Em certo momento de A Colina
Escarlate, a jovem protagonista leva seu
romance recém escrito para ser avaliado por um editor, recebendo como resposta um cético comentário sobre uma mulher estar escrevendo histórias de fantasmas. Incomodada, ela responde: “não é
uma história de fantasmas, é uma história com fantasmas”. Ou seja, o cineasta Guillermo del Toro está dizendo que seu novo filme não veio para dar sustos, esperar isso é projetar uma expectativa
injusta sobre o longa-metragem e também desentender completamente sobre o
que ele se trata. Experiente em criar contos de horror e fantasia, del Toro sempre mostrou-se hábil construindo a atmosfera dessas narrativas, — não para culminar apenas nos sustos, mas sempre em catarses. Basta lembrar de sua filmografia, especialmente de títulos como O Labirinto do Fauno e A Espinha
do Diabo.
O longa já começa impactante: numa nevasca, a nossa heroína surge acariciando o vento
com a mão ensanguentada. O realizador, porém, só vai nos permitir conhecer o
contraplano deste take nos minutos finais da projeção, criando assim também
uma rima elegante que já denuncia suas intenções de, antes de tudo, contar uma trajetória focada nos personagens, e não apenas em sustos gratuitos. É assim que
somos apresentados à Edith (Mia Wasikowska), imaginativa escritora que refuta a ideia de se tornar a próxima Jane Austen. Ela gosta é das histórias sombrias, o que mais tarde vai justificar sua pró-atividade nos eventos da trama. Entretanto, a princípio surpreende que ela acaba se envolvendo justamente num romance mais aos modos de Orgulho e Preconceito. Ao conhecer o educado e culto Thomas Sharpe
(Tom Hiddleston), ela resolve casar-se sem perder tempo, mudando para a
Inglaterra com marido. Lá, o casal recém-formado vai morar com a introspectiva irmã de Thomas, Lucille
(Jessica Chastain). Onde? Na aterradora Crimson Peak, a mansão herdada pelos irmãos e apelidada assim pelos vizinhos porque foi construída sobre um solo fértil em
argila vermelha, que em certos períodos do ano emerge da terra deixando todo
o terreno com uma terrível cor de sangue.
E se há um grande trunfo inegável no projeto, é
esta estranha e elegante besta concebida pelo belíssimo design de produção.
Imaginada como um ser vivo, a mansão exibe preciosismo de detalhes
apavorante, refletindo o cuidado que essa área sempre
recebeu de del Toro em todos os seus projetos. Com papeis de parede que remetem
a molduras vazias, marcos de madeira repletos de ameaçadores espigões e corredores
de padrões repetitivos que soam eles mesmos como alusões aos ecos de um passado
sombrio, a Crimson Peak é um cenário perfeitamente amedrontador, o que torna ainda mais acertada a
decisão de não usar os fantasmas como única fonte de ameaça. E é curioso
perceber como a argila sangrenta parece cada vez mais presente nos cenários
conforme os verdadeiros algozes revelam suas intenções, não só emergindo do solo, mas também escorrendo pelas paredes e pingando do teto, até o ponto de praticamente banhar
todo o clímax.
Encabeçado com delicadeza e força por
Mia Wasikowska, que é vestida com cores alegres e texturas estriadas repletas
de babadinhos que remetem a sua personalidade bondosa, o elenco ainda traz Tom
Hiddleston e Jessica Chastain numa dinâmica instigante por si só — e quanto mais
descobrimos sobre os dois, mais fascinantes e complexos os personagens se
tornam. Primeiro unificados pelas roupas, sempre de cores escuras e em tecidos
pesados, aos poucos o departamento de figurino trata de diferenciá-los. Personagens que poderiam ser tratados como clichês, na verdade escondem uma natureza dissimulada e
doentia. E nesse ponto é
preciso aplaudir Tom Hiddleston, que consegue tirar carisma de um personagem que
qualquer outro ator não hesitaria em transformar numa grotesca caricatura.
Dono de uma carga dramática invejável, o intérprete carrega no olhar e na dicção uma vulnerabilidade que facilmente fragiliza o seu Thomas Sharpe, conseguindo inspirar tanto o medo e a repulsa, quanto o carinho e a torcida do público — e essa é a parte impressionante de seu trabalho.
Já Jessica Chastain, uma das atrizes recentemente
surgidas de que mais gosto, esconde sob seus modos apáticos uma obsessão
contida — trabalhando a tristeza e a frieza da
personagem, que certamente reprimiu seus sentimentos por anos, e deixando-os explodir eventualmente na forma de raiva e fúria. O que serve de comentário sobre a opressão sexista imposta a ela sobre o controle dos bens da família. E se o trio
principal brilha, é uma pena que sobre tão pouco espaço para antigos
colaboradores de del Toro, e particularmente senti falta
de maior presença de Charlie Hunnam, que surge para fazer pouco — ainda que seu momento de brilho simbolize a impotência do mais educado dos homens contra o
monstro criados por eles mesmos quando tentaram ditar um lugar ao qual as mulheres deveriam se
reservar. Sobrando então para Burn Gorman e Jim Beaver criarem interessantes
figuras que, com pouquíssimo tempo de tela, se fazem indispensáveis; um como o investigador Holly, e o outro como o pai de Edith, Carter Cushing – uma referência carinhosa a Peter Cushing, famoso por seus filmes de horror.
Logo, A Colina Escarlate se apresenta como outro projeto
de Guillermo del Toro que usa o horror como comentário de sua época. Se em O
Labirinto do Fauno tínhamos a perseguição aos rebeldes da Guerra Civil na
Espanha, evento que por sua vez era o plano de fundo de A Espinha do Diabo, aqui o
cineasta prefere tratar de um tema mais atual e discutir a força da mulher, forjadas heroínas ou vilãos por ambientes hostis cheios de homens
com boas e más intenções. E se não por isso, ao menos o longa serve como um conto de horror e fantasia que PRECISA ser reconhecido nas principais premiações por seus
quesitos visuais.
NOTA: 8/10
Nenhum comentário:
Postar um comentário