quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

CRÍTICA: AVES DE RAPINA - ARLEQUINA E SUA EMANCIPAÇÃO FANTABULOSA



Relendo o que escrevi sobre Esquadrão Suicida há quase quatro anos, me diverti fazendo uma check list mental de todas as coisas que apontei como equívocos no filme de David Ayer, e que agora surgem como acertos em Aves de Rapina. Pois, enquanto o longa de 2016 tentava fugir da violência e crueldade inerente a seus protagonistas, este aqui abraça a vilania de Harley Quinn (Margot Robbie), e entende que vilões são figuras já naturalmente fascinantes por não seguirem regras ou convenções sociais. Se lá existia um desespero patético de parecer jovem, colorido e descolado, aqui essas características estão atreladas à personalidade da personagem central. Aliás, se a Arlequina era definida apenas por sua insanidade e roupas curtas naquele projeto, aqui ela de fato tem uma personalidade.

Dando início ao filme através de um trecho em animação que rapidamente reapresenta Harley, Aves de Rapina já define desde os minutos iniciais que pretende ser um filme irreverente, pois será narrado a partir do ponto de vista singular da mercenária. A partir daí, recém saída de seu relacionamento com o Coringa, Quinn resolve anunciar à Gotham que está solteira, sem perceber que isso retira a imunidade de que desfrutava por namorar o palhaço do crime. Com sua cabeça colocada a prêmio entre os criminosos locais, ela faz um acordo com o perigoso Roman Sionis (Ewan McGregor, divertido mas intimidador) para recuperar um diamante desaparecido, o que a leva a cruzar com Cassandra (Ella Jay Basco), uma adolescente batedora de carteiras que também é alvo da Detetive Montoya (Rosie Perez), da cantora Dinah Lance (Jurnee Smollett-Bell) e da Caçadora (Mary Elizabeth Winstead).

Todo situado em um único dia da vida de Harley Quinn, o roteiro assume uma estrutura que vai e volta no tempo para recapitular pontos e acontecimentos importantes de uma maneira aparentemente aleatória. Algo que só não incomoda porque, na verdade, segue a linha de raciocínio da protagonista, que assume o papel de narradora e quebra a quarta parede para falar diretamente com o espectador, deixando claro que estamos vendo essa história a partir de sua perspectiva caótica de mundo. Pois, sendo extrovertida e hiperativa, não soa estranho quando o filme para por alguns minutos para nos levar “uma semana antes” ou até mesmo “quatro minutos antes” sob a alegação de que a personagem esqueceu de nos contar esse ou aquele acontecimento. Pelo contrário, o vai e vem torna-se divertido por condizer tão bem com a personalidade e ainda nos contar mais sobre o modo de pensar da protagonista.

Aliás, o roteiro, escrito por Christina Hodson (que vem para salvar mais uma franquia do desastre depois de escrever o adorável Bumblebee) utiliza esses interlúdios para criar respiros dentro da narrativa, que caso seguisse uma estrutura linear, arriscaria ter por resultado uma trama enfadonha e episódica, passando de cena em cena de ação até chegar ao desfecho. Criando essa “bagunça”, o roteiro não só se torna parte da construção da protagonista, como torna o filme mais interessante de se assistir do início ao fim, pois se permite intercalar momentos de desenvolvimento com aqueles de pura diversão e pancadaria conforme acha necessário.

As cenas de ação, inclusive, se não são perfeitas, ao menos são dirigidas com muita segurança por Cathy Yan, uma diretora iniciante que, depois do que vi aqui, fiquei interessado em conhecer, pois mesmo diretores gabaritados tendem a ter dificuldades em suas primeiras incursões em grandes produções em Hollywood, ainda mais para tornar cenas de luta corporal e perseguições em algo compreensível e minimamente cativante - um mérito que Yan alcança com folga por nos permitir enxergar as coreografias impossíveis performadas por Harley e as demais personagens. Tudo bem, é verdade que a diretora pesa um pouquinho a mão no slow motion aqui e ali, ignorando que, às vezes, o impacto de um golpe é passado para o espectador não pela clareza com que conseguimos vê-lo em câmera lenta, mas pela rapidez de sua execução. Além disso, Yan faz um esforço honesto para não permitir que as várias sequências de luta soem repetitivas ao conceder a elas plasticidades particulares, como aquela que envolve uma chuva de sprinklers e outra que acontece em meio à fumaça colorida e confetes de bombas utilizadas por Harley - que não soam absurdas graças a sua subjetividade. Além disso, a cineasta também consegue manter total controle das idas e vindas da trama e ainda criar momentos que, se não são geniais, ao menos servem perfeitamente aos intuitos do longa, como aquele que apresenta Montoya invadindo o flashback de um crime para ilustrar sua visão apurada de investigadora, e que denota a inteligência e a perspicácia da personagem de maneira econômica e certeira.

