sábado, 9 de maio de 2020

CRÍTICA: HOLLYWOOD


Nem tão lá e nem tão cá. Hollywood é o novo hype em forma de série promovido pela Netflix. Nela, somos levados aos glorificados anos de ouro da cidade dos sonhos, na década de 1940 pós-Segunda Guerra Mundial, quando reinava o star system. Num resumo a grosso modo, isso quer dizer que os estúdios mandavam em tudo, ponto final.

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Série da Netflix revisita a Hollywood dos anos 1940 com muito otimismo.

Uma versão mais detalhada vai te dizer que, nessa época, Hollywood funcionava baseada em contratos exclusivos entre as estrelas e os estúdios. Isso porque o público estadunidense valorizava bastante os nomes, e nem sempre os filmes em si. Então quando identificava um talento em potencial, o estúdio fechava contrato com o ator, diretor, roteirista e por aí vai. A partir da assinatura dos documentos, o artista estava atrelado ao estúdio e tinha que se submeter à mão de ferro dos produtores e agentes que o transformariam naquilo que “o público quer ver”. Os atores, claro, sofriam de maneira mais óbvia nesse sistema, pois como eram a “cara” dos filmes, precisavam fazer jus à persona criada pelo agente, o que normalmente envolvia serem verdadeiros deuses na Terra. Para tanto, a rotina dos novatos, que tinham pouco poder de barganha, vinha preenchida com dietas malucas, exercícios constantes, aparições públicas programadas e romances orquestrados ou aprovados pelos chefes.

Essa chamada Era de Ouro de Hollywood se parecia muito mais com uma linha de produção fordista, destinada a fabricar produtos dentro dos requisitos pré-aprovados pelo público. E assim como o capô encerado de um carro novinho escondia todo um processo insalubre e desumano de fabricação, o glamour e as belezas criadas por Hollywood foram um poderoso verniz que escondia o lado podre dessas relações nos bastidores de estúdios como a Warner, a Fox, a MGM, a Paramount e a falecida RKO.

E é precisamente este lado feio que a série Hollywood vem abordar, pegando emprestada a ideia de Quentin Tarantino em Era Uma Vez… em Hollywood para reimaginar como as pessoas reais que existiram naquela época teriam reagido e agido se encontrassem com personagens criados com a cabeça dos dias atuais. Só que tem uma diferença: enquanto o filme do Tarantino consegue honrar a memória de Sharon Tate e das demais vítimas da família Manson ao mesmo tempo em que nos lembra da tragédia que foram os seus assassinatos, justamente por NÃO mostrá-los e ao optar por um desfecho diferente, a série da Netflix é bem otimista. Aliás, otimista é pouco, os sete episódios são repletos de idealismo.

Mas afinal, isso aqui é coisa do Ryan Murphy, notório criador de séries que, para o bem ou para o mal, sempre passa longe da sutileza. Dentre os trabalhos que ele assinou, o meu favorito é o filme The Normal Heart, que dirigiu para a HBO. Trata-se de um drama sobre o estouro da epidemia de HIV nos anos 1980. Lá, Murphy reúne todos os seus histrionismos, incluindo o excesso de montagem e filmagem, como se fosse uma versão gay do Michael Bay.

Já aqui, Murphy dirige apenas um episódio, o primeiro, que dá o tom dos demais. E nele é perceptível como o realizador segue uma cartilha mais, digamos assim, “comportada”. Somando a isso, sua típica fotografia saturada, cheia de sol e bem iluminada dá uma cara de filme da Disney para o seriado, se filmes da Disney não tivessem problemas em mostrar e falar sobre sexo gay, sexo lésbico, sexo bi, sexo hétero e sexo em geral. Tudo bem que essa estética “perfeitinha” é bem condizente com a própria noção de que os anos 1940 foram o ápice do glamour em Hollywood, mas é ela também que vai nortear o clima de otimismo do projeto. Porque, a verdade é: ainda que passem por situações terríveis que envolvem, inclusive, abuso sexual e estupro, os personagens parecem sempre estar vivendo num mundo ensolarado onde nada parece oferecer um graaaande obstáculo para os seus objetivos.

