Em muitos países, o fim da
escravidão significou apenas a adaptação do sistema econômico para assimilar
novamente a antes mão-de-obra escrava. Nos Estados Unidos, a coisa não foi
muito diferente. A chegada da 13ª Emenda da constituição pode ter representado
virtualmente o fim dos trabalhos forçados, porém, na prática, não foi bem
assim, pois um pequeno adendo do texto abria uma exceção dessa prática em
relação a criminosos. Não demorou, portanto, para que aqueles interessados em
retomar o poderio econômico, ou os que simplesmente não conseguiam aceitar a
população negra vivendo entre os brancos, explorassem a brecha. E o que antes
era chamado de “escravizar”, passou a ser denominado “criminalizar”.
Não por acaso, essa última
palavra é exatamente a que a diretora Ava DuVernay resolve ressaltar
repetidamente através de letreiros, toda vez que ela é dita por algum dos
entrevistados neste A 13ª Emenda.
Mulher e negra, a cineasta já havia sido responsável pelo excelente Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014), e
aqui resolve abordar de forma dinâmica os mecanismos empregados pela elite
conservadora estadunidense durante o último século para marginalizar,
criminalizar, encarcerar e, só então, explorar o trabalho de uma população
pobre e, em grande parte (devido ao legado histórico), negra.
Porém, embora o filme se situe
dentro dos limites dos EUA, é importante conversar sobre como isso ocorreu no
Brasil também, já que o racismo (herança do segregacionismo e da escravidão) é atualmente
um problema velado em quase todo o mundo. Existem depoimentos de que no nosso
país, em diversos aeroportos, os funcionários são instruídos a selecionarem
aleatoriamente alguns passageiros e revista-los na fila de embarque – leia-se,
escolher alguns para disfarçar quem querem realmente checar: pessoas negras.
Ainda por aqui, a maior parte dos centros urbanos sofreu uma limpeza étnica no
começo do século passado, com a população negra e pobre, junto com sua cultura,
sendo jogada para as periferias das cidades – mesmo local, diga-se de passagem,
onde costumam-se alocar os presídios, hospitais psiquiátricos e zonas industriais,
o que deu continuidade à associação dessa parcela da sociedade com o crime, a
inferioridade social e com o trabalho subserviente. Principalmente tendo em
vista que a escravidão foi abolida nos país com apenas algumas linhas
discretas, que não estabeleciam nenhuma política de compensação ou reinserção
aos recém libertos escravos.
Muito pelo contrário, os governos
seguintes trataram de instaurar ferramentas de branqueamento no Brasil,
incentivando pessoas caucasianas a virem da Europa para cá através da garantia
de lotes de terras, por exemplo. Com tanta gente branca ganhado propriedades e
negros ainda marginalizados, esses últimos quase que imediatamente voltaram a
se sujeitar ao trabalho forçado, pois suas opções para continuarem vivos eram
poucas, senão, nulas. A mão-de-obra escrava foi a base econômica de diversas
nações durante muito tempo, revendo a história de hoje para trás, parece até
ingenuidade pensar que, como um todo, a máquina social abriria mão desse
recurso.
As pessoas gostam de pensar que
vivemos em uma sociedade já muito mais madura do que aquela em que as grandes
casas tinham senzalas e em que pessoas eram transportadas em prateleiras dentro
dos navios. Mas o quanto podemos dizer que evoluímos se hoje estocamos os
pobres em construções precárias nos cantos das cidades, se lotamos prisões sem
uma boa infraestrutura com pessoas de baixa renda, se dificultamos o seu acesso
à educação, e se submetemos o restante a jornadas de trabalho desgastantes em empregos
quemuitas vezes não possibilitam o crescimento profissional?
Entendendo que o tema de seu
documentário lida com grande resistência de aceitação, DuVernay traça uma linha
de raciocínio lógico para explicar como certos elementos influenciam em outros
para fertilizar certos comportamentos, indo para frente e para trás na árdua
história das lutas sociais. Explica primeiro, por exemplo, como diversas leis
aplicadas durante essas décadas, facilitaram o encarceramento e a aplicação de
longas penas para pessoas que não tinham muitos recursos para se defender, e só
mais tarde no filme é que nos apresenta à ALEC, um clube de políticos e
comerciantes que formula e pressiona a sanção de leis no congresso, revelando
nesse momento que muitas das medidas legais que nos apresentara antes, foram
obra dessa Associação.
De outra forma, Ava procura não
chamar muita atenção para si mesma, e os grafismos que permeiam a narrativa
surgem como ferramentas essenciais para atalhar as informações introduzidas.
Apesar disso, não trata-se de um documentário visualmente desinteressante ou
repetitivo, e é particularmente eficiente como realiza as entrevistas em locais
monocromáticos e sem vida, que ressaltam a seriedade e melancolia dos
depoimentos. E num exercício admirável, constrói até mesmo um clímax, que
começando com a história de um jovem que se suicidou após ter sido preso
injustamente apenas por ser negro, culmina em um clipe que contrapõe imagens de
arquivo a outras extremamente atuais (dos comícios de Donald Trump para a
presidência dos Estados Unidos, por exemplo), mostrando cenas e discursos que,
mesmo com décadas de diferença, ainda são tristemente semelhantes.
Ressaltando também o peso que
certas palavras podem ganhar, para o bem ou para o mal, A 13ª Emenda não relembra apenas o que “criminalizar” significa
hoje, mas também reforça a importância de se atentar àquilo que implicam esses
termos e que tipo de ambientes favorecem, principalmente através de discursos
que pregam medidas pela “Lei e Ordem” e o “Livre Mercado” – e seguindo o
aprendizado, note que, por exemplo, não foram admitidos nesse texto o uso de “claro”,
“esclarecer”, “denegrir”, etc. Concluindo-se então como uma obra que
paralelamente instiga e revolta em medidas equivalentes, o filme de Ava DuVernay
chega em momento oportuno (às vésperas das eleições presidenciais
estadunidenses) e desponta como parte importante da militância negra, que,
assim como aponta um dos entrevistado no longa, reconhece que temos muitas
chances de realmente acabar com a escravidão dessa vez, já que através da
internet e da tecnologia que possibilita que as informações corram nela, hoje
somos obrigados a conversar sobre o que está acontecendo de errado – esse
documentário, é apenas mais um gancho para isso.
NOTA: 10/10
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