quarta-feira, 8 de março de 2017

KONG: A ILHA DA CAVEIRA


O conceito de uma ilha desconhecida que serve de lar para um gorila gigante e outras criaturas pré-históricas é, no mínimo, implausível, para não dizer absurdo. Felizmente, Kong: A Ilha da Caveira entende isso. Se o King Kong original de 1933 e a espetacular refilmagem dirigida por Peter Jackson em 2005 conseguiam imergir nesse universo ao usar da atmosfera dos anos 1930, que possuía o encanto com a exploração de um mundo ainda em descobrimento, a versão de 1976 fracassava justamente por tentar vender essa ideia fantasiosa ambientando-a no contexto pós-Vietnã e contemporâneo à Guerra Fria. Portanto, a princípio parece um erro que essa nova empreitada escolha deliberadamente se passar outra vez na década de 1970. Porém, quando em dado momento um personagem diz para um dos soldados estadunidenses que escoltam a expedição “às vezes não temos nenhum inimigo, até que a gente procure por um”, o filme começa a surpreender por, ao contrário do que seria esperado, conseguir usar do ceticismo político da época para validar as suas ideias implausíveis e absurdas.


Pra começar A Ilha da Caveira repagina os típicos personagens da versão original, substituindo, por exemplo, o cineasta Carl Denham pelo cientista Bill Randa (John Goodman), a atriz Ann Darrow pela fotógrafa Mason Weaver (Brie Larson), o roteirista Jack Driscoll pelo especialista em sobrevivência James Conrad (Tom Hiddleston) e o Capitão Englehorn pelo Coronel Preston Packard (Samuel L. Jackson). A partir daí funciona como um remake: Randa é obcecado por explorar a tal ilha do título, e convence todo um grupo de pessoas a acompanha-lo mesmo sabendo dos perigos que ela pode abrigar. Entre elas está o Coronel Packard, líder de um pelotão aéreo de helicópteros que aceita prontamente a missão de escoltar os cientistas, pois sente que sua carreira perdeu o propósito depois que os Estados Unidos “abandonaram” a Guerra do Vietnã - já que ele se recusa a admitir que eles perderam. Entretanto, depois que a expedição é atacada por um gorila do tamanho de um prédio, os sobreviventes se perdem uns dos outros, tendo de encontrar um modo de sair dali antes que lagartos gigantescos e outros animais selvagens os devorem.

Assumidamente caricato e histriônico desde os seus instantes iniciais, quando investe em planos inclinados e angulosos para sugerir a grotesca concepção de Kong contra a luz de um pôr do sol impossivelmente amarelo, o filme ganha de Jordan Vogt-Roberts uma direção segura e cheia de identidade. O que é uma boa surpresa, pois o cineasta vem de um cinema de baixo orçamento (ele dirigiu o ótimo Os Reis do Verão), e o que costuma acontecer com os primeiros blockbusters desses “novatos” é, ou uma overdose de CGI em uma confusão visual que não se entende nada, ou uma falta de segurança que resulta em filmes certinhos demais, como aconteceu ao entediante Godzilla de Gareth Edwards, por exemplo. Aqui não; Roberts parece ter anos de experiência com criações de computação gráfica e tomadas digitalizadas, pois consegue não só se fazer entender, estabelecendo com facilidade quem está onde em relação ao que, tornando as lutas grandiosas do macacão espetáculos à parte, como também é hábil ao criar planos memoráveis, como aquele que acompanha vários helicópteros se aproximando de uma tempestade, ou outro que, de dentro da cabine de uma das aeronaves, descortina as dimensões do personagem título enquanto ele levanta o veículo no ar com uma das mãos – e o raccord criado pela montagem ao final desse último take é hilário.

O que denuncia outro mérito da produção, já que não é raro que mesmo cineastas experientes esqueçam de pensar seus filmes como um todo, com planos criativos e belos, sim, mas que também se liguem com os outros momentos da narrativa - vide o incurável Michael Bay, que não consegue nem mesmo fazer sentido dentro de uma única cena. Aqui, Roberts deixa claro que Kong está sob seu controle, e não se poupa de subtrair passagens que ficam melhores se subentendidas pelo espectador, preferindo investir o tempo que seria desperdiçado nelas em montagens dinâmicas ao som de típicas canções da época. O resultado é um ritmo frenético que, ao não deixar tempo para questionamentos, ajuda o filme a ser comprado com mais facilidade – e é divertido como o projeto se mostra cínico na medida certa quando os próprios personagens parecem querer frear um pouco as coisas, frequentemente perguntando se “ninguém vai falar sobre o que acabou de acontecer!?”.

