quinta-feira, 2 de março de 2017

LOGAN


Simultaneamente um olá e um adeus, um reencontro e uma despedida, Logan reapresenta o personagem título vários anos mais velho, com os olhos injetados, cicatrizes pelo corpo, uma garra que emperra para sair e necessitando até mesmo de óculos para poder ler. Uma decadência física que reflete perfeitamente a de sua alma – antes imortal, Wolverine é agora um homem que já abraçou o próprio desfecho. Mais do que isso, ele anseia por esse encerramento. E justamente ao contrapor esse tom de finitude de algumas conhecidas figuras com o frescor juvenil de outras que são novatas, é que o filme deixa de ser apenas mais uma aventura solo do famoso mutante vivido por Hugh Jackman, e mergulha em um melancólico (e absurdamente violento) estudo de personagem que ecoa temas mais universais: juventudes e velhices, começos e fins.


O que, provavelmente, era a abordagem que faltava ao personagem. Afinal, a franquia X-Men sempre se mostrou preocupada em estabelecer paralelos com a nossa sociedade, e talvez por isso que os filmes focados apenas em Logan, X-Men Origins: Wolverine e Wolverine: Imortal, tinham dificuldades em alcançar a profundidade e eficiência dramáticas dos exemplares protagonizados por toda a equipe do professor Charles Xavier. Se em grupo os mutantes podiam servir de avatares para qualquer minoria tratada de forma desigual na nossa realidade, sozinho, Wolverine era apenas um pária carrancudo. É essa diferença que Logan (finalmente) entende, trabalhando para conferir significado ao arco desse homem que já cansou de tentar fazer a diferença - e em tempos como o nosso, quem não? Porém, a reflexão em que somos imersos aqui é: se a longa jornada de uma vida nos torna céticos quanto às pessoas, pode ela também nos garantir conservar alguma empatia para lutar por elas?

Em um mundo onde não encontra mais seus iguais (os mutantes) e em um tempo em que só pode acompanhar a decadência dos que ainda estão vivos, o antigo Wolverine (Jackman) trabalha como motorista de limusine em uma cidadezinha árida perto da fronteira com o México (e em pleno mandato de Donald Trump nos EUA, isso não é mero detalhe), juntando dinheiro para comprar um barco onde ele e Xavier (Patrick Stewart) - agora um idoso senil cujas convulsões podem ser letais para as pessoas ao seu redor - possam passar o resto dos seus dias longe de perseguições. Pois há anos não nascem mais mutantes pelo globo, e os poucos que sobraram vivem na clandestinidade como eles. É nesse contexto que Logan se vê responsável pela pequena Laura (Dafne Keen), uma menininha com dons e temperamento parecidos com o seu, e que é caçada pelo mercenário Pierce (Boyd Holbrook) e seu pequeno exército.

Ambientado em 2029, o longa estabelece um futuro que, apesar de possuir caminhões automatizados que se dirigem sozinhos pelas autoestradas e colheitadeiras gigantescas que substituem o trabalho braçal de centenas de homens em enormes plantações, denuncia mais do que nunca um tempo dominado pelo capital e longe de se preocupar com as singularidades humanas. Assim, quando um locutor no rádio se pergunta retoricamente “por que ainda estamos falando de mutantes?”, a proposta de uma realidade em que humanos com poderes especiais não são mais algo que valha a pena discutir não soa tão absurda em um sistema em que, basicamente, impera o coronelismo digno das cidadezinhas do velho oeste, com os grandes donos de terra aqui sendo substituídos pelas corporações do setor privado – e convenhamos, com homens como Trump e Michel Temer no poder, não parece exagero imaginar que voltaremos ao tempo dos saloons, dos revólveres e da política do olho por olho e dente por dente, e isso muito antes de 2029.

Ciente e, mais do que isso, entregue a esse conceito de western, é apropriado então que Logan não só seja ambientado nas típicas paisagens do gênero (o deserto, as pradarias, as montanhas), como também traga um paralelo entre o arco de seu protagonista e aquele do (também anti-)herói do filme Os Brutos Também Amam, que surge referenciado aqui. E se no clássico de 1953, Shane (protagonista vivido por Alan Ladd) era um homem cujo passado e natureza, calcados na violência, lhe perseguiam e se tornavam a sua única arma para garantir um futuro pacífico para aqueles com quem se importava, aqui Logan também descobre que a vida de conflitos sangrentos e trágicos não o abandonou na velhice, quando se vê como “tutor” de Laura – e notar a sua decepção ao constatar que os métodos que é impelido a usar para se defender são contraditórios em relação à maturidade que os muitos anos de vivência lhe garantiram como ser-humano, em retrospecto, é ainda mais tocante por denunciar sua frustração com aquilo que ele mesmo não consegue deixar de ser: uma exemplar ultrapassado, uma criatura oriunda à outra época e que, justamente por entender isso, não se vê como parte do futuro (o que justifica de  forma sutil e delicada a sua entrega à autodestruição).