Inclusive, se tem algo que Aves de Rapina se preocupa em enfatizar, é que as protagonistas são pessoas que vão além de suas habilidades especiais, possuindo medos, anseios, objetivos próprios e até mesmo formações acadêmicas que as definem mais do que sua capacidade de usar um bastão de beisebol ou emitir um poderoso grito para ensurdecer seus inimigos. Arlequina é a que soa mais complexa dentre elas, mas levando-se em conta que seguimos seu recorte caricato de mundo, há também uma coerência em delimitar o desenvolvimento das outras a características e motivações mais proeminentes - ainda que as lentes comandadas por Yan e Matthew Libatique, diretor de fotografia que habitualmente entrega parcerias fantásticas com Darren Aronosfky (mãe!), se preocupem em destacar detalhes como a lágrima que escorre no rosto de Dinah ao testemunhar um abuso misógino perpetrado por Roman. Da mesma forma que encontram tempo para que Arlequina confesse numa conversa de bar toda sua insatisfação com a posição submissa em que ela e as demais mulheres são recorrentemente colocadas pelos homens que as cercam - um diálogo que Margot Robbie não deixa soar panfletário, tornando-o comovente ao entregá-lo com uma dor subjacente às palavras de Harley, normalmente uma figura que transpira auto-estima e segurança.

E se em Esquadrão Suicida existia uma necessidade boba de emular o sucesso que Guardiões da Galáxia fizera na época, inserindo músicas pop e grafismos que tentavam forçar goela abaixo a ideia de que se tratava de um filme descolado, Aves de Rapina adota recursos similares de maneira muito mais coerente por trazê-los como consequência da visão particular que Harley tem daquele universo. Se antes as canções escolhidas soavam como grandes clichês que apelavam para a conexão emocional que o público já tinha com aquelas obras para tapar os buracos de desenvolvimento do roteiro, agora músicas conhecidas como Joke's on You e Sway surgem em remixes que adicionam batidas e instrumentos eletrônicos, além de letras que falam sobre a própria Harley e Gotham City, ratificando ainda mais a ideia de que tudo o que vemos é sob o filtro dos pensamentos de Quinn. Até mesmo os aborrecidos letreiros que eram utilizados no filme de David Ayer como forma preguiçosa de exposição sobre os personagens, aqui são empregados com sucesso por constituírem apenas um elemento de humor, e não algo de que a trama depende para se desenvolver. Aliás, por surgirem como se fossem fichas com “nome” e “função” desse ou daquele personagem, os letreiros e grafismos também nos lembram que Arlequina é doutora em Psicologia - um parte relevante de sua história que o roteiro de Hodson não ignora e utiliza como elemento chave.

Mostrando também a união de um grupo de vilões e personagens moralmente condenáveis de maneira muito mais orgânica do que fez Esquadrão Suicida, Aves de Rapina só derrapa um pouco no clímax, quando poderia ter abusado um pouco mais da criatividade que tanto exibiu ao longo do resto da narrativa. Fechando como uma mistura de Deadpool e comédias policiais como Dois Caras Legais e Beijos e Tiros, o longa consegue até mesmo se apropriar de alguns clichês desses filmes justamente por adotar um cinismo divertido que conduz a protagonista a admitir essas convenções de gênero, como a do policial que precisa entregar seu distintivo ou o discurso maléfico do vilão - não que essas coisas deixem de ser menos clichês por causa disso, mas ao menos vêm envernizadas no bom-humor e irreverência tão condizentes com a personalidade que o roteiro constrói para Harley Quinn, finalmente ganhando características mais complexas do que um short curtíssimo e um bastão. E algo me diz que o filme ter sido produzido, escrito e dirigido por mulheres tem alguma relação com isso.

Nota: 8/10


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