intensos e marcantes que, a cada filme que fazia,
parecia nascer um novo clássico – e de fato, alguns nasceram. Seu grande apelo
sentimental, fosse para evocar a tensão, a empolgação, a tristeza, a comoção ou
o riso, sempre lhe foi intrínseco, e prova disso é o insucesso narrativo de A.I.: Inteligência Artificial, que se por um lado funcionava na racionalidade de
Stanley Kubrick (que concebeu o projeto logo antes de falecer), cedia a
tentação do diretor de E.T. - O
Extra Terrestre e A Lista de Schindler ao não conseguir evitar um adendo final de cunho
afetivo, que praticamente arruinou todo aquele projeto. A verdade é que
Spielberg é incapaz de ser pragmático ou racional como cineasta, o que não é
algo ruim, o problema é que o realizador pouco a pouco deixou que suas tendências
emotivas, antes poderosas propulsoras de obras memoráveis, tornarem-se
descontroladas, abusivas e intrusivas, e o diretor que antes era referência em
como fazer cinema, passou a ser o cara que dirigiu o enfadonho Cavalo de Guerra e o mediano Lincoln, sem controle algum do
tom ou do andamento de seus filmes.
O mesmo Spielberg que afirmou ter
estado deprimido durante a produção de O
Mundo Perdido: Jurassic Park, porque o projeto não lhe apresentava
desafios, poderia explicar essa sua recente baixa. E chamo de baixa sim, não
ligo nem um pouco para quantos Oscars (ou indicações a ele) seus dois últimos
live action tenham recebido – que se fosse pra cotar qualidade em prêmio, eu
teria que dizer que Tom Hooper (premiado por O Discurso do Rei) é um bom diretor, o que é uma terrível mentira.
O fato é que um cineasta responsável por tantos marcos do cinema moderno, já
não encontrava mais obstáculos e, portanto, motivações para conceber as grandes
obras a que estava acostumado a dirigir. Nota-se isso claramente ao percebermos
que, de suas últimas produções, As
Aventuras de Tintim, uma animação na qual ele teve de lidar com a
tecnologia do motion capture - ou seja, duas linguagens com as quais ele nunca
tivera contato antes - é de longe a mais eficiente em anos, ao menos desde Munique, que já data de longos dez anos
atrás, 2005! Por isso, enquanto absorvia Ponte
dos Espiões, pensei ser apenas lógico que estivesse gostando do mais novo
filme do diretor, já que ele é, de certa forma, desafiador - não de uma maneira
geral, mas especificamente para Steven. Afinal, trata-se não só de uma obra de
peso político, mas política em si, onde heróis e vilões se confundem, e nem
mesmo há espaço para as habituais trilhas de John Williams.
Digo, Spielberg já usou o “político”
antes, e muito dele foi visto em Schindler,
por exemplo. Já expôs os bastidores de um atentado terrível, e de cunho
político outra vez, para magnetizar o espectador com a tensão provocada por Munique. Até mesmo em Lincoln, tudo o que se via era política
sendo discutida por toda a duração daquele longa-metragem. Mas Ponte é uma realização diferente, existe
uma “visão”, um posicionamento por parte do diretor que, admito, como um de
seus fãs confesso, me peguei surpreendido de constatar em uma obra de sua
autoria. A trama acompanha James Donovan (Tom Hanks), que é chamado para ser o
advogado de um espião russo capturado em solo americano, no auge da Guerra
Fria. A coisa toda, porém, não passa de um teatro para que publicamente, os
Estados Unidos parecessem estar dando um tratamento justo ao prisioneiro,
enquanto, na verdade, o próprio juiz responsável pelo caso pouco esconde que já
considera o réu culpado antes mesmo de qualquer julgamento. É quando acontece,
então, de um estudante e um militar americanos serem capturados para o lado de
lá do Muro de Berlim, fazendo com que a CIA envie Donovan, sob o pretexto de
ele ser um civil, para a zona de tensão para negociar por baixo dos panos a
troca de cativos entre as duas superpotências.
