Para melhor entender, leia também a crítica de Ninfomaníaca - Volume 1 >>>> AQUI.
Escrevi
sobre o Volume Um desta obra o
seguinte: “(...) conhecido
[Lars von Trier] por atacar a misoginia através de suas obras, Anticristo, Melancolia, Dogville e Dançando no Escuro são exemplos claros da visão
pessimista que o diretor tem em relação ao tratamento da mulher em nossa
sociedade, o que, (...) provavelmente por ser uma obra inacabada, está,
se não ausente, pouco expressivo neste volume 1, embora várias vezes o diretor pareça preparar o
terreno para discutir o assunto. E deveria ser discutido, como um tema
recorrente e tão bem retratado em outras realizações suas, seria uma pena e até
mesmo reprovável ver a maior chance do cineasta de discutir um tópico tão
importante se esvair”. Pois ao subirem os créditos finais do Volume Dois, eu me sentia desapontado,
traído e tratado condescendentemente. E isso, por mais que minha experiência
negativa possa me fazer querer negar, é um elogio, uma vez que causar tais
sentimentos tão comuns a uma pessoa oprimida, se mostra exatamente o objetivo
de Ninfomaníaca como um todo.
Continuando a história exatamente de onde parou na parte
anterior, seguimos acompanhando Joe (Charlotte Gainsbourg) enquanto relata a
Seligman (Stellan Skarsgård) que perdeu de uma hora para a outra a
sensibilidade do clitóris, e que passou a enfrentar um relacionamento infeliz do qual foi gerado um filho - que até mesmo protagoniza uma auto-referência divertida por parte de Trier ao seu Anticristo, ao trazer o menino em uma sacada onde neva enquanto se ouve Lascia Ch'io Pianga ao fundo, tal qual o começo icônico daquele filme. Incapaz de levar a vida comum de dona de casa, a protagonista passa a ter relações extraconjugais com o consentimento de Jerôme (Shia
LaBeouf), que não suportando mais a situação a deixa levando consigo o menino.
Em busca então de seu orgasmo esquecido, Joe tenta um grupo de anônimos, um
sado masoquista chamado K (Jamie Bell) e enfim, começa a trabalhar para o
mafioso L (Willem Dafoe), cobrando dividas de seus devedores.
Disse também no meu texto sobre o “primeiro filme” que era
admirável que Lars Von Trier conseguisse colocar sub uma luz favorável uma
figura que o senso comum julgaria vulgar, uma verdadeira destruidora de
corações e lares, mesmo que a própria Joe jamais esconda sua opinião depreciativa
sobre si mesma. Aqui, esta lógica se mantém, e mesmo ao perdoar e sentir pena
de um pedófilo, a personagem soa estranhamente tocante em uma das raras vezes
que não aponta negatividades na natureza humana, ironicamente ao falar sobre uma
nuance que de fato é negativa. Gainsbourg leva os pontos por esta impressão,
que transforma a ninfomaníaca do título em uma personagem crível e sensível,
ainda mais nesta segunda parte onde temos mais tempo da Joe adulta no passado,
e podemos constatar assim a falta de agressividade, mesmo quando irritada, que
a atriz emprega em sua performance. Quase sempre sutil em suas expressões, ou
na falta delas, ela consegue transparecer todo vácuo emocional da protagonista
na ausência do prazer sexual. Enquanto isso, Seligman continua a demonstrar-se
um homem erudito e amigável cuja química com sua colega de cena é invejável.
SPOILERS
ABAIXO
O que só torna o final do filme mais doloroso. E como diz o
aviso acima, há spoilers nas linhas seguintes, então aconselho aqueles que
ainda não assistiram a esta sequência que voltem aqui apenas quando já o tiverem
conferido. Ao mudar repentinamente o comportamento do personagem de Stellan
Skarsgård nos minutos finais da projeção, Trier
traí seu espectador que havia durante todos os dois volumes depositado sua
confiança no personagem; o diretor e roteirista o havia estabelecido como a
bússola e a âncora moral de Ninfomaníaca.
