sexta-feira, 27 de março de 2015

ANSIEDADE - A OFICINA DO DIABO



Deixa eu contar uma coisa sobre ser ansioso: as pessoas não entendem. Grampear as próprias bolas sempre parece uma ideia menos dolorosa do que ouvir um “eu vejo depois” ou um “tenho que pensar”.

Ser ansioso te faz exigente.
Ser ansioso te faz chato.
Ser ansioso te faz impaciente.
Ser ansioso também pode te fazer eficiente, mas não há garantias.
Mas antes de tudo, ser ansioso te faz hipócrita.

Quer dizer, não sei bem ao certo sobre essa última parte, muita coisa na cabeça agora, eu vejo depois, tenho que pensar.

Deus não existe se você é ansioso. Ao menos agora não faz diferença se existe ou não. Digo, o cara trabalha a ritmo de milênios, e eu contando os minutos aqui. Quando se é ansioso nada que não faça diferença agora – neste momento – importa. Foda-se Deus. É, ser ansioso te faz um pouco egocêntrico também.

Você começa a pensar que as pessoas não deveriam poder ter sentimentos, só pelo fato de não serem pragmáticas o suficiente para usá-los. Cada vez que ouço um “não sei” me faz preferir ser a alma condenada de algum motorista alcoólatra de ônibus escolar responsável pela morte de quarenta criancinhas, egolindo abacaxis inteiros e com casca e retirando-os intactos pelo rabo como castigo eterno. O inferno é as pessoas não poderem simplesmente serem objetivas. Por que não podem me ouvir e obedecer?

Eu sei, eu sei. Ser ansioso também te faz um babaca controlador. Eu não tô negando isso.

Romie sempre diz que eu deveria viver em um planeta povoado por um monte de eus. Segundo ele, eu seria mais feliz com uma população que também pudesse sentir a 120km/h. A ideia sempre me faz rir – três segundos por dentro, outros trinta por fora, só pelas aparências – mas Romie está errado. O que ele não sabe é que ser ansioso te faz bastante egoísta, e encontrar apenas um outro eu por aí já seria arrepiante o suficiente sem eu ter de pensar na ideia de encontrar milhares. Seria uma carnificina.

Ou eu também posso estar sendo precipitado – não disse ainda, mas ser ansioso te faz um paranoico talentoso – e no fim, ao invés de uma matança, haveria era uma orgia de escala global. Talvez sim, depois disso começaríamos a nos matar uns aos outros. Porque isso é outra coisa que não dizem sobre ser ansioso: nós gostamos de sexo. Somos primatas obcecados com a perpetuação da espécie, sempre em busca da próxima foda.

Sinceramente, tenho a impressão de que o primeiro telégrafo criou o primeiro ansioso. Pense bem, como vivia um ansioso na época do império? Se eu mando uma mensagem no whatsapp hoje, quero vê-la respondida tão logo a pessoa a leia, e minha paciência não tolera que isso demore mais do que algumas horas, porque, se alguém tem um whatsapp deve checar a droga do celular pelo menos uma vez por hora. É a obrigação moral dela com a modernidade. Agora imagine, e imagine você, porque toda a vez que eu tento imaginar é um pesadelo desesperador: um ansioso manda uma carta para a sua pretendida do outro lado do oceano perguntando se ela deixaria a residência dos pais e viria passar um tempo em terras americanas para ver o que acha da vida na colônia. O que seria o equivalente hoje a um “que tal sairmos na sexta?”. O que um ansioso faria da vida sabendo que a carta que ele acabou entregar ao mensageiro, levará semanas para alcançar o seu destinatário? Pior, sabendo que não há garantia alguma de que chegará de fato; o navio pode afundar, o mensageiro pode morrer, a carta pode se perder. Isso sem contar a resposta, e se a resposta não for a esperada? E se ele precisar argumentar? E mesmo que não precise, semanas é tempo o suficiente para que a moça conheça algum outro pretendente, e isso mesmo que vivesse no estado vizinho. Caralho, naquela época semanas era tempo o suficiente para que ao tempo em que a carta chegasse a moça já estivesse casada!