O bom humor do projeto, aliás, é outro de seus pontos fortes. E se poderíamos esperar que Samuel L. Jackson como um militar casca grossa obcecado pela vingança contra um gorila gigante seria a fonte principal dos momentos cômicos, ela na verdade surge na figura do náufrago vivido pelo sempre ótimo John C. Reilly, Hank Marlow. Aliás, mais do que um mero obstáculo no caminho dos heróis, a concepção de Packard revela ter um objetivo bem diferente de fazer rir. O personagem de Jackson e seu patriotismo praticamente arrastam a realidade política do mundo nos anos 1970 para dentro da Ilha da Caveira, se fazendo um reduto de todas as frustrações dos Estados Unidos, que depois de vencer a Segunda Guerra Mundial, enfrentou a rechaça do mundo pelos ataques à Hiroshima e Nagasaki, o assassinato de um presidente em público, o começo da Guerra Fria e a vergonhosa derrota no Vietnã – e que ainda descobriria que seu atual presidente, Richard Nixon, que surge como símbolo de esperança em um bonequinho colocado sobre o painel de controle de um dos helicópteros, era a cabeça por trás de um dos maiores esquemas de corrupção da história do país.

E incrivelmente, todo esse contexto político ajuda Kong: A Ilha da Caveira a sobreviver. Longe de tentar outra vez encantar o público com a aura mágica de mistério em torno do desconhecido, o filme constrói aquela aventura não só como um escapismo para o espectador, mas principalmente como uma catarse para os seus personagens, que encontram nessa jornada a chance de assumirem o controle em um tempo sombrio que tudo parecia estar nas mãos de políticos e burocratas de altos cargos que defendiam apenas os próprios interesses. Portanto, quando o grupo se depara com uma espécie de búfalo gigante, ou um bando de pássaros carnívoros, sua expressão de encantamento é algo com que podemos facilmente nos identificar, ainda que, assim como eles, saibamos que lá fora o mundo é um lugar tão perigoso e selvagem quanto aquele, apenas habitado por monstros diferentes – e desse ponto de vista quase metalinguístico, que a ilha seja perpetuamente isolada do mundo por uma tempestade, serve muito bem a esse conceito de exceção que a sala de cinema oferece.

E, não fosse o suficiente, a imersão é garantida pelos impressionantes efeitos visuais e o carisma de atores como Tom Hiddleston, Thomas Mann e Brie Larson, que, aliás, tem a chance de interpretar pela primeira vez uma heroína que não vira o par ou interesse romântico nem de Kong e nem de nenhum humano. O gorila, entretanto, é bem menos expressivo que aquele da versão de Peter Jackson, que possuía um semblante e personalidade singulares, e a causa provavelmente é que ele é vivido através da técnica de captura de performance por Toby Kebbell, que apesar de normalmente se sair bem na função de interpretar um personagem digital (ele também o fez em Warcraft e Planeta dos Macacos: O Confronto), é inegavelmente um ator monocórdio e limitado. Ainda bem, a complexidade emocional de Kong não é o motor do projeto, como era na refilmagem de 2005, e a produção funciona naquilo que propõe: diversão. Apesar, claro, de tropeçar de vez em quando, como ao inserir a tribo de nativos da ilha apenas porque eles sempre aparecem em todas as versões, ou quando dá a entender involuntariamente que dois personagens tem uma relação familiar, o que acaba sendo desmentido mais adiante, e finalmente, por, apesar de tudo, não saber utilizar muito bem os protagonistas. E a impressão é que os coadjuvantes são imensamente mais importantes do que Mason e James, e poderiam muito bem passar sem eles. 

Entretanto, a obra consegue revisitar uma das histórias mais desgastadas por Hollywood (tanto que é um dos símbolos de seu sucesso) e trazer frescor aos seus elementos com uma abordagem progressivamente mais insana conforme avança para o desfecho. Dono de uma identidade ímpar em relação às outras refilmagens, Kong: A Ilha da Caveira pode não possuir a profundidade dramática do filme de 2005, mas tampouco se deixa depender disso; se seus personagens são unidimensionais, isso é parte do seu charme, e note como os atores se esforçam para soarem caricatos, e combinam essa superficialidade com as cafonices e exageros de Roberts, típicos de produções baratas do sub-gênero Filmes de Monstro. Apesar disso, através do bom humor e cinismo, o longa-metragem reconta a aventura com uma técnica segura e irrepreensível.



NOTA: 9/10


P.S.: há uma importante cena pós-créditos.



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