sexta-feira, 26 de outubro de 2018

HARRY POTTER DIZ: #ELENÃO


“Em breve todos teremos que enfrentar a escolha
entre o que é certo, e o que é fácil”

As palavras de Alvo Dumbledore ecoaram do meu imaginário infantil e se fixaram como estruturas do meu caráter. Lendo e assistindo Harry Potter enquanto crescia, aprendi a me identificar e me posicionar do lado certo na História - porque sim, sempre há um. Não digo que não existam outras obras além de Harry Potter através das quais se possa aprender qual o lado humano para assumir. Mas no meu caso foi.


Com os valores morais e éticos mais básicos trazidos pelos primeiros volumes da saga, até os conceitos mais complexos sobre amadurecimento e resistência política concretizados pelos últimos, fui dos 7 aos 15 anos amparado pela narrativa de J.K. Rowling, que apesar de se passar num mundo mágico e fantasioso, trazia e ainda traz diversas semelhanças com este aqui em que eu e você (trouxas) habitamos.

Eu não era a criança mais comum da minha escola e certamente não facilitava a vida dos meus bullies. Se Rowling fosse uma escritora puramente escapista, ela talvez tivesse concebido Hogwarts como um lugar para o qual eu sentiria prazer em fugir de uma realidade dura demais para uma criança recém-alfabetizada. Não, ao contrário disso, a Escola de Magia e Bruxaria era um local atraente justamente por também ser duro e repleto de obstáculos que serviam como espelho àqueles bem reais que eu enfrentava aqui. E assim:

Em A Pedra Filosofal aprendi coisas simples e básicas, por exemplo, sobre amizade:

Aprendi que gentileza e lealdade não vão fazer de todos, seus amigos, nem vão garantir que os outros serão gentis e leais. Mas é a única maneira de garantir, com toda a certeza, de que as pessoas que podem ser gentis e leais, vão sê-lo.


Com HP eu também entendi que amizade é uma questão de troca: troca de conversa, de compreensão, de escuta, de presentes, de tempo e dedicação, até o mais clichê e, claro, o mais importante, de amor e de carinho. Os pilares do que considero como amizade e família hoje são irreversivelmente ligados ao que tive como exemplo em Harry, Rony, Hermione, na família Weasley e na relação de Potter com seus mentores.


Já sobre o que é vencer, de verdade, aprendi que:

Voldemort tenta vencer pela opressão, pelo medo e a trapaça. Isso desfigurou seu corpo e lhe deu uma existência amaldiçoada. Com isso, desde o início, tive em mente que fazer a coisa certa não é o mesmo que vencer a batalha, mas sempre equivale a uma consciência limpa.


Já em A Câmara Secreta, comecei a pensar sobre questões um pouco mais complexas, como, por exemplo, o preconceito:

Na primeira vez que Draco usa o termo “sangue-ruim” para ofender hermione, percebi que, mesmo sem varinha mágica nenhuma na mão, palavras têm um poder inegável.


Infelizmente, eu aprendi também que essas ofensas podem se naturalizar se ninguém contesta-las. E o que antes era apenas um termo bobo, se torna realidade aos olhos da sociedade. Em A Ordem da Fênix, “sangue-ruim” já não é a pior coisa de que se possa chamar alguém como Hermione, uma vez que Umbridge usa a ofensa “mestiços” e mais adiante os nascidos-trouxa começam a ser perseguidos e privados de seus direitos bruxos.


Mas também aprendi que preconceito tem cura, e uma delas é reconhecendo os erros do passado:

E que para isso é vital a reparação histórica. Hagrid, que por décadas ficou marginalizado na periferia de Hogwarts, volta de uma passagem injusta pela prisão de Azkaban e é recebido com estrondosos aplausos no coração da escola que o expulsou e o mandou para a cadeia sem provas.


Aliás, aprendi que a reparação histórica deve ser pública. Que erros sociais devem acarretar em pedidos e principalmente ações de desculpas e compensação aos olhos de todos, para reparar a imagem inferiorizada da vítima - seja essa um preso político ou um povo escravizado.


Outra coisa que aprendi com Harry Potter, inclusive, é que nem todo mundo que está preso, é culpado. Para ser justo, é preciso analisar interesses e ir além do “parece que é culpado”, isso implica em escutar, estudar e tirar conclusões próprias.

 

Hagrid era um preso circunstancial, ou seja, parecia culpado porque se parecia com o que as pessoas acham que é um criminoso - uma impressão agravada pelo uso de termos como “sangue-ruim”. É fácil levar essa alegoria para a nossa realidade e o encarceramento em massa da população negra, não é? Mas no final, ele era inocente.


Sirius foi incriminado, e por andar ao lado de “subversivos”, foi logo considerado culpado. Mas era outro que, na verdade, era inocente.


Dumbledore foi afastado de Hogwarts sem provas durante uma crise, e alguns anos depois tentaram prendê-lo por que a oposição tinha medo do poder político dele. Ele era inocente nas duas, apesar de parecer culpado. Preciso apontar com que situações da nossa realidade se parecem essas?


Aliás, com Harry Potter eu aprendi que um maltrapilho marginalizado pode ser uma pessoa muito honrada, gentil e inteligente.


E que uma pessoa rica, elegante, de boas maneiras e escondida atrás de um título bonito, pode ser cruel, mentirosa e completamente desumana.

