quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM


Depois de sete livros e oito filmes de Harry Potter, já é sabido que o talento da autora J.K. Rowling para a inventividade, assim como sua capacidade de criar personagens carismáticos, só fica melhor quando esses são colocados a favor de uma trama concebida como comentário acerca dos problemas do mundo real. Assim, é reconfortante constatar que seu retorno à saga, agora como roteirista, não se trata de uma empreitada mercenária, mas de uma obra agradavelmente delicada e pessoal que consegue surpreendentemente remeter às histórias anteriores, desenvolver uma trama própria e ainda instigar a curiosidade quanto ao rumo que esse novo arco vai traçar nos próximos filmes – sem jamais deixar de maravilhar com a criatividade desse universo.


Focado num jovem bruxo chamado Newt Scamander (Eddie Redmayne), Animais Fantásticos e Onde Habitam tem início quando esse ex-aluno de Hogwarts chega à América desembarcando em Nova York, onde logo chama a atenção de uma funcionária do MACUSA, o Congresso Mágico dos Estados Unidos. Portando uma mala cheia de criaturas mágicas, que não demoram a escapar e causar grande alvoroço na cidade, Newt acaba sob os cuidados de Tina (Katherine Waterston) e, além dela, junta-se também com a irmã desta, Queenie (Alison Sudol), e um trouxa que acidentalmente se envolve com a trama toda, Jacob (Dan Fogler). Juntos, eles precisam recapturar os bichos o mais rápido possível, pois estranhos e violentos ataques passam a ser atribuídos aos animais de Newt, que tem de provar sua inocência e achar o verdadeiro culpado antes de ser preso pelo auror Percival Graves (Colin Farrell).

Como pode ser notado pela sinopse, conceitos e nomes como trouxa, auror ou Hogwarts são partes importantes da história, só que desta vez surgem naturalmente e não recebem qualquer introdução. Desse modo, Animais Fantásticos funciona perfeitamente como uma obra independente, que constrói sua mitologia aos poucos através da trama, mas que jamais deixa de soar nostálgico, como quando traz alguém conjurando um feitiço conhecido ou revela algum elemento familiar da saga Harry Potter. De outra forma, o roteiro de Rowling (que parece tão confortável como roteirista quanto como escritora de romances) sabe posicionar de forma estratégica os desdobramentos das tramas e subtramas (através das quais também consegue conferir complexidade e verossimilhança aquele universo), de modo que além de desenvolverem o conflito principal, também conseguem delinear mistérios que devem ser retomados mais adiante – o que garante que o filme tenha seus méritos próprios e impede que pareça, na verdade, um grande prólogo para algo maior, grande erro de quase todos os filmes da Marvel Studios, por exemplo.

Responsável por alguns dos melhores capítulos dos longas de Potter, David Yates retoma a direção imprimindo sua típica fotografia sombria e dessaturada, que indica que a história de Newt já começa em tempos difíceis - algo amplamente alardeado pelas manchetes dos jornais que abrem a narrativa. Igualmente, o design de produção de Stuart Craig, veterano na série, remete às concepções de outrora, sem deixar de inovar e estabelecer que agora estamos em um lugar diferente da britânica e medieval Hogwarts. E destaque seja dado aos escritórios que se gerem sozinhos no MACUSA, assim como a sala de execução, cuja brancura impecável invoca justamente o contrário de esterilidade. Porém, são alguns dos novatos nesse mundo que merecem algum destaque, como James Newton Howard, que não deixa que as composições de sua trilha incidental caiam no óbvio, e através de um coral e arranjos que remetem diretamente aos temas de Esqueceram de Mim e Edward Mãos de Tesoura, invoca os mesmos valores de inocência e magia dessas obras e que tão bem cabem ao novo protagonista. Então não surpreende que outra estreante na saga seja justamente Collen Atwood, a experiente figurinista responsável pelo vestuário do icônico filme de Tim Burton. Aqui, além de conceber uma galeria de trajes elegantemente harmônicos entre si, também comenta a personalidade de cada personagem através de suas vestimentas. 

Newt, por exemplo, veste as cores mais básicas e as texturas menos elegantes (fios grossos e couro), denotando seu trato constante com criaturas selvagens e também a pureza de sua persona. Já Queenie se apresenta em um vestido rosa insinuante que, ao mesmo tempo em que casaria perfeitamente com uma femme fatale, já que a personagem tem mesmo alguns dons que seriam utilizados de forma cruel e traiçoeira por um arquétipo desses, também sugere a delicadeza e o bom coração da moça através de seus tons róseos mais leves. De outra forma, o sobretudo pesado e elegante de Graves possui pequenos filetes que abrem para o estofamento branco da peça, como se indicassem que, por baixo da carapuça fechada do auror, houvesse outros traços ainda encobertos, mas lutando para sair. 

Dentre tantas figuras, é preciso ressaltar o carisma do protagonista, que ganha de Eddie Redmayne uma performance paralelamente vivaz e tímida, com sua tendência a deixar o pescoço cair soando como uma defesa pessoal para não encarar as pessoas nos olhos, e sugerindo assim uma inocência apropriada ao herói - assim sendo, sua maleta, que comporta todo um pequeno mundo lá dentro, não deixa de ser o único universo em que Newt sente-se confortável. Já Katherine Waterston surge adequadamente dura e dona de um arco um tanto quanto comovente, assim como o Jacob de Dan Fogler, que ganha talvez o mais sensível dos conflitos, justamente por sua simplicidade – e é admirável notar o entendimento de Yates e Rowling de que, para além de vilões poderosos e complôs megalomaníacos, no final, são as resoluções pessoais daquelas figuras que realmente vão comover o espectador.

Mantendo também sua tendência a ancorar o mundo dos bruxos nesse que fica do lado de cá da tela, Rowling tece alegorias intrigantes. Por exemplo, concebe um poder sombrio que nasce quando uma característica natural e bonita de um ser humano é reprimida - especialmente através de instituições como a religião agindo pelo medo e o ódio da sociedade quando se trata de aceitar o diferente. Também é tristemente apropriado que venhamos a descobrir que os bruxos nos Estados Unidos são proibidos de se relacionarem com não-mágicos (os trouxas), levando em conta o histórico de segregação racial no país. Da mesma forma, não surpreende que os bruxos americanos sejam adeptos da pena de morte em seu código penal e que essa seja executada em uma cadeira.

Animais Fantásticos e Onde Habitam é, portanto, um revigorante retorno ao mundo mágico de Harry Potter, que além de manter todas as suas melhores características e virtudes, mostra que tem conteúdo e ideias novas o suficiente para manter sua própria saga. É verdade que possui alguns pequenos deslizes, como o segredo que tenta fazer sobre a natureza de certo personagem, ou o final um tanto quanto aberto demais sobre um temido vilão, mas tratam-se de escolhas conscientes e pontuais que são mais do que compensadas por uma trama plural recheada de momentos fantasiosos como a caçada ao Erupente no Central Park, e outros encantadoramente humanos, como o sensível plano que revela Jacob sob a chuva abraçando o ar, quando claramente esperava que houvesse alguém mais ali. E assim como havia feito com o plano final da saga do menino bruxo, Yates demonstra entender a essência desse universo com a imagem que escolhe para encerrar esse filme aqui.


NOTA: 9/10


Um comentário:

  1. Amei! a história é de uma sensibilidade comovente, muito bem construída em cima de um universo já existente

    ResponderExcluir