Quase não consigo dormir à noite pensando em como poderia ser pior. Quando Romie não responde alguma mensagem minha começo a pensar que estranho acidente envolvendo um carro, uma banca de frutas ou fios desencapados poderia tê-lo matado. Ligo pra mamãe que trabalha em frente à ele, pergunto se o viu, ela diz “sim”, eu adiciono: “vivo?”. Ela ri, eu me irrito, desligo. Saio, ligo pra ele, não atende, deve estar agonizando sem ninguém pra ajudá-lo. Mas por que? Romie é um vendedor, por que uma gangue de skatistas iria querê-lo morto? Ah sim, nesse meio tempo de alguma forma já deduzi que foram skatistas que o atacaram, com facas dessas grandes de caça que se compra em lojas de caça... Talvez o pai de um deles seja dono de uma loja de artigos de caça, o que explicaria o motivo de o terem esfaqueado, essa gente metida a red neck brasileiro deve ter uma bandeira do partido conservador pendurada atrás do balcão, não surpreenderia que a gangue do filho de um deles atacassem Romie. Eu tinha que chegar logo, antes que cortassem as bolas dele e enfiassem na boca do seu cadáver, não porque isso seria terrível – e seria -  mas porque se Romie estivesse vivo para julgar a própria morte ele ficaria puto por ter morrido assim. Tenho certeza de que ele gostaria de morrer do coração nos meus braços ou algo do gênero, e isso logo depois de oferecer uma performance estonteante de alguma música do RuPaul para uma plateia em alvoroço de excitação, algo no estilo Satine de morrer.

No final, Romie está conversando com o seu chefe e não pode sacar o celular. Nada de gangues de skatistas filhos de red necks donos de lojas de caça. Não. Pelo menos ser ansioso faz a sua vida parecer que vai se converter em um thriller de ação a qualquer momento.

Eu converso com Romie e tudo fica bem. A música do ABBA já dizia não é? There’s no hurry anymore when all is Said and done”. Bom, foda-se o ABBA também – por algum motivo estranho, ser ansioso te faz um crítico ferrenho de música brega – sempre há o que ser dito e feito. Eu acabo de conversar com o Romie e já há mais uns vinte itens que eu preciso ter certeza de que ficou claro pra ele. O mundo moderno foi projetado para acomodar os ansiosos, mas ainda é habitado massivamente por pessoas comuns que não se dinamizaram o suficiente, que nem mesmo planejam em detalhes o dia seguinte - quero dizer, como elas conseguem dormir sem decidir a cueca que vão usar quando acordarem? Se Jesus tivesse vindo nos dias de hoje e feito o sermão da montanha por streaming no YouTube, ele diria algo como: “bem aventurado os ansiosos, pois herdarão a Terra”. Não que seja alguma surpresa pra você, mas estou ansioso por esse dia. Abaixo os "vamos ver", nunca mais às "pensadinhas" e morte aos "eu acho"!

É, ser ansioso te faz dogmático e um pouco fascista também.

Eu vivo neste mundo há algum tempo agora, e ser ansioso te faz desesperado ao pensar que ainda há, pelas expectativas, mais do que o dobro desse tempo ainda por vir. As pessoas dizem que a vida é curta, os religiosos dizem isso, até os cientistas concordam com eles nisso. Cacete, se religiosos e cientistas podem concordar em alguma coisa sobre a vida, como que nós ansiosos podemos encontrar um lugar entre vocês? Porque, deixa eu te contar, a vida é longa. É malditamente arrastada. Romie vai me dizer até terça se iremos viajar na sexta, e ele vai viver feliz até lá. Eu invejo o filho da mãe com uma força que vem do núcleo dos meus ossos. Porque nesse meio tempo eu vou viver como se estivesse na página principal do meu Facebook e não conseguisse desfazer o símbolo vermelho de notificação no canto da página. Tudo azul, exceto pela maldita resposta de Romie. E até que ela venha, pra mim, vai se passar toda uma vida.

