terça-feira, 25 de outubro de 2016

A 13ª EMENDA


Em muitos países, o fim da escravidão significou apenas a adaptação do sistema econômico para assimilar novamente a antes mão-de-obra escrava. Nos Estados Unidos, a coisa não foi muito diferente. A chegada da 13ª Emenda da constituição pode ter representado virtualmente o fim dos trabalhos forçados, porém, na prática, não foi bem assim, pois um pequeno adendo do texto abria uma exceção dessa prática em relação a criminosos. Não demorou, portanto, para que aqueles interessados em retomar o poderio econômico, ou os que simplesmente não conseguiam aceitar a população negra vivendo entre os brancos, explorassem a brecha. E o que antes era chamado de “escravizar”, passou a ser denominado “criminalizar”.


Não por acaso, essa última palavra é exatamente a que a diretora Ava DuVernay resolve ressaltar repetidamente através de letreiros, toda vez que ela é dita por algum dos entrevistados neste A 13ª Emenda. Mulher e negra, a cineasta já havia sido responsável pelo excelente Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014), e aqui resolve abordar de forma dinâmica os mecanismos empregados pela elite conservadora estadunidense durante o último século para marginalizar, criminalizar, encarcerar e, só então, explorar o trabalho de uma população pobre e, em grande parte (devido ao legado histórico), negra.

Porém, embora o filme se situe dentro dos limites dos EUA, é importante conversar sobre como isso ocorreu no Brasil também, já que o racismo (herança do segregacionismo e da escravidão) é atualmente um problema velado em quase todo o mundo. Existem depoimentos de que no nosso país, em diversos aeroportos, os funcionários são instruídos a selecionarem aleatoriamente alguns passageiros e revista-los na fila de embarque – leia-se, escolher alguns para disfarçar quem querem realmente checar: pessoas negras. Ainda por aqui, a maior parte dos centros urbanos sofreu uma limpeza étnica no começo do século passado, com a população negra e pobre, junto com sua cultura, sendo jogada para as periferias das cidades – mesmo local, diga-se de passagem, onde costumam-se alocar os presídios, hospitais psiquiátricos e zonas industriais, o que deu continuidade à associação dessa parcela da sociedade com o crime, a inferioridade social e com o trabalho subserviente. Principalmente tendo em vista que a escravidão foi abolida nos país com apenas algumas linhas discretas, que não estabeleciam nenhuma política de compensação ou reinserção aos recém libertos escravos.

Muito pelo contrário, os governos seguintes trataram de instaurar ferramentas de branqueamento no Brasil, incentivando pessoas caucasianas a virem da Europa para cá através da garantia de lotes de terras, por exemplo. Com tanta gente branca ganhado propriedades e negros ainda marginalizados, esses últimos quase que imediatamente voltaram a se sujeitar ao trabalho forçado, pois suas opções para continuarem vivos eram poucas, senão, nulas. A mão-de-obra escrava foi a base econômica de diversas nações durante muito tempo, revendo a história de hoje para trás, parece até ingenuidade pensar que, como um todo, a máquina social abriria mão desse recurso.

As pessoas gostam de pensar que vivemos em uma sociedade já muito mais madura do que aquela em que as grandes casas tinham senzalas e em que pessoas eram transportadas em prateleiras dentro dos navios. Mas o quanto podemos dizer que evoluímos se hoje estocamos os pobres em construções precárias nos cantos das cidades, se lotamos prisões sem uma boa infraestrutura com pessoas de baixa renda, se dificultamos o seu acesso à educação, e se submetemos o restante a jornadas de trabalho desgastantes em empregos quemuitas vezes não possibilitam o crescimento profissional?

Entendendo que o tema de seu documentário lida com grande resistência de aceitação, DuVernay traça uma linha de raciocínio lógico para explicar como certos elementos influenciam em outros para fertilizar certos comportamentos, indo para frente e para trás na árdua história das lutas sociais. Explica primeiro, por exemplo, como diversas leis aplicadas durante essas décadas, facilitaram o encarceramento e a aplicação de longas penas para pessoas que não tinham muitos recursos para se defender, e só mais tarde no filme é que nos apresenta à ALEC, um clube de políticos e comerciantes que formula e pressiona a sanção de leis no congresso, revelando nesse momento que muitas das medidas legais que nos apresentara antes, foram obra dessa Associação.

De outra forma, Ava procura não chamar muita atenção para si mesma, e os grafismos que permeiam a narrativa surgem como ferramentas essenciais para atalhar as informações introduzidas. Apesar disso, não trata-se de um documentário visualmente desinteressante ou repetitivo, e é particularmente eficiente como realiza as entrevistas em locais monocromáticos e sem vida, que ressaltam a seriedade e melancolia dos depoimentos. E num exercício admirável, constrói até mesmo um clímax, que começando com a história de um jovem que se suicidou após ter sido preso injustamente apenas por ser negro, culmina em um clipe que contrapõe imagens de arquivo a outras extremamente atuais (dos comícios de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, por exemplo), mostrando cenas e discursos que, mesmo com décadas de diferença, ainda são tristemente semelhantes.

Ressaltando também o peso que certas palavras podem ganhar, para o bem ou para o mal, A 13ª Emenda não relembra apenas o que “criminalizar” significa hoje, mas também reforça a importância de se atentar àquilo que implicam esses termos e que tipo de ambientes favorecem, principalmente através de discursos que pregam medidas pela “Lei e Ordem” e o “Livre Mercado” – e seguindo o aprendizado, note que, por exemplo, não foram admitidos nesse texto o uso de “claro”, “esclarecer”, “denegrir”, etc. Concluindo-se então como uma obra que paralelamente instiga e revolta em medidas equivalentes, o filme de Ava DuVernay chega em momento oportuno (às vésperas das eleições presidenciais estadunidenses) e desponta como parte importante da militância negra, que, assim como aponta um dos entrevistado no longa, reconhece que temos muitas chances de realmente acabar com a escravidão dessa vez, já que através da internet e da tecnologia que possibilita que as informações corram nela, hoje somos obrigados a conversar sobre o que está acontecendo de errado – esse documentário, é apenas mais um gancho para isso.



NOTA: 10/10


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