sexta-feira, 13 de outubro de 2017

BLADE RUNNER 2049




Filmes têm personalidade, tom e ritmo(s) singulares, têm também maneiras próprias de se expressar, nuances únicas, ideias divergentes e roupagens diversas; eles são (ou deveriam ser) conscientes de si mesmo e às vezes falam sobre isso, alguns são inteligentes, outros nem tanto, e todos têm uma duração limitada com começo, um meio de infinitas possibilidades e, inevitavelmente, um fim. De certa forma, portanto, filmes se assemelham muito com seus criadores: nós, seres-humanos.

E é curioso que eu me sinta impelido a esta reflexão para falar de Blade Runner 2049, pois eu já havia escrito algo muito parecido na crítica do filme anterior do canadense Denis Villeneuve, A Chegada. Porém, se lá eu dizia isso para ilustrar como a estrutura e linguagem do longa traduziam perfeitamente os conceitos e ideias que carregava, sendo a própria obra um exemplo deles, aqui essa comparação ganha uma dimensão a mais, pois além de repetir o feito (2049 é, em si, uma amostra daquilo de que fala, o que explico mais adiante), o projeto também é um que discute no que consiste, afinal, a natureza do que é ser(-)humano.


Se você for um replicante, talvez não tenha memórias reais das últimas décadas e, portanto, não saiba que Blade Runner 2049 é a continuação de Blade Runner: O Caçador de Andróides (1982), filme dirigido por Ridley Scott e adaptado do livro de Philip K. Dick, um dos grandes marcos do movimento que chamamos de Cyberpunk. A trama deste novo longa se passa 30 anos depois, e acompanha K (Ryan Gosling), um caçador de andróides ultrapassados e rebeldes, e que é, ele mesmo, um replicante (que é como se chamam os andróides nesse universo). O agente policial sintético, entretanto, acaba esbarrando num mistério intrigante, e é designado pela tenente Joshi (Robin Wright) para desvendá-lo e limpar as suas evidências, já que a solução do caso poderia ter um grande impacto na sociedade - o que, claro, faz com que surjam outros interessados nesta investigação, principalmente Niander Wallace (Jared Leto), dono da megacorporação que cria os replicantes.


Futurismos à parte, esse é um tipo de trama que já foi clichê no cinema noir; a do detetive soturno descortinando um plot complexo envolvendo gente poderosa em metrópoles bestiais que têm vida própria, cercado de arquétipos do gênero como a femme fatale, a autoridade dúbia e a figura inocente e trágica. O que, agora que percebo, é outra frase que já disse antes ao falar de um filme de Villeneuve, no caso, Sicario: Terra de Ninguém. Aquele thriller policial protagonizado por Emily Blunt era hábil em pegar todas as principais características do noir e atualizá-las. Veja, não emulá-las, como seria um neo noir, mas realmente atualizar: trazer seus conceitos para uma visão moderna, que abarca toda a evolução social e de linguagem que tivemos no último meio século (um neo neonoir?) - havia, por exemplo, um homme fatale em Sicario, invertendo o estigma da personalidade sedutora e traiçoeira que foi jogada sobre as mulheres por anos nessas produções. E isso é relevante aqui porque O Caçador de Andróides era um filme que se inspirava abertamente na estética e nas configurações do movimento noir, principalmente na fotografia escura marcada por sombras alongadas e na trilha opressiva e melancólica. O que nos traz a 2049, que ao invés de “imitar” o longa original e se esbaldar na estrutura e embalagem dos filmes noite, apresenta Villeneuve novamente preferindo atualizar o estilo. Ora, quando se leva em conta que o longa-metragem gira precisamente em torno de um replicante atualizado que caça versões mais antigas, percebe-se também que o conflito do protagonista em torno desta função levanta uma reflexão bastante similar àquela extraída das diferenças entre Blade Runner: O Caçador de Andróides e Blade Runner 2049 - o que faz deste último, como apontei antes, um exemplo em si da própria temática.


