quarta-feira, 29 de março de 2017

A VIGILANTE DO AMANHÃ: GHOST IN THE SHELL


Ah, a ficção científica! Os melhores exemplares desse gênero tão fértil costumam ser aqueles que, através de seus conceitos inventivos, normalmente futuristas e tecnológicos, discutem questões muito humanas e próximas da nossa própria realidade. É o que mantém, por exemplo, 2001: Uma Odisseia no Espaço um filme atemporal e instigante, pois não importa que esteja obsoleta ou equivocada a sua visão sobre um futuro que, para nós hoje, é passado, já que os temas que carrega são universais e não só suportam, como inclusive abraçam a mudança dos tempos. Mas não precisamos ir até 1968 para constatar isso, basta perceber que, eventualmente, o excelente seriado pseudofuturista Black Mirror vai também soar ultrapassado, mas duvido que seus tópicos envelheçam com a mesma rapidez. O que me leva, enfim, a A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell, que, longe de carregar a profundidade filosófica das obras acima ou de aspirar a sua relevância, ainda assim se revela interessante justamente por conseguir se equilibrar entre a tarefa de entreter (o que não deixa de ser um aspecto a ser analisado filosoficamente, mesmo que seja extra-filme) e aquela de suscitar reflexões mais diretas sobre a nossa atualidade.


Baseado no anime de 1995, O Fantasma do Futuro, que por sua vez é inspirado pelo mangá de Masamune Shirow, A vigilante do Amanhã torna impossível não pontuar a sua análise com comentários sobre a animação original, pois realmente é muito mais uma refilmagem dessa do que uma nova visão sobre as histórias de Shirow. Partindo praticamente da mesma cena, o longa aqui também conta a história de Major (Scarlett Johansson), uma espécie de androide com um cérebro humano que é criada por uma megacorporação em algum país oriental do futuro para ser uma arma. Enviada ao Setor 9, um tipo de equipe tática superespecializada da polícia, ela descobre um conluio para matar funcionários e pessoas ligadas à Hanka, empresa que desenvolveu o corpo cibernético em que habita. Ao lado de seu time, liderado pelo austero Aramaki (Takeshi Kitano), ela e Batou (Pilou Asbaek, um clone perdido de Michael Shannon) começam uma caçada pelo terrorista por trás dos ataques, Kuze (Michael Carmen Pitt).

Ok, uma vez que o projeto traz outras questões, vamos estabelecer de uma vez o que torna esta versão live-action válida. Por que não simplesmente rever o anime? É curioso, aliás, notar que temos atualmente em cartaz duas refilmagens de animações famosas dos anos 1990, e que ambas têm a mesma preocupação em emular quase que quadro a quadro seus originais. E isso pode ser um bom ponto de partida, pois se A Bela e a Fera justifica a revisita àquela história não só pelo visual, mas também por revisar a relação da princesa com o seu captor e por incluir uma maior representatividade social entre seus coadjuvantes, Ghost in the Shell ameaça ser apenas uma versão com atores de carne e osso de um filme que já vimos. E não só estruturalmente segue a mesma lógica narrativa, como se dedica a recriar vários planos e até sequências inteiras que são idênticos ao longa de 1995.

Porém, com mais tempo de tela que O Fantasma do Futuro, o filme aproveita para expandir e desenvolver seu universo e personagens. O que, é verdade, poderia ser apenas estofo desnecessário, mas que surge interessante quando, por exemplo, o roteiro inclui falas e diálogos que denunciam uma tensão e até mesmo conflitos entre nativos daquele país oriental com os imigrantes ocidentais, entre pessoas “puras” com as aperfeiçoadas (indivíduos com implantes cibernéticos) e também entre humanos em geral com as máquinas com que dividem quase todos os espaços - nada aprofundado, mas são elementos que densificam a atmosfera do longa. Além disso, o cineasta Rupert Sanders (que antes só havia dirigido o mediano Branca de Neve e o Caçador) investe em momentos de introspecção, como quando enfoca Major e uma espécie de stripper se encarando e descobrindo as diferentes sensações do toque uma da outra. O que, surpreendentemente (digo mais: espantosamente), é uma cena que surge sem nenhum erotismo, isso ainda que a protagonista esteja quase sempre “vestida” com sua pele robótica, que a deixa, na prática, nua. E ainda dentro do tópico sobre existencialismo, levantado pelos conflitos de identidade de Major (que encontram eco em outros personagens e conversam diretamente com a nossa realidade, em que personas e pessoas se confundem no espaço virtual), é igualmente curioso notar como o projeto procura validar a frase dita pela criadora da androide, a Doutora Ouelet (Juliette Binoche), afirmando que as lembranças não importam tanto para definir quem nós somos, mas sim as nossas ações. Ora, não é nenhuma conclusão brilhante, muito menos original e sequer é seguramente verdade... Na boa, provavelmente é até um equívoco juvenil. MAS, o interessante nisso é que ao defender a personagem que a diz, o filme também defende esse ponto de vista contrário a outros projetos de ficção-científica, como, por exemplo, A Chegada e o seriado Westworld. Isso significa que A Vigilante do Amanhã está errado em suas ideias? Não necessariamente, e mesmo que esteja, ele ao menos oferece um ponto de vista diferente ou, quem sabe, paradoxal a esses outros - o que já é intrigante por si só.

