Simultaneamente um olá e um
adeus, um reencontro e uma despedida, Logan
reapresenta o personagem título vários anos mais velho, com os olhos injetados,
cicatrizes pelo corpo, uma garra que emperra para sair e necessitando até mesmo
de óculos para poder ler. Uma decadência física que reflete perfeitamente a de
sua alma – antes imortal, Wolverine é agora um homem que já abraçou o próprio
desfecho. Mais do que isso, ele anseia por esse encerramento. E justamente ao
contrapor esse tom de finitude de algumas conhecidas figuras com o frescor juvenil
de outras que são novatas, é que o filme deixa de ser apenas mais uma aventura
solo do famoso mutante vivido por Hugh Jackman, e mergulha em um melancólico (e
absurdamente violento) estudo de personagem que ecoa temas mais universais: juventudes
e velhices, começos e fins.
O que, provavelmente, era a
abordagem que faltava ao personagem. Afinal, a franquia X-Men sempre se mostrou preocupada em estabelecer paralelos com a
nossa sociedade, e talvez por isso que os filmes focados apenas em Logan, X-Men Origins: Wolverine e Wolverine: Imortal, tinham dificuldades
em alcançar a profundidade e eficiência dramáticas dos exemplares
protagonizados por toda a equipe do professor Charles Xavier. Se em grupo os mutantes podiam
servir de avatares para qualquer minoria tratada de forma desigual na nossa
realidade, sozinho, Wolverine era apenas um pária carrancudo. É essa diferença
que Logan (finalmente) entende,
trabalhando para conferir significado ao arco desse homem que já cansou de
tentar fazer a diferença - e em tempos como o nosso, quem não? Porém, a reflexão
em que somos imersos aqui é: se a longa jornada de uma vida nos torna céticos
quanto às pessoas, pode ela também nos garantir conservar alguma empatia para lutar
por elas?
Em um mundo onde não encontra
mais seus iguais (os mutantes) e em um tempo em que só pode acompanhar a
decadência dos que ainda estão vivos, o antigo Wolverine (Jackman) trabalha como
motorista de limusine em uma cidadezinha árida perto da fronteira com o México
(e em pleno mandato de Donald Trump nos EUA, isso não é mero detalhe), juntando
dinheiro para comprar um barco onde ele e Xavier (Patrick Stewart) - agora um
idoso senil cujas convulsões podem ser letais para as pessoas ao seu redor -
possam passar o resto dos seus dias longe de perseguições. Pois há anos não
nascem mais mutantes pelo globo, e os poucos que sobraram vivem na clandestinidade
como eles. É nesse contexto que Logan se vê responsável pela pequena Laura
(Dafne Keen), uma menininha com dons e temperamento parecidos com o seu, e que
é caçada pelo mercenário Pierce (Boyd Holbrook) e seu pequeno exército.
Ambientado em 2029, o longa estabelece
um futuro que, apesar de possuir caminhões automatizados que se dirigem
sozinhos pelas autoestradas e colheitadeiras gigantescas que substituem o
trabalho braçal de centenas de homens em enormes plantações, denuncia mais do
que nunca um tempo dominado pelo capital e longe de se preocupar com as
singularidades humanas. Assim, quando um locutor no rádio se pergunta
retoricamente “por que ainda estamos falando de mutantes?”, a proposta de uma
realidade em que humanos com poderes especiais não são mais algo que valha a
pena discutir não soa tão absurda em um sistema em que, basicamente, impera o
coronelismo digno das cidadezinhas do velho oeste, com os grandes donos de
terra aqui sendo substituídos pelas corporações do setor privado – e
convenhamos, com homens como Trump e Michel Temer no poder, não parece exagero imaginar
que voltaremos ao tempo dos saloons, dos revólveres e da política do olho por
olho e dente por dente, e isso muito antes de 2029.
Ciente e, mais do que isso,
entregue a esse conceito de western, é
apropriado então que Logan não só
seja ambientado nas típicas paisagens do gênero (o deserto, as pradarias, as montanhas),
como também traga um paralelo entre o arco de seu protagonista e aquele do (também
anti-)herói do filme Os Brutos Também
Amam, que surge referenciado aqui. E se no clássico de 1953, Shane (protagonista
vivido por Alan Ladd) era um homem cujo passado e natureza, calcados na
violência, lhe perseguiam e se tornavam a sua única arma para garantir um
futuro pacífico para aqueles com quem se importava, aqui Logan também descobre
que a vida de conflitos sangrentos e trágicos não o abandonou na velhice,
quando se vê como “tutor” de Laura – e notar a sua decepção ao constatar que os
métodos que é impelido a usar para se defender são contraditórios em relação à maturidade
que os muitos anos de vivência lhe garantiram como ser-humano, em retrospecto,
é ainda mais tocante por denunciar sua frustração com aquilo que ele mesmo não
consegue deixar de ser: uma exemplar ultrapassado, uma criatura oriunda à outra
época e que, justamente por entender isso, não se vê como parte do futuro (o
que justifica de forma sutil e delicada
a sua entrega à autodestruição).
