quarta-feira, 29 de março de 2017

FRAGMENTADO


M. Night Shyamalan é um realizador autoral, sem dúvidas. Além disso, é dono de uma criatividade ímpar, e tem o talento de tornar conceitos estranhos em histórias instigantes. Basta notar o quão bem funcionavam alguns de seus primeiros projetos, como O Sexto Sentido, Corpo Fechado e Sinais. Entretanto, depois desses, é notória a queda vertiginosa na qualidade de seus esforços; do longo e aborrecido A Vila, passou para A Dama Na Água, que tinha uma ideia maravilhosa, mas uma execução equivocada. E nem é bom citar a fase que abarca os esquecíveis Fim dos Tempos, O Último Mestre do Ar e Depois da Terra. Melhor seria repaginá-lo desde A Visita, que apesar de ser extremamente falho em sua linguagem, funcionava como suspense. Até que chegamos aqui em Fragmentado, que não, ainda não é a grande volta de Shyamalan, como estão anunciando por aí. Longe disso, inclusive, mas com certeza a nova empreitada é um filme menos reprovável, apesar de seus inúmeros tropeços.


Na verdade o problema do cineasta é claro, já que se tornou vítima da autoindulgência que adotou com o passar dos anos. O sucesso e a validação de suas técnicas obviamente fizeram de M. Night um diretor confiante e um roteirista arrogante. Ele parece pensar, por exemplo, que por se tratar de um filme seu, as pessoas já esperam que aconteça uma reviravolta. Ou pior, ele tem a certeza presunçosa de que o público estará tenso a cada novo corte enquanto aguarda ser surpreendido. Note, por exemplo, como não constrói nenhuma ameaça real para que temamos pelas protagonistas do filme, o trio de meninas sequestradas por Kevin (James McAvoy), um homem com distúrbio de múltiplas personalidades. E ainda por cima, logo depois da abdução em si, estabelece que Dennis, Patricia, Hedwig ou qualquer que seja a personalidade assumida pelo captor, não podem machucar as garotas, já que elas serão oferecidas como banquete para A Fera, uma personalidade de Kevin que sugere ser algo bestial. Entretanto, o próprio filme trata essa ameaça como algo risível o tempo inteiro, implausível e absurdo até.

Ainda assim, o cineasta nos pede para que torçamos por elas, criando cenas que dependem da tensão ou do suspense, mas que se contradizem nesse propósito, como quando coloca Patricia para ameaçar as meninas com uma faca, o que torna a situação bizarra, mas não aterrorizante, pois foi essa mesma personalidade que, minutos antes, havia proibido que machucassem as jovens. Além do mais, nem Claire (Haley Lu Richardson), Marcia (Jessica Sula) ou a “heroína”, Casey (Anya Taylor-Joy), são desenvolvidas ao longo do projeto a ponto de que simpatizemos com elas. Claro, eventualmente acabamos ficando do lado das três, mas isso porque reconhecemos racionalmente que a situação em que estão é horrível, não por méritos do roteiro. Não fosse o suficiente, Shyamalan sugere ter se tornado tão prepotente que ainda deixa passar erros juvenis, e já na primeira cena é possível ver claramente a equipe de filmagem refletida na lataria de um carro, e mais tarde, a sombra de sua câmera incide de forma gritante sobre uma das atrizes que corre de frente para a lente em um longo corredor.

Entretanto, é preciso reconhecer que o realizador ainda consegue criar momentos interessantes, e todos aquele que enfocam diálogos entre alguma das personalidades de Kevin e Casey ou com a sua psicóloga, a Doutora Karen Fletcher (Betty Buckley), são imersivos, e isso é devido a sua abordagem, em parte, já que aposta em angustiantes closes de baixíssima profundidade que especulam cada traço da performance de seus atores. Mas ainda assim, a maioria desses méritos, claro, é de James McAvoy, que consegue com pequenas mudanças de expressão nos fazer entender rapidamente qual pessoa está assumindo o corpo em tal cena. Apesar de às vezes ter de apostar em caricaturas para demarcar bem as mudanças, o ator reconhece as nuances dos vários “personagens” e consegue, por exemplo, transmitir a exaustão de Dennis por causa de seu TOC, quando suspira ao reconhecer um padrão que tem de seguir, ou noutro instante insinuar ingenuidade de Hedwig ao olhar cabisbaixo para os pés por se decepcionar com algo.

E são sequências como essas, quando raramente o filme se beneficia da lentidão narrativa para explorar o protagonista (já que Shyamalan parece pensar que todos os seus planos são belos demais para serem podados na montagem), que tornam Fragmentado uma experiência um pouco melhor – e é flagrante que, tirando isso, eles não dependam em nada do diretor para funcionar. Pois, quando o cineasta entra em cena (literalmente em certo momento, como de costume), acontecem coisas como a solução de Fletcher durante o clímax, que é completamente estúpida – sem revelar muito, mas se ela tinha um “antídoto” para a sua situação, por que não o usou ao invés de deixá-lo para alguém que ela nem sabia que existia? Além disso, o cineasta tenta sensibilizar o espectador através de flashbacks sobre o passado de Casey, que, na melhor das hipóteses, irritam por constantemente interromperem o ritmo do longa, e que na pior delas soam ofensivos por usarem de maneira tão maniqueísta um tema como aquele. Isso sem contar a confiança de M. Night ao apostar o âmago da sua reviravolta em uma referência, excluindo assim boa parte dos espectadores que não a tem em seu repertório – ainda que, admito, para aqueles que a entenderem é muito excitante. Mas também, nem sei como um plot twist poderia ser surpreendente se já é aguardado – revelador seria se Shyamalan parasse de se preocupar tanto em chocar o espectador e começasse a dar atenção a toda a parte de seus filmes que vem antes da reviravolta.



NOTA: 6/10


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