Depois de sete livros e oito
filmes de Harry Potter, já é sabido
que o talento da autora J.K. Rowling para a inventividade, assim como sua
capacidade de criar personagens carismáticos, só fica melhor quando esses são
colocados a favor de uma trama concebida como comentário acerca dos problemas
do mundo real. Assim, é reconfortante constatar que seu retorno à saga, agora
como roteirista, não se trata de uma empreitada mercenária, mas de uma obra
agradavelmente delicada e pessoal que consegue surpreendentemente remeter às
histórias anteriores, desenvolver uma trama própria e ainda instigar a
curiosidade quanto ao rumo que esse novo arco vai traçar nos próximos filmes –
sem jamais deixar de maravilhar com a criatividade desse universo.
Focado num jovem bruxo chamado
Newt Scamander (Eddie Redmayne), Animais
Fantásticos e Onde Habitam tem início quando esse ex-aluno de Hogwarts
chega à América desembarcando em Nova York, onde logo chama a atenção de uma
funcionária do MACUSA, o Congresso Mágico dos Estados Unidos. Portando uma mala
cheia de criaturas mágicas, que não demoram a escapar e causar grande alvoroço
na cidade, Newt acaba sob os cuidados de Tina (Katherine Waterston) e, além dela, junta-se também com a irmã desta, Queenie (Alison Sudol), e um
trouxa que acidentalmente se envolve com a trama toda, Jacob (Dan Fogler). Juntos, eles precisam recapturar os bichos o mais rápido possível, pois estranhos e violentos ataques passam a ser atribuídos aos animais de
Newt, que tem de provar sua inocência e achar o verdadeiro culpado antes de ser
preso pelo auror Percival Graves (Colin Farrell).
Como pode ser notado pela
sinopse, conceitos e nomes como trouxa, auror ou Hogwarts são partes
importantes da história, só que desta vez surgem naturalmente e não recebem
qualquer introdução. Desse modo, Animais
Fantásticos funciona perfeitamente como uma obra independente, que constrói
sua mitologia aos poucos através da trama, mas que jamais deixa de soar
nostálgico, como quando traz alguém conjurando um feitiço conhecido ou revela algum
elemento familiar da saga Harry Potter. De outra forma, o roteiro de Rowling (que parece tão
confortável como roteirista quanto como escritora de romances) sabe
posicionar de forma estratégica os desdobramentos das tramas e subtramas
(através das quais também consegue conferir complexidade e verossimilhança aquele
universo), de modo que além de desenvolverem o conflito principal, também
conseguem delinear mistérios que devem ser retomados mais adiante – o que garante
que o filme tenha seus méritos próprios e impede que pareça, na verdade, um
grande prólogo para algo maior, grande erro de quase todos os filmes da Marvel
Studios, por exemplo.
Responsável por alguns dos
melhores capítulos dos longas de Potter,
David Yates retoma a direção imprimindo sua típica fotografia sombria e
dessaturada, que indica que a história de Newt já começa em tempos difíceis - algo
amplamente alardeado pelas manchetes dos jornais que abrem a narrativa.
Igualmente, o design de produção de Stuart Craig, veterano na série, remete às
concepções de outrora, sem deixar de inovar e estabelecer que agora estamos em
um lugar diferente da britânica e medieval Hogwarts. E destaque seja dado aos escritórios que se gerem sozinhos no MACUSA, assim como a sala de execução, cuja brancura impecável invoca justamente o contrário de esterilidade. Porém, são alguns dos
novatos nesse mundo que merecem algum destaque, como James Newton Howard, que
não deixa que as composições de sua trilha incidental caiam no óbvio, e através
de um coral e arranjos que remetem diretamente aos temas de Esqueceram de Mim e Edward Mãos de Tesoura, invoca os mesmos valores de inocência e
magia dessas obras e que tão bem cabem ao novo protagonista. Então não
surpreende que outra estreante na saga seja justamente Collen Atwood, a
experiente figurinista responsável pelo vestuário do icônico filme de Tim
Burton. Aqui, além de conceber uma galeria de trajes elegantemente harmônicos
entre si, também comenta a personalidade de cada personagem através de suas
vestimentas.