Não que o projeto se limite filosoficamente a essa comparação, muito pelo contrário. Se no longa original a questão da humanidade dos andróides era um fio guia, aqui ela basicamente assume o centro da narrativa. E se é apenas funcional o simbolismo criado pelo filme ao associar a deficiência visual de Wallace a sua incapacidade de perceber a beleza da vida que ele cria (note como os pequenos drones que ele usa para enxergar acabam denotando a visão “mecânica” que o empresário tem das criaturas e ambientes ao seu redor), por outro lado, muito mais eficientes são as maneiras com que são construídos K e Luv (Sylvia Hoeks), a replicante que trabalha como uma general para Niander, e que assume o papel de principal vilã do longa. Ele, de maneira muito semelhante a Deckard (Harrison Ford) em O Caçador de Andróides, é um típico (anti)herói de um suspense Noir: pragmático, fechado, moralmente dúbio e perturbado pelo que é. Algo que Ryan Gosling vive com sutileza, sabendo agregar a K características que estabelecem a naturalidade adquirida pelo replicante ao conviver em uma sociedade tão hostil a sua natureza sintética. Repare como desvia quase distraído de agressores na delegacia em que trabalha, assim como ignora solenemente uma senhora gritando xingamentos para ele nas escadarias de seu prédio, ainda demonstrando tédio e prática na maneira maquinal com que responde a um questionário imposto a ele toda vez que retorna de um caso, uma espécie de teste para avaliar seus padrões de obediência.


Aliás, esta hierarquia social escravocrata é algo muito mais desenvolvido nessa continuação. Levando ao pé da letra a origem tcheca da palavra robô (robota, que significa “trabalho escravo”), os replicantes de 2049 são, de fato, objetos com objetivos claros para os humanos - belas prostitutas e soldados e seguranças musculosos. Não surpreende então que K se espante ao receber a ordem de assassinar um ser “nascido”; “Eu nunca matei algo que nasceu antes (...) acho que nascer te dá uma alma”, diz ele, explicitando a percepção de si mesmo que o andróide acabou absorvendo da sua sociedade - muito similar àquela que os povos europeus imputavam aos escravos capturados da África, por exemplo. Mas o que K chama de alma, seria algo realmente atrelado a nossa origem? Pois as nossas emoções e personalidades são, na verdade, baseadas naquilo que vivenciamos ao longo da vida, e em dado instante, uma “designer” que cria memórias para serem implantadas nos replicantes, responde a K que desenha as lembranças com tanto cuidado e minúcia porque “...memórias autênticas criam emoções mais autênticas”. Ora, então as vivências projetadas dos andróides são menos válidas que as factuais dos humanos? E se não são, o fato de os replicantes terem consciência da artificialidade delas, interfere de que maneira nas suas personalidades?


Ter ciência da própria efemeridade e insignificância perante um sistema tende a levar o indivíduo a uma postura niilista. Porém, e se essa percepção servir, na verdade, para amenizar o egoísmo instintivo do ser humano e torná-lo mais altruísta ao fazê-lo notar que, sim, cada pessoa é única e especial, mas também parte de um todo muito maior? Uma vez que os andróides conhecem sua função e os mecanismos que os regem, não estariam eles um passo à frente no que diz respeito a essa coletividade? Um espírito de comunidade que, aliás, pelos cenários devastados que tanto O Caçador de Andróides quanto 2049 exploram, falta completamente à humanidade. “Mais humanos que humanos”, então, como diz uma replicante, repetindo a fala do longa original nesse novo contexto, que traz agora também como bordão a frase dita pela andróide Freysa (Hiam Abbass): “...sacrificar-se por uma causa maior é a coisa mais humana que poderíamos fazer”. Essa ideia de se reconhecer como um ser singular, porém, encaixado num sistema mais complexo, é um tema pelo qual o roteiro de Hampton Fancher (que também escreveu o primeiro filme) e Michael Green parece bastante interessado. Note, nesse caso, o diálogo que K troca com a sua namorada holográfica, Joi (Ana de Armas), sobre todos os seres-vivos serem escritos a partir de um código baseado em quatro símbolos, enquanto ela, um ser virtual, só precisa de dois (1 e 0) - afinal, infinitas combinações únicas de algumas letras, ainda são todas elas combinações dessas mesmas letras. E mesmo o nome que ela escolhe para K é um indicativo disso, pois “Joe” é um nome que, na língua inglesa, traz consigo essa ideia de gente comum, de convencionalismo e mundanidade - em Mad Max: Estrada da Fúria, por exemplo, em que o vilão representa todo um comportamento misógino universal, seu nome é Immortan Joe, implicando perfeitamente que ele simboliza o “imortal homem comum”.