Agora, isso acaba não sendo um problema. Porque, no final, o intento da série é te propor uma revisão dos valores dessa época ao inserir personagens que desafiam o status quo: o roteirista negro que quer colocar seu nome nos créditos, o casal gay que quer casar e se assumir, a atriz negra que quer protagonizar um filme, a esposa do produtor que quer dirigir um estúdio e vários etc. Então, diferente da satisfação seguida de melancolia trazidas pelo longa-metragem de Quentin Tarantino no ano passado, ou mesmo da sátira cínica concebida pelos irmãos Coen no hilário Ave, César! (2016), Hollywood é uma brincadeira gostosa e descompromissada de “e se?”.

Mesmo longe, mas muuito longe da realidade que assombrava o star system, o seriado de Ryan Murphy consegue propor com méritos esse exercício de imaginação que, ao menos ao longo de seus sete episódios, consegue substituir o real pela satisfação de ver as coisas tomando um rumo diferente. Um exercício que logo levanta indagações pertinentes.

Por exemplo: como será que a luta de Camille (Laura Harrier) e os resultados que ela obteve impactaram nos movimentos civis pelos direitos da população negra que se fariam tão contundentes, especialmente nas duas décadas seguintes? Como essa Hollywood que agora não depende mais do respaldo de setores conservadores e ultra-conservadores vai se portar na caça aos comunistas nos anos 1950? Será que as ações dos personagens enfraqueceram ou fortaleceram o star system? Será que nasce ali uma Hollywood mais conservadora ou mais aberta? E se Los Angeles se tornar um lugar mais liberal, como isso vai influenciar no endurecimento de valores que levou à migração do movimento hippie para dentro da cidade? E como isso, por sua vez, vai afetar a própria sociedade hollywoodiana que, saturada dos tempos paz e amor, usou os assassinatos da família Manson como ponto de virada para uma nova época de austeridade e ceticismo? Teria, nessa realidade, Rock Hudson formado seu ship icônico com Doris Day?

Só por levantar reflexões como essas que forçam o espectador a contestar o otimismo dessa realidade idealista apresentada por Murphy (ainda que este possa não ter sido o seu objetivo), Hollywood já seria uma distração admirável. Mas, para além disso, a série ainda combina essa estética ensolarada e convidativa com performances carismáticas e energéticas das quais se destacam o protagonista Jack (David Corenswet, um clone perdido do Henry Cavill), o produtor Dick Samuels (que ganha uma personalidade dotada em iguais partes de inteligência e doçura nas mãos de Joe Mantello), o roteirista Archie (Jeremy Pope, que poderia dosar um pouco mais na hora de usar o choro como muleta) e as sempre hipnotizantes Holland Taylor e Patti LuPone. Sem contar a pequena participação de Rob Reiner com sua excelente expressão corporal cômica e um timing perfeito - uma pena só que o diretor de Conta Comigo, A Princesa Prometida, Harry & Sally, Louca Obsessão e Questão de Honra esteja sumido no plano geral das produções significantes.  

Meu porém fica por conta do personagem de Jim Parsons, que sofre do que eu vou batizar de síndrome de Berlin. Pois, tal qual o personagem Berlin, daquela chatura que é La Casa de Papel, o produtor Henry Wilson, vivido por Parsons, comete as mais terríveis atrocidades e, ainda assim, a série nos pede que perdoemos seus crimes para que ele possa fazer parte do time de aliados dos heróis… Vai se foder sabe. Não.

Curioso ainda por retratar a Hollywood dos anos 1940 em uma razão de aspecto mais larga (16:9), distante dos formatos mais quadrados de tela que eram padrão nessa época, a série, ao menos esteticamente, lembra aquilo que hoje o público entende como “imagem de cinema”, com as tarjas pretas e tudo mais. E justamente pelas indagações que promove, o seriado, que na verdade é apresentado pela Netflix como uma minissérie, poderia ganhar mais temporadas tranquilamente. Eu gostaria de ver como essa turma segue desafiando os fatos históricos nessa onda de não abaixar a cabeça para o preconceito. Se não retrata a Hollywood como ela realmente foi e é, a série Hollywood pelo menos expressa muito bem o espírito que ela, um dia, tentou representar.

Nota: 8/10