A começar pelos americanos, o longa curiosamente enfoca-os como seres mesquinhos e dissimulados, além de
conservadores, já que vemos tanto os agentes do governo e da justiça como frios
burocratas de opiniões severas sobre o espião, como também constatamos o povo
estadunidense se transfigurar em uma massa raivosa que se volta contra o
protagonista e sua “ousadia” por defender um traidor. Algo de que James tenta
dissuadir todos com quem se encontra. Afinal, se o chamado Coronel Abel (Mark
Rylance) nada lhes revelou até então, é porque é um patriota leal, só não ao
país que as pessoas ali gostariam que ele fosse. Uma ideia que é fácil de se
comprar quando Rylance faz um trabalho tão admirável construindo Abel como um homem
carismático e gentil – e a própria decisão do longa-metragem em retratar um
espião soviético como um personagem a ser defendido pelo espectador, já seria
sozinha, uma ideia ousada para qualquer cineasta.
Porém, Steven vai um pouco além
quando em uma segunda metade, a trama se concentra em território alemão, e ele
tem a chance de problematizar as relações baseadas em interesses que ali se
estruturam. Impregnada por uma fotografia cinzenta (concebida como de costume
por Janusz Kaminski), a Berlim murada é repleta de agentes da CIA, da URSS e do
próprio governo alemão que defendem cada um, os interesses diretos daqueles que
representam, e noções de bondade ou maldade tornam-se obsoletas e relegadas
então ao único personagem em que parece recair o “Spielberismo”: o próprio
Donovan. Primeiramente receoso de pegar o caso de Abel, ao ponto em que o
encontramos na Alemanha James já é um homem convicto em fazer aquilo que é
humanamente certo, empreendendo arriscados esforços para garantir não só a
soltura dos prisioneiros americanos, como também o tratamento adequado ao espião.
E se isso poderia destoar da ambiguidade que permeia todo o resto da produção,
com o desenrolar do roteiro – retocado por ninguém menos do que os irmãos Joel
e Ethan Coen, o que explica algumas piadas – torna-se essencial que o
personagem de Hanks torne-se uma âncora de humanidade em meio a um universo tão
incerto, onde ninguém parece se importar com a pessoa ao lado e sim com sistemas
cegos e cruéis que pouco parecessem sentir a adição ou a remoção de um de seus
componentes.
Encarnando o advogado como um homem
que assim como se esconde encolhido atrás de um carro quando é seguido por um
estranho, também se posiciona com firmeza em frente a influentes burocratas do
outro lado da Cortina de Ferro, Tom Hanks volta a demonstrar que é um dos mais
versáteis atores de Hollywood, ainda que esteja começando a denunciar uma
persona, que combina heroísmo, pragmatismo e ousadia em medidas iguais,
lembrando então o seu Capitão Phillips ou Robert Langdon. E novamente, isso
também não é necessariamente ruim. Ao contrário do que é, em contrapartida, a
tendência de Spielberg em se alongar mais do que o devido aqui e ali. Mas essas
cenas cortáveis, alongadas e normalmente melosas têm acontecido vezes
consecutivas demais, e começo a achar que o cineasta já não cuida tão bem da
finalização de suas produções, depositando confiança demais no seu fiel
montador, Michael Kahn. Que se é um profissional criativo no ponto em que cria
transições quase sempre interessantes entre um momento e outro, por outro lado
é indulgente com toda uma sequência que envolve a esposa de James (Amy Ryan)
apreciando-o enquanto esse se atira exausto na cama, algo que poderia ter sido
facilmente limado em uma revisão final.
Ainda resquícios desse Spielberg
letárgico dos últimos anos, que felizmente, parecem estar se esvaindo, dando
lugar ao retorno de um dos melhores e mais importantes realizadores que o
cinema já viu. E não, os apelos emocionais do diretor não são algo que
incomodam, afinal, reclamar que Spielberg está sendo piegas é atestar que
nunca viu ou entendeu qualquer outro filme dele. Porém, ver esses esforços flutuarem em tela
sem ter a que servir, estava sendo um processo muito dolorido, então é
realmente prazeroso constatar que o diretor que é referência quando se fala em “direção
de cinema”, ainda está ali. Esperemos que Spielberg traga novos projetos ainda
melhores do que esse, deixando para trás o que não estava funcionado. O que
inclui sua frustrada e insípida parceria aqui com Thomas Newman, que tenta
emular John Williams sem sucesso, já que pela primeira vez em 30 anos, o
veterano compositor não é o responsável pela trilha sonora de um filme de
Steven – o último longa-metragem em que não foram parceiros foi A Cor Púrpura, de 1985.
NOTA: 8/10
Nenhum comentário:
Postar um comentário