E é aqui que a violência gráfica
do projeto se torna parte vital do seu funcionamento. Se certos filmes costumam
usar mutilações e dezenas de litros de sangue apenas por fetichismo e chamariz
para um público mais supérfluo, Logan
emprega o grafismo garantido pela classificação indicativa de 18 anos para
mostrar a que grau de violência o seu protagonista foi e continua sendo exposto
durante toda a vida. E é ao (enfim) confrontar seu público com as consequências
grotescas de uma luta entre pessoas de carne e osso e um homem com garras de
metal indestrutível, que o filme consegue ilustrar o conflito interno de seu protagonista,
preso entre aquilo que foi naturalizado a ser, um agente da brutalidade e
violência, e aquilo que seu intelecto e emocional já amadurecidos desejariam
que fosse: um diplomata que evita confrontos por saber do seu potencial para a
destruição – e note como em mais de um momento Wolverine tenta primeiro
dialogar com seus agressores, se mostrando decepcionado ao ter de engajar-se em
uma luta. Aliás, isso acaba também redimensionando sua relação com Laura, que
sob essa análise acaba soando mais melancólica, já que seu viés paternal denota
uma vontade dele de protegê-la de ser coagida ao mesmo tipo de vivência brutal,
ainda que saiba que a menina é capaz de se defender tão bem quanto.
Da mesma forma, sua dedicação a
Xavier também ganha outro ângulo; sendo o professor a sua figura paterna, e
ainda um exemplo de pessoa pacífica, soa natural o ceticismo de Logan quando se
pensa que tanto Charles quanto ele encontram-se na mesma situação, tendo
encontrado um mesmo fim independente dos seus métodos. O que torna a pequena
Laura uma mistura interessante entre os dois, já que demostra potencial para
ambos os lados – e, novamente, em retrospecto, soa tocante tanto a identificação que ela gera em Xavier, e o esforço dele para acolhe-la, quanto aquela que se
firma entre a jovem mutante e o protagonista, que se esforça para impedir
que ela se transfigure nele mesmo. Assim, além de divertido, o momento em que Logan
a impede de ferir o atendente de uma loja também surge curioso, principalmente porque sua reprimenda passa a soar como a de um pai que diz para os filhos algo como “estudem,
pra terem um futuro melhor que o meu”.
Dirigido por James Mangold (o mesmo de Wolverine: Imortal), o filme é eficiente
também ao permear essa jornada tanto com cenas de ação pertinentes, como com
diálogos surpreendentemente sensíveis - e gosto particularmente do jantar em
que dividem com uma família comum, e a confissão que Xavier faz em certo
instante crucial. Momentos que ganham força, claro, muito devido à performance
de Hugh Jackman, que ao invés de se entregar a uma interpretação no piloto
automático de um personagem que já está careca (ou melhor, barbudo) de viver,
já surge desde os segundos iniciais, quando seus pés aparecem em quadro tortos
e cambaleantes, disposto a construir um Wolverine ainda mais soturno e
animalesco do que aquele que conhecíamos – e aqui ele não se poupa de rosnados
e urros para compor a ferocidade do mutante. Assim, quando Logan se encerra apropriadamente ao som de The Man Comes Arround, de Johnny Cash, logo após o (perfeito) plano
final do longa-metragem, é impossível deixar de se emocionar com o brilhantismo
dramático desse fechamento, que não só pontua perfeitamente a jornada do seu herói,
como também projeta o futuro mais otimista em que ele quer acreditar: e sendo
Logan aqui uma figura que carrega questionamentos universais, suas esperanças
tornam-se as nossas, e assim, o filme se faz também tão contundente quanto os
seus irmãos da franquia X-Men. Em última análise, trata-se de um western moderno que reflete como, apesar de tão evoluídos e maduros enquanto sociedade, ainda nos entregamos facilmente à violência e a segregação de nossos iguais... e que, por acaso, também é um "filme de super-herói".
NOTA: 10/10
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