Alguém poderia apontar, entretanto, que toda essa reflexão já estava implícita no emblemático momento do filme original em que o replicante Roy (Rutger Hauer) diz a famosa “todos esses momentos vão se perder, como lágrimas na chuva”. Mas eu considero apenas natural que Villeneuve queira dissecar esse raciocínio aqui, pois é adequado (para não dizer que é quase instintivo) que com a atualização da abordagem, venha também uma racionalização mais problematizante, apropriada a um público com 35 anos de diferença e já inserido na era da internet, em que a frase final de Roy pode até render um belo tweet, que, porém, se perderia em meio a tantos outros milhões - ironicamente, tal qual sua analogia.


Portanto, é até intrigante que, tratando desses assuntos, o filme nos apresente de cara a um protagonista não humano, como se desafiasse esse espectador moderno, habituado em se ligar com as pessoas de forma virtual, a se identificar com K apesar de sua natureza artificial - e diferente de um Wall-E, o andróide não possui um design fofinho com olhos grandes e expressivos, mas sim uma inexpressividade e monocórdia que, não duvido, muitos usarão como demérito à performance de Ryan Gosling, desconsiderando que, manter a constância dessas características denuncia na verdade um trabalho minucioso do ator. E estudado, pois perceba como, quando finalmente expressa alguma emoção, o contraste estabelecido serve para potencializar a fúria do replicante - algo que também é mérito do design de som, o que discuto a seguir. Algo similar pode ser dito, inclusive, de Luv, que surge sempre como a figura mais interessante em tela. Sylvia Hoeks, aliás, faz questão de contrapor recorrentemente a precisão e dureza dos modos da vilã com a passionalidade que ela tenta conter a todo custo, mas que escapa em momentos chave, tornado sua presença magnética. O que, por sua vez, são detalhes que conferem mais emotividade aos replicantes do que a quase todos os seres humanos, que em geral surgem unidimensionais - sendo um acerto de Jared Leto entender isso e interpretar Wallace com uma dicção mecânica e pausada, desprovida de qualquer emoção, quase como se computasse suas frases antes de deixá-las escapar dos lábios.


Niander, aliás, é um exemplo de elemento que se beneficia inteiramente da direção e estética adotadas por Denis Villeneuve. A pirâmide da Corporação Tyrel, onde ele mora, é construída pelo design de produção como um local de ambientes amplos e escuros; de certa forma, funcionais a um homem cego. Porém, mais do que isso, perfeitos para estabelecer no espectador o conceito dos ideais perseguidos por ele e, consequentemente, por Luv - as figuras que habitam ali. Villeneuve e o diretor de fotografia Roger Deakins (um gênio), retomando a parceria que rendeu o excelente Os Suspeitos e o já citado Sicario, constroem o lugar com uma atmosfera sublime, quase etérea, através de faixas de luz que parecem estar sempre em movimento. Essas sombras “listradas”, além de serem uma marca clássica da fotografia do cinema noir, surgem aqui nessa inconstância de posição, sempre passando pelos personagens, hora revelando-os à luz, hora escondendo-os na escuridão, criando eficientemente uma sensação de incômoda incerteza - potencializada pela trilha de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, que investe nesse momento em cânticos guturais associados ao sons eletrônicos que dominam o resto das suas composições.


