sexta-feira, 15 de abril de 2016

AVE, CÉSAR!


Os irmãos Joel e Ethan Coen costumam apostar em uma galeria de personagens peculiares que, juntos, compõe um universo atípico. E se isso era a razão do sucesso de Um Homem Sério, por exemplo, foi também a triste ruína de E aí, Meu Irmão, Cadê Você?, que deixava soltas e perdia todas as suas boas ideias ao jamais dar-lhes uma coesão. Já Ave, César! se aproxima perigosamente do caso desse último, adotando uma estrutura similar através de um apanhado de contos de tom episódico. Porém, seguindo também mais a linha do primeiro e apontando um protagonista bem definido, o longa-metragem ganha um fio condutor mais sólido e sente-se livre para navegar, explorar e devanear nos micro-universos que, juntos, compõe, mais uma vez, um ecossistema singular concebido pelos Coen, aqui na forma de um gigantesco estúdio da era clássica de Hollywood.


Gerenciado por Eddie Mannix (Josh Brolin), o Capitol Studios (que já tinha surgido em outro filme dos Coen, Barton Fink - Delírios de Hollywood) é um lugar gigantesco, como uma das primeiras tomadas já se encarrega de estabelecer, recheado de enormes galpões dentro dos quais acontecem as filmagens de inúmeras e diferenciadas histórias. Acostumado a lidar com as manias, egos, escapadelas e exigências dos artistas que habitam aquele mundo, Eddie anda de um set para o outro manejando os problemas constantes do lugar. Até que, certo dia, o astro principal da mais cara produção sendo filmada ali, Ave César!, é sequestrado. Somando assim às habituais atribuições de Mannix, a tarefa de conseguir o dinheiro do resgate e cumprir as exigências dos sequestradores.

Soturno e austero, o personagem de Brolin mantém uma expressão sempre séria e inexpressiva que, no mais, revela um cenho constantemente fechado, indicando suas infindáveis preocupações. O que também denuncia a sua função de curinga, e quando lidando com a estrela DeeAnna Moran (Scarlett Johansson), se mostra gentil, já com uma dupla de colunistas (ambas interpretadas de forma hilária por Tilda Siwnton), age de maneira articulada, e por fim, com um astro em crise de ideais, não se abstém de intervir com brutalidade. Sua dureza, portanto, acaba servindo de termômetro para o espectador, que através das reações de Mannix consegue entender quais coisas são normais na sua rotina (como um pio alto que surge ao fundo toda a vez que citam um tal famigerado filme Nas Asas da Águia), e quais são realmente eventos estranhos.

Assim, talvez pareça desperdício usar tantos atores renomados em participações que, por vezes, não duram mais do que uma cena. Entretanto, Ave, César! acaba se beneficiando desse desfile de rostos famosos, uma vez que eles ajudam a construir um tom de familiaridade que Eddie deve experimentar todos os dias. Além do mais, Joel e Ethan se aproveitam das personas de alguns desses intérpretes. Ralph Fiennes, por exemplo, famoso por suas figuras rígidas, surge como um famoso diretor tentando conduzir o jovem astro de filmes western, Hobie Doyle (Alden Ehrenreich), em um romance de época. E conforme o ator se sai cada vez pior no papel, a tensão da cena cresce e torna os deslizes de Doyle mais divertidos de acompanhar, pois esperamos uma típica reação severa do personagem de Fiennes. Já Frances McDormand, veterana na filmografia do marido (Joel), vive em uma ponta glorificada a montadora do estúdio, que parece estar literalmente costurando os pedaços de película ao lidar com a enorme moviola como se fosse uma máquina de fiar. Enquanto isso, Channing Tatum abusa de sua figura máscula para criar um ator de musicais sobre o qual recorrentemente recai a suspeita de homossexualidade. Aliás, Ave, César! parece, de fato, se tratar de uma visão particular de Mannix. Cristão devoto, que se confessa quase todos os dias, o gerente também dispõe dos valores mais conservadores do venerado sistema capitalista pós-Segunda Guerra. Portanto, não é de se espantar o absurdo da cena final que envolve o grupo de comunistas responsáveis por sequestrar Baird Whitlock (George Clooney). Ou mesmo que enxergue Thora e Thessaly Thacker (Swinton) como figuras idênticas.

Por outro lado, quando se propõe a homenagear os gêneros mais clássicos de Hollywood, os musicais e os westerns, os Coen acabam incorporando esses estilos. Investem em números de dança e canto que tomam o seu tempo e também em sequências como aquela em que, acompanhando Hobie Doyle brincar com um laço, acusam a familiaridade do personagem com o modo de vida dos papéis que tem mais facilidade para viver. A própria fotografia do ótimo Roger Deakins (parceiro habitual dos Coen) parece preferir os tons puxados para o sépia, remetendo às obras sobre que fala, enquanto Carter Burwell (outro colaborador habitual da dupla) entrega uma trilha irreverente que parece comentar o espírito do longa como um todo. Aliás, é ainda na sua primeira metade que Ave, César! entrega a sua cena mais memorável, quando Mannix chama representantes religiosos para opinarem sobre uma produção em que Jesus apareceria. O tópico transforma a reunião em uma guerra de controvérsias que acaba representando muito bem a dinâmica geral da cultura, indústria e intervenção religiosa, quando a primeira invariavelmente termina sendo a ferramenta para que capital e fé ajam sobre a população. E justamente por defender um personagem que representa valores tão retrógrados, e que ainda age como uma espécie de patriarca industrial, é que o novo filme dos irmãos Coen se destaca como comentário moderno. Através de seu protagonista, aponta as distorções promovidas pela lógica puramente capitalista e religiosa, e como elas moldaram as formas que hoje definem a grande indústria cultural.



NOTA: 8/10


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