E por que não o compraríamos como tal? Culto, cuidadoso, educado, gentil,
indiferente ao fato de ter uma mulher atraente deitada em sua cama, puramente
interessado em sua história e em quem ela é, e agora, ainda por cima, virgem e
se dizendo assexuado. Seligman era de fato o Homem Feliz, e um nada tendencioso
e extremamente imparcial, no qual Joe e nós mesmos na condição de seres humanos
falhos que somos, poderíamos confiar durante esta jornada. Um mentor, um ajudante,
um confidente. O cineasta claramente trilhava-nos para este caminho, creio que não
seria exagero algum até mesmo supor que Lars Von Trier construiu todo o projeto
para chegar nesta virada. E isto sim é chocante, não o sexo explícito, não as amoralidades de Joe e de outros personagens. Mas a natureza humana, exposta em
carne viva para nós, que claro, não a queremos enxergar e por isso, reagimos
com decepção e raiva do final proposto pelo realizador.
A misoginia é apenas uma das formas que a opressão de um indivíduo
para outro já assumiu, existem ainda a homofobia, a xenofobia, o preconceito
entre classes, racismo, entre muitos outros. Aqui, claro, o cineasta se
concentra na primeira que citei, como é comum em suas obras, o que explica
então os grafismos e “infografismos” que adota como linguagem neste projeto,
algo que eu já havia apontando antes como sendo tanto bom como ruim, já que enquanto
descontraí a trama e acrescenta até mesmo humor a mesma, com o mesmo artifício também
parece duvidar da nossa inteligência ao não deixar aberturas para interpretações
de suas metáforas, algo que sempre foi um dos atrativos de seus filmes. Pois ao
tratar seu espectador assim, Trier reproduz em linguagem cinematográfica o
mesmo tipo de tratamento que misóginos costumam dispensar em relação as mulheres: um bem humorado, já que só as enxergam como bem de consumo, e ao mesmo
tempo condescendente (!). Da mesma forma, sua “traição” no fim do
longa-metragem representa como um todo este tipo de comportamento: “mas você
fodeu com centenas de homens!” diz Seligman não acreditando na recusa de Joe em
deixá-lo penetrá-la. Como assim um homem
não pode fazer sexo com uma mulher, ainda mais uma que transa por escapismo com
tantos outros!? Mas, ainda em tempo, o cineasta vinga suas protegidas e um
tiro é a última coisa que ouvimos em Ninfomaníaca.
Então, sim, é decepcionante, é traiçoeiro e repulsivo a forma
como, por exemplo, nos é explicado o óbvio em certo momento, que se trocássemos
a protagonista por um homem, a história talvez não fosse tão chamativa e o
espectador estaria menos disposto a julgá-lo. Mas creio que também deva ser
decepcionante, traiçoeiro e repulsivo viver como um indivíduo oprimido de
qualquer forma, sendo assim, por mais que tenha me atingido negativamente, não
consigo discordar das decisões de Lars Von Trier aqui, pelo contrário, só tenho
a elogia-las. Esta segunda parte conclui que, como um filme só, Ninfomaníaca é um dez de dez, uma obra
necessária que não se preocupa em apenas denunciar um problema, mas também em
colocar seu público para sofrê-lo junto com seus personagens, visando
obviamente a comoção, enquanto vira mesas e põe espelhos em nossos rostos,
mostrando-nos que muitas vezes agimos com preconceito sem nem mesmo
percebermos. E de quebra, estapeia a cara de muitos que ainda enxergam o sexo
como algo reprovável e reprimível e que incitam ao invés disso a violência
entre os diversos tipos de pessoas, ao mostrar que em um filme onde coitos,
genitais e torturas sexuais são explícitas para todos verem, o que menos choca
é o sexo, sendo que este é até mesmo usado para o humor – quando você ver o enquadramento
que mostra Joe refletindo entre dois pênis eretos entenderá o que digo; sendo de fato o ser humano em si
e sua capacidade para o mal, o ódio e a opressão o que realmente é usado para
impactar o espectador aqui. E impacta. Porém, será que a mensagem será captada
por todos?
NOTA DO FILME TODO: 10/10