E embora essa estética visual atualizada do noir consiga expressar em outros instantes também o calculismo e pragmatismo de K, apostando para isso em planos longos e de composição estudada que remetem (apropriadamente) ao cinema de Stanley Kubrick, a sonoridade de 2049 é também parte essencial da construção daquele universo. Quando, por exemplo, Deakins e Villeneuve inserem planos aéreos das megalópoles e vastidões destruídas daquele futuro, Zimmer e Wallfisch (comprometidos a fazer jus à trilha emblemática de Vangelis para o filme original) procuram, tal qual as imagens fazem com a tela, preencher as caixas de som por completo com a música, que sobe alta e repleta de sons graves que se mesclam propositalmente aos sons emitidos pelos motores dos carros voadores. Essa associação entre os planos abertos de cenários claustrofóbicos com as faixas ensurdecedoras e anti-melódicas, estabelecem com admirável eficiência a atmosfera opressora dessa realidade suja, poluída, superpopulosa e miserável. Além disso, o design de som aposta naquele recurso batido do cinema de horror contemporâneo, que silencia todos os ruídos só para usar um efeito sonoro muito alto par assustar a audiência, mas aqui de forma muito mais inteligente: ao invés de emudecer os sons instantes antes do pulo, as cenas são construídas já com uma sonoridade baixa, inserindo pequenos detalhes que compõe o ambiente, como a chuva batendo numa janela ou o zunido de um computador funcionando; e aí, não de forma a surpreender, a voz de um personagem que até então falara calmamente, ou uma paz que estava imperturbada, é abruptamente interrompida por um grito ou um estrondo contrastante - e assim, não se causa o susto, mas o choque, que serve ao filme conferindo impacto a esses momentos chave.

E créditos sejam dados ao montador Joe Walker, que tendo em mãos uma narrativa mais lenta (e não digo isso como um demérito), procura criar transições e passagens elegantes entre uma cena e outra, conferindo mais organicidade ao desenrolar da trama - e em especial o plano que transforma as fagulhas de uma fogueira nas janelas dos monstruosos prédios de Los Angeles, é simultaneamente belo e aterrador.


Por isso que, além de ser uma continuação talvez até mais profunda do que seu aclamado antecessor, Blade Runner 2049 é também mais um acerto no currículo impecável de Denis Villeneuve - que já tem crédito sobrando depois de Incêndios, Os Suspeitos, O Homem Duplicado, Sicario e A Chegada. Aliás, é interessante notar que, seguindo a proposta de questionar os limites entre humano e replicante, o filme mantenha a dubiedade sobre a verdadeira natureza de um personagem, respeitando o espírito daquela decisão tomada por Ridley Scott. Não é que 2049 seja melhor que O Caçador de Andróides; certamente é, ao menos, tão bom quanto, mas funciona de uma maneira diferente: o clássico de 1982 era uma filme mais poético, conduzido para que sua atmosfera provocasse mais a reação emocional; a sua continuação é o oposto, é racional ao extremo, sua gramática audiovisual procura inspirar a reflexão - os sentimentos advindos dessas são apetrechos. E levando em conta que, de fato, vivemos em tempos diferentes, é instrumental que Villeneuve tenha compreendido isso e tentado conversar com seu público a respeito de tópicos tão relevantes hoje, como a necessidade de constantemente problematizarmos o que já foi estabelecido, e de não temer evoluir.

(nesta segunda parte do texto, me aprofundo nos personagens e nos conceitos críticos que eles carregam. Para tanto, tive que falar de muitos spoilers do filme, esteja avisado)


Às vezes não é o filme que é chato, mas sim o espectador

Todo filme, como Arte, merece uma análise cuidadosa. Todavia, há filmes que se esforçam tanto e alcançam tamanha eficiência em entranhar conteúdo, que fazem por merecer uma ou mais visitas e dissecações minuciosas. Na época do lançamento de A Árvore da Vida, por exemplo, lembro que muitos acusaram o projeto de ser pretencioso e autoindulgente, se recusando a sequer tentar entender como filme funcionava. Veja bem, não digo GOSTAR do filme, mas compreendê-lo. Entender suas intenções artísticas, mesmo que as considere falhas, não te obriga a se apaixonar por uma produção - nesse sentido, chamar um filme de chato é tão leviano e superficial quanto dizer que ele é "muito bom". Para ilustrar, na minha crítica de Histórias Cruzadas, que desprezo como obra, apontei diversos pontos do filme que eu admiro muito, mas isso porque me dei ao trabalho de tentar compreender o que ele pretendia e onde falhou.   