E é o tipo de reflexão que mesmo não chegando a uma conclusão concreta, e partindo de uma abordagem superficial, se torna intrínseca a um bom projeto do gênero. Isso ainda que trate-se de um blockbuster prioritariamente de ação. Aliás, Sanders merece algum crédito pela segurança com que conduz a trama, não deixando que as sequências de perseguições, lutas e tiroteios soem como os interlúdios obrigatórios dentro do cinema hollywoodiano. Pelo contrário, a ação surge orgânica ao tom do longa, que com a ajuda da trilha do sempre notável Clint Mansell e do competente Lorne Balf, assume um clima sombrio, cético e introspectivo até, fazendo jus às obras do sub-gênero cyberpunk como Neuromancer e os contos de Philip K. Dick. E em seus melhores momentos, remete diretamente a exemplares como Blade Runner. O filme de Ridley Scott, aliás, serve como farta inspiração para o design de produção, que cria uma megalópole infestada de publicidade em hologramas, outdoors e projeções - o que mais uma vez levanta a questão da identidade individual, já que a singularidade é suprimida por uma atmosfera sufocante de comerciais. Aliás, desse ponto de vista, faz sentido simbolicamente que uma das "armas" de Major seja uma roupa que se mescla com o ambiente ao seu redor. E em quesitos técnicos, o diretor não deixa passar despercebido o poderio de seu orçamento e explora ao máximo a cidade com takes aéreos que passam no meio de prédios e também mergulham entre rodovias suspensas, por exemplo. De outra forma, Sanders não se mostra muito apto nas cenas de embate, e se elas não estão deslocadas dentro da narrativa, por outro lado são confusas e jamais conseguem estabelecer o que está acontecendo dentro delas mesmas, já que o diretor tem o péssimo hábito de fechar o quadro e apostar em cortes rápidos nesses momentos.

Porém, méritos à parte, é preciso colocar em pauta o whitewashing de que sofre o projeto. O termo, usado para indicar quando um personagem que, claramente pertencia à outra etnia, é vivido nas telonas por um ator branco e estadunidense, aqui ganha uma tentativa de réplica contra as acusações por ter escalado Scarlett Johansson, que seria: como o roteiro assume as grandes corporações como as vilãs e elas são as responsáveis pelo design dos androides, então a ocidentalização deles seria porque essas superempresas malvadas são também, obviamente, hegemônicas e querem espalhar pelo mundo um padrão de corpo... enfim, você pegou a ideia. Claro que, no fundo, nada perdoa a falta de coragem do estúdio de apostar na força de seu filme e escalar uma atriz oriental para viver Major, deixando assim de depender do nome de Johansson para se vender e dando oportunidades para a diversificação. Mas de qualquer forma, a intérprete faz um bom trabalho investindo em uma postura encurvada na maneira de andar, que ainda soma a isso os braços arqueados, como se sempre estivesse prestes a entrar em uma briga – um detalhe que torna mais interessante o seu autoquestionamento como arma ou ser consciente. Já num elenco mais acertado, do ponto de vista ético, claro, Takeshi Kitano exala competência e é extremamente eficaz em nos fazer torcer por seu personagem, apesar do pouco desenvolvimento, enquanto Michael Pitt (que agora tem um Carmen no meio do nome? Ok) se aproveita da sua zona de segurança para criar em Kuze uma figura cujos trejeitos não soam como muleta de atuação, mas como sequelas de suas vivências.

Dessa forma, Ghost in the Shell se afasta da profundidade dos questionamentos filosóficos de O Fantasma do Futuro, que se diluem. E a própria expansão do universo e dos personagens faz a trama se tornar mais clara e linear, retirando do projeto aquela complexidade desnecessária proposital de plots e subplots que são o charme do tom noir que permeava o anime - e bem mais fraco aqui. Entretanto, A Vigilante do Amanhã compensa com a atualização de seu contexto, e ainda representa um verdadeiro choque entre a abordagem oriental e ocidental sobre o cinema, se mostrando um híbrido estranhamente funcional das longas contemplações da primeira com a ação desenfreada da segunda. E mesmo que talvez não vá sobreviver a diversas décadas de dissecação (é provável que não aguenta até o final do ano, na verdade), o filme certamente se mostra atual e, paralelamente (porque não é nenhum crime), divertido.


NOTA: 7/10


P.S.: Não só pelas cenas de ação, mas pela abordagem em geral de Rupert Sanders, que investe em planos escuros e de baixíssima profundidade de campo, a conversão para o 3D acaba se tornando completamente desnecessária.


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