E é aqui que a violência gráfica do projeto se torna parte vital do seu funcionamento. Se certos filmes costumam usar mutilações e dezenas de litros de sangue apenas por fetichismo e chamariz para um público mais supérfluo, Logan emprega o grafismo garantido pela classificação indicativa de 18 anos para mostrar a que grau de violência o seu protagonista foi e continua sendo exposto durante toda a vida. E é ao (enfim) confrontar seu público com as consequências grotescas de uma luta entre pessoas de carne e osso e um homem com garras de metal indestrutível, que o filme consegue ilustrar o conflito interno de seu protagonista, preso entre aquilo que foi naturalizado a ser, um agente da brutalidade e violência, e aquilo que seu intelecto e emocional já amadurecidos desejariam que fosse: um diplomata que evita confrontos por saber do seu potencial para a destruição – e note como em mais de um momento Wolverine tenta primeiro dialogar com seus agressores, se mostrando decepcionado ao ter de engajar-se em uma luta. Aliás, isso acaba também redimensionando sua relação com Laura, que sob essa análise acaba soando mais melancólica, já que seu viés paternal denota uma vontade dele de protegê-la de ser coagida ao mesmo tipo de vivência brutal, ainda que saiba que a menina é capaz de se defender tão bem quanto.

Da mesma forma, sua dedicação a Xavier também ganha outro ângulo; sendo o professor a sua figura paterna, e ainda um exemplo de pessoa pacífica, soa natural o ceticismo de Logan quando se pensa que tanto Charles quanto ele encontram-se na mesma situação, tendo encontrado um mesmo fim independente dos seus métodos. O que torna a pequena Laura uma mistura interessante entre os dois, já que demostra potencial para ambos os lados – e, novamente, em retrospecto, soa tocante tanto a identificação que ela gera em Xavier, e o esforço dele para acolhe-la, quanto aquela que se firma entre a jovem mutante e o protagonista, que se esforça para impedir que ela se transfigure nele mesmo. Assim, além de divertido, o momento em que Logan a impede de ferir o atendente de uma loja também surge curioso, principalmente porque sua reprimenda passa a soar como a de um pai que diz para os filhos algo como “estudem, pra terem um futuro melhor que o meu”.

Dirigido por James Mangold (o mesmo de Wolverine: Imortal), o filme é eficiente também ao permear essa jornada tanto com cenas de ação pertinentes, como com diálogos surpreendentemente sensíveis - e gosto particularmente do jantar em que dividem com uma família comum, e a confissão que Xavier faz em certo instante crucial. Momentos que ganham força, claro, muito devido à performance de Hugh Jackman, que ao invés de se entregar a uma interpretação no piloto automático de um personagem que já está careca (ou melhor, barbudo) de viver, já surge desde os segundos iniciais, quando seus pés aparecem em quadro tortos e cambaleantes, disposto a construir um Wolverine ainda mais soturno e animalesco do que aquele que conhecíamos – e aqui ele não se poupa de rosnados e urros para compor a ferocidade do mutante. Assim, quando Logan se encerra apropriadamente ao som de The Man Comes Arround, de Johnny Cash, logo após o (perfeito) plano final do longa-metragem, é impossível deixar de se emocionar com o brilhantismo dramático desse fechamento, que não só pontua perfeitamente a jornada do seu herói, como também projeta o futuro mais otimista em que ele quer acreditar: e sendo Logan aqui uma figura que carrega questionamentos universais, suas esperanças tornam-se as nossas, e assim, o filme se faz também tão contundente quanto os seus irmãos da franquia X-Men. Em última análise, trata-se de um western moderno que reflete como, apesar de tão evoluídos e maduros enquanto sociedade, ainda nos entregamos facilmente à violência e a segregação de nossos iguais... e que, por acaso, também é um "filme de super-herói".



NOTA: 10/10     


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