Newt, por exemplo, veste as cores mais básicas e as texturas menos elegantes (fios grossos e couro), denotando seu trato constante com criaturas selvagens e também a pureza de sua persona. Já Queenie se apresenta em um vestido rosa insinuante que, ao mesmo tempo em que casaria perfeitamente com uma femme fatale, já que a personagem tem mesmo alguns dons que seriam utilizados de forma cruel e traiçoeira por um arquétipo desses, também sugere a delicadeza e o bom coração da moça através de seus tons róseos mais leves. De outra forma, o sobretudo pesado e elegante de Graves possui pequenos filetes que abrem para o estofamento branco da peça, como se indicassem que, por baixo da carapuça fechada do auror, houvesse outros traços ainda encobertos, mas lutando para sair.
Newt, por exemplo, veste as cores mais básicas e as texturas menos elegantes (fios grossos e couro), denotando seu trato constante com criaturas selvagens e também a pureza de sua persona. Já Queenie se apresenta em um vestido rosa insinuante que, ao mesmo tempo em que casaria perfeitamente com uma femme fatale, já que a personagem tem mesmo alguns dons que seriam utilizados de forma cruel e traiçoeira por um arquétipo desses, também sugere a delicadeza e o bom coração da moça através de seus tons róseos mais leves. De outra forma, o sobretudo pesado e elegante de Graves possui pequenos filetes que abrem para o estofamento branco da peça, como se indicassem que, por baixo da carapuça fechada do auror, houvesse outros traços ainda encobertos, mas lutando para sair.
Dentre tantas figuras, é preciso ressaltar o
carisma do protagonista, que ganha de Eddie Redmayne uma performance
paralelamente vivaz e tímida, com sua tendência a deixar o pescoço cair soando
como uma defesa pessoal para não encarar as pessoas nos olhos, e sugerindo
assim uma inocência apropriada ao herói - assim sendo, sua maleta, que comporta todo um pequeno mundo lá dentro, não deixa de ser o único universo em que Newt sente-se confortável. Já Katherine Waterston surge
adequadamente dura e dona de um arco um tanto quanto comovente, assim como o Jacob
de Dan Fogler, que ganha talvez o mais sensível dos conflitos, justamente por
sua simplicidade – e é admirável notar o entendimento de Yates e Rowling de
que, para além de vilões poderosos e complôs megalomaníacos, no final, são as
resoluções pessoais daquelas figuras que realmente vão comover o espectador.
Mantendo também sua tendência a
ancorar o mundo dos bruxos nesse que fica do lado de cá da tela, Rowling tece
alegorias intrigantes. Por exemplo, concebe um poder sombrio que nasce
quando uma característica natural e bonita de um ser humano é reprimida - especialmente através de instituições como a religião agindo pelo medo e o ódio da sociedade quando se trata de aceitar o diferente. Também é tristemente apropriado que venhamos a descobrir que
os bruxos nos Estados Unidos são proibidos de se relacionarem com não-mágicos (os trouxas), levando em conta o histórico de segregação racial no país. Da mesma forma, não surpreende que os bruxos americanos sejam adeptos da pena de morte em seu código penal e que essa seja executada em
uma cadeira.
Animais Fantásticos e Onde Habitam é, portanto, um revigorante
retorno ao mundo mágico de Harry Potter,
que além de manter todas as suas melhores características e virtudes, mostra
que tem conteúdo e ideias novas o suficiente para manter sua própria saga. É
verdade que possui alguns pequenos deslizes, como o segredo que tenta fazer sobre a
natureza de certo personagem, ou o final um tanto quanto aberto demais sobre um
temido vilão, mas tratam-se de escolhas conscientes e pontuais que são mais do que
compensadas por uma trama plural recheada de momentos fantasiosos como a caçada ao Erupente no Central Park,
e outros encantadoramente humanos, como o sensível plano que revela Jacob sob a
chuva abraçando o ar, quando claramente esperava que houvesse alguém mais ali.
E assim como havia feito com o plano final da saga do menino bruxo, Yates
demonstra entender a essência desse universo com a imagem que escolhe para
encerrar esse filme aqui.
NOTA: 9/10
Amei! a história é de uma sensibilidade comovente, muito bem construída em cima de um universo já existente
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