Os irmãos Joel e Ethan Coen costumam
apostar em uma galeria de personagens peculiares que, juntos, compõe um
universo atípico. E se isso era a razão do sucesso de Um Homem Sério, por exemplo, foi também a triste ruína de E aí, Meu Irmão, Cadê Você?, que deixava
soltas e perdia todas as suas boas ideias ao jamais dar-lhes uma coesão. Já Ave, César! se aproxima perigosamente do
caso desse último, adotando uma estrutura similar através de um apanhado de
contos de tom episódico. Porém, seguindo também mais a linha do primeiro e apontando
um protagonista bem definido, o longa-metragem ganha um fio condutor mais
sólido e sente-se livre para navegar, explorar e devanear nos micro-universos
que, juntos, compõe, mais uma vez, um ecossistema singular concebido pelos
Coen, aqui na forma de um gigantesco estúdio da era clássica de Hollywood.
Gerenciado por Eddie Mannix (Josh
Brolin), o Capitol Studios (que já tinha surgido em outro filme dos Coen, Barton Fink - Delírios de Hollywood) é
um lugar gigantesco, como uma das primeiras tomadas já se encarrega de estabelecer,
recheado de enormes galpões dentro dos quais acontecem as filmagens de inúmeras
e diferenciadas histórias. Acostumado a lidar com as manias, egos, escapadelas
e exigências dos artistas que habitam aquele mundo, Eddie anda de um set para o
outro manejando os problemas constantes do lugar. Até que, certo dia, o astro
principal da mais cara produção sendo filmada ali, Ave César!, é sequestrado. Somando
assim às habituais atribuições de Mannix, a tarefa de conseguir o dinheiro do
resgate e cumprir as exigências dos sequestradores.
Soturno e austero, o personagem de
Brolin mantém uma expressão sempre séria e inexpressiva que, no mais, revela um
cenho constantemente fechado, indicando suas infindáveis preocupações. O que
também denuncia a sua função de curinga, e quando lidando com a estrela DeeAnna
Moran (Scarlett Johansson), se mostra gentil, já com uma dupla de colunistas
(ambas interpretadas de forma hilária por Tilda Siwnton), age de maneira
articulada, e por fim, com um astro em crise de ideais, não se abstém de intervir
com brutalidade. Sua dureza, portanto, acaba servindo de termômetro para o
espectador, que através das reações de Mannix consegue entender quais coisas
são normais na sua rotina (como um pio alto que surge ao fundo toda a vez que
citam um tal famigerado filme Nas Asas da
Águia), e quais são realmente eventos estranhos.
Assim, talvez pareça desperdício
usar tantos atores renomados em participações que, por vezes, não duram mais do
que uma cena. Entretanto, Ave, César!
acaba se beneficiando desse desfile de rostos famosos, uma vez que eles ajudam
a construir um tom de familiaridade que Eddie deve experimentar todos os dias.
Além do mais, Joel e Ethan se aproveitam das personas de alguns desses intérpretes.
Ralph Fiennes, por exemplo, famoso por suas figuras rígidas, surge como um
famoso diretor tentando conduzir o jovem astro de filmes western, Hobie Doyle (Alden
Ehrenreich), em um romance de época. E conforme o ator se sai cada vez pior no
papel, a tensão da cena cresce e torna os deslizes de Doyle mais divertidos de
acompanhar, pois esperamos uma típica reação severa do personagem de Fiennes.
Já Frances McDormand, veterana na filmografia do marido (Joel), vive em uma
ponta glorificada a montadora do estúdio, que parece estar literalmente
costurando os pedaços de película ao lidar com a enorme moviola como se fosse
uma máquina de fiar. Enquanto isso, Channing Tatum abusa de sua figura máscula
para criar um ator de musicais sobre o qual recorrentemente recai a suspeita de
homossexualidade. Aliás, Ave, César!
parece, de fato, se tratar de uma visão particular de Mannix. Cristão devoto,
que se confessa quase todos os dias, o gerente também dispõe dos valores mais
conservadores do venerado sistema capitalista pós-Segunda Guerra. Portanto, não
é de se espantar o absurdo da cena final que envolve o grupo de comunistas responsáveis
por sequestrar Baird Whitlock (George Clooney). Ou mesmo que enxergue Thora e Thessaly
Thacker (Swinton) como figuras idênticas.
Por outro lado, quando se propõe
a homenagear os gêneros mais clássicos de Hollywood, os musicais e os westerns,
os Coen acabam incorporando esses estilos. Investem em números de dança e canto
que tomam o seu tempo e também em sequências como aquela em que, acompanhando
Hobie Doyle brincar com um laço, acusam a familiaridade do personagem com o
modo de vida dos papéis que tem mais facilidade para viver. A própria
fotografia do ótimo Roger Deakins (parceiro habitual dos Coen) parece preferir
os tons puxados para o sépia, remetendo às obras sobre que fala, enquanto
Carter Burwell (outro colaborador habitual da dupla) entrega uma trilha
irreverente que parece comentar o espírito do longa como um todo. Aliás, é
ainda na sua primeira metade que Ave,
César! entrega a sua cena mais memorável, quando Mannix chama
representantes religiosos para opinarem sobre uma produção em que Jesus
apareceria. O tópico transforma a reunião em uma guerra de controvérsias que
acaba representando muito bem a dinâmica geral da cultura, indústria e
intervenção religiosa, quando a primeira invariavelmente termina sendo a
ferramenta para que capital e fé ajam sobre a população. E justamente por
defender um personagem que representa valores tão retrógrados, e que ainda age
como uma espécie de patriarca industrial, é que o novo filme dos irmãos Coen se
destaca como comentário moderno. Através de seu protagonista, aponta as
distorções promovidas pela lógica puramente capitalista e religiosa, e como
elas moldaram as formas que hoje definem a grande indústria cultural.
NOTA: 8/10
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