Dito isso, um dos problemas de Hollywood que, como crítico muitas vezes tenho de relevar, é a sua falta de confiança inerente no espectador. Filmes pensados para serem absorvidos pelo maior número possível de pessoas (leia: filmes caros), raramente conseguem se dar ao luxo de uma complexidade narrativa, filosófica ou de trama. Denis Villeneuve, entretanto, é um cineasta que tem demonstrado habilmente conseguir equilibrar os elementos de suas obras de modo a não esconder nada do público, mas também não mastigar nada para este. Relembrando minha crítica de Os Suspeitos, me recordo de citar como o diretor, apenas ao revelar uma meia jogada num canteiro, confiava que sua audiência faria uma série de ligações com outros pontos mais discretos do roteiro, e a partir daí iria inferir cenários que explicariam o desenrolar posterior de eventos.

Ora, alguns podem acusá-lo de ser preguiçoso ou raso, e entender que essas “táticas” que eu apontei são, na verdade, buracos/barriga de roteiro. Porém, gostando ou não, é preciso admitir que o cineasta demonstra ter domínio da linguagem. Ou seja, vejo que seus filmes merecem um olhar mais atento, uma dissecação mais cuidadosa, pois podem recompensar o trabalho revelando mais sobre seus universos e personagens - e pretendo aqui, portanto, analisar a existência dessas camadas em Blade Runner 2049, e como elas se manifestam para o nós.

Niander Wallace é menos um personagem e mais um conceito

E eu acho que seria impossível não começar pelo personagem de Jared Leto, o bilionário Niander Wallace. Revisando aquilo sobre o que já discorri antes, Wallace seria o principal vilão do filme. Porém, quando paramos para conferir, o antagonista tem apenas duas cenas relevantes, uma no começo do filme e outra ao final dele. Por presença e intervenção nos eventos da trama, portanto, seria Luv (Sylvia Hoeks) a verdadeira algoz do projeto. Por que então que Niander é sentido em cena do início ao fim do filme, sem que questionemos sua ausência física em tela? Acredito que há algumas estratégias empregadas por Villeneuve e seus roteiristas que podemos analisar para explicar isso.

Um deles, como já citei, é a apresentação de Wallace. Aprofundando aquilo que já expliquei mais pra cima na crítica, a fotografia e a sonoridade trabalham para construir o quartel general do empresário como um lugar que é simultaneamente funcional a um homem cego e conceitual sobre a personalidade deste: as luzes em constante movimento, com sombras muito densas, criam inquietação já que, hora revelam um canto e na outra já o escondem. Mas quero acrescentar ainda alguns pontos à genialidade da fotografia de Roger Deakins nessa sequência:

A pirâmide caída de um antigo império e a sombra que vive nele

A escolha da paleta de iluminação é muito característica aqui. Com isso quero dizer que ela traz consigo uma associação; aquela luz amarelada e muito forte parece ser vinda de um sol poente, o que confere essa impressão de “finalização” - ou de uma estrela velha, por assim dizer. E ela ainda parece se movimentar do lado de fora, o que gera o movimento vagaroso das faixas de luz; é como se Deakins sugerisse com isso uma passagem de eras. Some isso à concepção do design daqueles cenários, que amplos e opulentos, carecem ainda assim de ornamentos e demais enfeites, e o que temos é realmente a imagem de uma ruína histórica. Como uma pirâmide (e lembrem que o quartel general dele realmente tem a forma de uma pirâmide) com milênios de idade, abandonada há muitos anos, e agora habitada apenas pelo solitário empreendedor e sua criada, Luv.