Já mais velho, com A Ordem da Fênix eu aprendi a identificar quando coisas ruins estão para acontecer, e aqui vão alguns sinais:

Aprendi que “O medo faz as pessoas fazerem coisas horríveis, a última vez em que Voldemort assumiu o poder ele quase destruiu tudo o que nos é mais querido”, diz Lupin a Harry, obviamente se referindo a luta em prol da liberdade e do respeito aos direitos de todos os diferentes tipos de bruxos.


Entendi que sistema com medo vai tentar negar o ressurgimento de movimentos opressores e autoritários. “Tudo vai bem” diz o Ministro da Magia para os jornais.


Aprendi que é preciso constante atenção com os meios por onde a gente se informa. Interesses e contextos mudam, e fontes confiáveis hoje, amanhã podem estar direcionadas.


Mas também aprendi que eu devo questionar todas as publicações, especialmente as que concordam normalmente com as minhas ideias.

 
Aprendi que um dos sinais de que as autoridades estão negando o autoritarismo e até perseguindo quem acusa isso, é observar se são feitos grandes julgamentos para pequenas coisas, enquanto faltam julgamentos para os grandes escândalos.


Aprendi que um sistema com medo vai tentar interferir na educação nos estudos acadêmicos.


Que vai expulsar professores considerados “subversivos”.


Que vai usar a deslealdade como acusação.


Que vai perseguir os tipos já marginalizados.


Com Harry Potter eu também aprendi que, se o medo avança no sistema, ele se transforma em um governo opressor. E aprendi que é muito fácil identificar um governo fascista, pois ele vai:

Atacar e censurar a arte e os meios de comunicação.


Vai restringir o território de populações nativas.


Vai interferir na educação com ordem a padronização.


Vai ser a favor da tortura.


Vão ser contra as minorias.


E acima de tudo, percebi que ditaduras não acontecem da noite pro dia. Elas acontecem num processo, aos poucos, tirando uma liberdade de cada vez e naturalizando a violência. E que elas se beneficiam da negação das pessoas.


Por outro lado, aprendi que pode existir resistência. E que essa pode nascer da própria juventude e de movimentos estudantis.


Aprendi que encarar a morte nos faz mudar de perspectiva.


E que aceitar a morte como parte natural da vida, nos faz mais maduros.


Aprendi também que a morte de um líder político não significa o fim de uma ideia, pelo contrário, deve ser usada como catarse para que ela se multiplique.


Aprendi que Amor é um motivador muito maior do que o medo.


Aprendi que Amor te dá um motivo pelo que lutar.


E aprendi ainda que Amor, para existir, basta ser sincero.

E por fim, com Harry Potter eu aprendi que a escola e a educação são o último refúgio contra ditadores.


Aprendi que a escola e a educação são os obstáculos mais temidos pelos que pregam a violência e agem oprimindo. E que é nessa esfera que se faz a resistência, a luta e vitória.


Aprendi que mesmo o vilão mais sanguinário e poderoso, não é nada quando colocado contra um povo disposto a proteger o ensino e o conhecimento. E sim, aprendi que nada disso se mantém sozinho, é preciso lutar.



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Entenda o que é, porque existe e leia as outras edições do projeto O Cinema Diz: #EleNãoem que convidei várias pessoas para escolher e escrever sobre um filme que converse com a nossa situação política, no intuito de refletir e ilustrar os riscos que estamos correndo.


quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O CINEMA DIZ: #ELENÃO - Nº 11



Thomás Boeira vê o cinema como religião e a sala de exibição como templo sagrado. Escreve sobre cinema desde 2009 no blog Linguagem Cinéfila. É formado em Produção Audiovisual pela ULBRA e é membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS).








A Onda do fascismo vai e vem

Rainer Wenger é um professor de história que, em uma semana especial na escola, se vê tendo que ensinar autocracia para seus alunos do ensino médio, que por sua vez não acreditam ser possível que uma ditadura volte a reinar no país. Para provar que seus pupilos estão errados, Rainer bola um experimento com eles, impondo uma série de normas que dão origem a uma pequena unidade ditatorial. Mas o que deveria ser só uma simulação para mostrar àqueles jovens como é viver em um regime totalitário acaba sendo levada a sério demais, saindo do controle e levando todos por um caminho imprevisível.


Inspirado por um caso real que ocorreu na Califórnia na década de 1960, A Onda é um filme que consegue ser bastante didático ao tratar seu tema central, sendo que o fato de ele envolver uma lição escolar não deixa de ser uma vantagem nesse aspecto. Com isso, o roteiro naturalmente consegue mostrar como esse tipo de regime pode ser facilmente imposto em uma sociedade, principalmente quando as pessoas podem ser manipuladas sem muita dificuldade. Há, inclusive, uma cena emblemática em que Rainer (vivido com segurança por Jürgen Vogel) e seus alunos praticamente passam uma espécie de receita sobre o quê pode colocar o país em direção a uma ditadura, citando injustiça social, alta taxa de desemprego, desencanto com a política atual e consciência nacionalista. Mesmo que esse momento conte com certa simplicidade, é provável que tais pontos estejam entre as razões para que um fascista seja visto por muitos brasileiros como opção viável para a presidência do país.