Mas vamos pensar assim:

Wallace pode estar isolado em sua pirâmide, embalado pelos cânticos guturais compostos pela trilha (que, aliás, também remetem como signos universalizados a algo ancestral), mas ele é a cabeça por trás de muitas das tecnologias mais populares nesse futuro distópico pintado por 2049. Como um Steve Jobs com poderes ilimitados, os produtos que ele concebe e vende são uma representação de como ele enxerga (han?) o mundo lá fora - e é aí que entra o simbolismo mais óbvio em torno do personagem: a sua cegueira. Então é assim que Wallace nos é estabelecido: um imperador solitário, puxando as cordas das sombras, sem contato com o mundo e as pessoas lá fora, carregando o estandarte de um império que, não fosse sua insistência, já deveria ter caído. Por isso é importante compreender aquilo que ele representa, pois seus significantes, em teoria, deveriam ir de encontro às ideias propagadas na camada mais superficial do filme. Como provedor para aquele mundo, como o arquiteto por trás de seus bens de maior consumo, define em si um conceito de configuração social, uma ideologia sobre como a sociedade deveria funcionar - e, por consequência, examinar e entender o personagem, é compreender também que análise crítica o filme faz desta visão.  

“Mas Yuri, se o vilão é tão importante para compreender o debate de 2049, por que ele não ganha mais presença em tela? Tem certeza de que não está imaginando tudo isso pra justificar ter gostado tanto do filme?”.

Shut up!

Digo, cof cof (pigarro)… Acredito que Niander seja o personagem mais bem desenvolvido do filme, e que Villeneuve e seus roteiristas encontraram outras maneiras aprofundá-lo que não as convencionais.

“Mais humanos que humanos”

Mas que outras maneiras são essas?

Pensemos agora em Luv. A replicante, criada por Niander para ser sua braço direito, esconde sob a postura fria e robótica uma personalidade extremamente passional. Como sabemos disso? Porque ela chora por antecipar o fim doloroso de uma igual; pela dissimulação que emprega ao jogar uma tática psicológica contra K ao perceber que ele estava mentindo para ela, e, claro, por toda sua conduta quando não está sendo observada por Niander: ela grita com Joshi e se vangloria em dois momentos ao vencer K numa luta corpo a corpo - “Eu sou a melhor”, diz ela, claramente se referindo ao seu modelo, e não a sua pessoa especificamente.

“Tá, Yuri, eu consigo ver isso no filme, mas por que importa? Por que isso diria algo a mais sobre ela ou sobre qualquer outro personagem do filme?”

Pelo visto estou lidando com um público hipotético difícil hoje, vejamos:

Lembra da primeira cena em que Luv aparece? Ela está explicando a uma cliente que o nível de inteligência, beleza e habilidades sociais dos replicantes podem ser alterados de acordo com os usos que se farão deles. Se pensarmos que Wallace a construiu para ser sua funcionária mais confiável, essa passionalidade que ela acabou desenvolvendo de forma reprimida, denuncia que, quando a projetou, Niander colocou nela uma admiração muito alta por seu próprio trabalho, uma devoção inesgotável a ele e, pelo que percebemos, muito orgulho de sua singularidade também. E AQUI HÁ UM PONTO CHAVE SOBRE WALLACE. Porque colocar em Luv (aliás, o nome é autoexplicativo, né) este orgulho de ser única? Isso não a faria mais instável e menos manejável?

Pensemos naquele mundo:

Superpopuloso e caótico, com moradias se amontoando umas por cima das outras, e as cidades indo até o limite que a natureza permite (as construções terminam à beira do oceano profundo, sendo preciso um muro que limite a megalópole de continuar crescendo ou o mar de avançar sobre ela), nessa condensação que se tornou a humanidade, até o restaurante em que K está comendo em dado momento não dispõe de lugares para sentar. Ora, num mundo tão cheio de gente, faz sentido do ponto de vista de um pequeno empreendedor que se tente acomodar o maior número possível de clientes - então esses que comam em pé.

O que venderia tanto, então, num mundo tão desesperançoso e com tanta gente? Depende do seu objetivo. Portanto, pensemos no seguinte:

Singularidade. Se hoje o individualismo já é algo idolatrado em tempos de internet, que possibilita a segmentação de nichos e mais nichos todos os dias, imagine num mundo como esse. Tentar se sentir único e especial poderia muito bem ser uma obsessão social em tempos como o de 2049. Porém, mais do que isso, se a quantidade de gente é demais para espaços e recursos tão limitados, não seria plausível inferir que existe um sentimento anti-comunidade nessas pessoas? Num cenário desses, vender um produto que as faça se sentir especiais, além de ser popular e apelativo junto à grande parte da população, acentuaria o individualismo delas, mantendo-as assim “sob controle”. Em outras palavras, desestruturadas para se organizarem contra o sistema opressivo em que estão inseridas.

O que faz sentido quando pensamos no que propõem os replicantes rebeldes comandados por Freysa: “...sacrificar-se por uma causa maior é a coisa mais humana que poderíamos fazer”.

“Ah Yuri, mas então você tá dizendo que as pessoas não são únicas e especiais?”

Claro que são, e o filme não diz nada contrário a isso. Freysa chega a dizer “todos queríamos que [o filho de Deckard] fôssemos nós, por isso que nós acreditamos [na causa]”. Isso é, existe uma importância muito grande em descobrir e preservar sua singularidade. O oposto disso é o niilismo, que não serve de motivação para se lutar por nada - além do que, a diversidade de pessoas permite à espécie maiores chances de evolução em todos os sentidos. Porém, não podemos permitir que esse sentimento se transforme em puro egoísmo, e nos faça esquecer que existem outras bilhões de pessoas no mundo que precisam se descobrir assim singulares também. Precisamos atentar ao fato de que vivemos num mundo compartilhado.

Portanto, faz sentido à (falta de) visão de Wallace, que ele queira incentivar esse sentimento individualista e cego à comunidade. Para constatar isso, basta notar sua criação mais propagandeada no filme, Joi. Vamos dispensar logo o fato de ela ser um holograma e isso por si só já simbolizar como a “alegria” que ela deveria representar (do inglês, “joy”), é vazia. Pensemos mais em como ela não hesita em enaltecer K e incentivá-lo a acreditar que é o filho perdido de Rachel e Deckard. Aliás, já que a citei, lembra a palavra exata usada por Wallace quando oferece a réplica de Rachel a Deckard? Ele diz “mais alegria então” (do inglês, “more joy then”), deixando explícita a sua concepção do que é, afinal, “alegria” - sempre um invólucro vazio, mimético à realidade, mas jamais humano.

Então, a partir disso, podemos chegar, primeiramente (fora Temer), à conclusão que eu já tinha sugerido na primeira parte da crítica: que o filme fala sobre a importância de questionar o estabelecido, de reconhecer a singularidade individual mas não esquecer do senso de comunidade também. MAS, para além disso, analisando de forma mais profunda, percebemos que 2049 igualmente se preocupa em desenhar (ainda que de forma crítica, ao associar isso à vilania de Wallace) aquilo no que consiste o pensamento contrário a esse; um que visa o domínio de classes, usando da tipificação e supremacia como método segregacionista - nada muito diferente dos tristes tempos em que vivemos hoje.

Suspeito, entretanto, que Blade Runner 2049 seja um filme que talvez ainda tenha mais dimensões para revelar em outras visitas. Aliás, não duvido que tenha. Como uma pessoa, filmes podem ser tão complexos e diversos ao ponto de, por mais que se saiba sobre eles e os analise, continuam a nos revelar detalhes de sua constituição. E assim, podemos perceber que se os filmes são parecidos com as pessoas, isso é porque os fazemos a nossa imagem. Como os humanos de Blade Runner fizeram os replicantes - e como deveria ser com estes, por que não admiti-los como coisas tão complexas quanto nós?

3 comentários:

  1. esse filme é chato, cara

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  2. Excelene crítica!!! A trilha sonora em diversos momentos remete a original, entretanto na maioria do tempo é apenas uma versão genérica do Vangelis, sendo para mim o ponto mais fraco do filme, entretanto Hans Zimmer bobeou em não emular o tem final do filme original que é fenomenal, colocando nos créditos uma música bem fraca que afasta o público. O filme Blade Runner 2049 me manteve tensa todo o momento, se ainda não a viram, eu acho que é um dos melhores filmes de ficção cientifica que foram lançados.. No elenco vemos Ryan Gosling e Ana de Armas, dois dos atores mais reconhecidos de Hollywood que fazem uma grande atuação neste filme. Realmente a recomendo.

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