A ansiedade é uma grandeza física, ela faz o tempo relativo para quem está mais próximo dela. E os azarados que inventam de nascer com a maldita dentro do peito, batendo junto com o seu coração, vivem essa vida amaldiçoada. Desejando sempre apenas poder transmitir todo o desespero e agonia que sentem para a próxima pessoa, apenas com um toque, só para poder ser compreendido.

Ser ansioso te faz agir como um vírus. Você quer disseminar-se para sobreviver. A sociedade é o seu hospedeiro, e você precisa garantir que ela fique viva para sustentá-lo, mas ela vai tentar expulsá-lo, colocá-lo no seu lugar, mantê-lo sob controle ao menos. Quando religiosos e cientistas concordam, é quando glóbulos vermelhos e brancos se unem. Que seja. Eu sou um vírus. Ser ansioso te faz o vilão, e um tanto pessimista.

Você nunca é feliz por mais do que alguns instantes, porque sempre fica afoito pelo próximo momento em que você vai se sentir feliz, e agoniado de pensar que ele talvez não chegue. A sinaleira é muito demorada, a música que você adora poderia ter versos a menos, o livro ser mais curto, o filme menos subjetivo, os petiscos podiam ser pulados nos churrascos de domingo, a vida podia ter menos graça. Quando se é ansioso você vive para o próximo momento em que vai ver você mesmo falhar em aproveitar os pequenos momentos.

Você traça objetivos que parecem impossíveis. Você os alcança. Então quer alcançar o próximo horizonte, sempre correndo atrás do sol, tentando alcançá-lo antes que ele se ponha.


Quando se é ansioso, você sempre quer mais, e desconhece o significado de “demais”.

Deixa eu te contar uma última coisa sobre ser ansioso: nós não entendemos as pessoas.

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CINDERELA


Não há nada de novo nesta versão dirigida por Kenneth Branagh da gata borralheira. Nenhuma revisão moderna do conto ou da animação original da Disney. O roteiro não ousa e, portanto, não surpreende. Porém, dentro de sua condução extremamente correta, Cinderela agrada principalmente por representar uma revisita tecnicamente impecável a história da moça do sapatinho de cristal.

Óbvio, o roteiro de Chris Weitz também não ignora os tempos em que vivemos, e ao convocarem a donzela misteriosa para comparecer ao castelo, os guardas anunciam ao povo “...onde, se quiser, ela deverá se casar com o príncipe”. Assim como a mensagem final tem mais haver com aceitação da mulher como ele é, sem a maquiagem (literal e social), do que realmente com um sapatinho se encaixar ou não no pé de alguém. A vilã ser uma mulher também não ajudaria muito, mas Cate Blanchet tira a carapuça de carrasco conservador da Lady Tremaine do desenho e impõe uma que tem mais relação com suas própria vaidades e ambições, condenando a personagem e não um tipo.

Aliás, Blanchet é um dos dois grandes acertos de Cinderela; divertidamente má, a antagonista admite, sem deixar de esboçar um sorriso no rosto, um “sim”, quando lhe perguntam se ela está fazendo uma ameaça. Se a atriz tem uma queda para o over quando se trata de drama, é inegável que também não se iniba muito quando tem a liberdade de ser caricata, vide a sua Irina Spalko em Indiana Jones. Branagh, que normalmente tem um estilo marcante, aqui apenas uma vez torce o seu ângulo de filmagem, mantendo-se imperceptível atrás das câmeras no restante do tempo, enquanto outros antigos colaboradores seus fazem suas participações aqui e ali, como Helena Bonham Carter (esteve em Frankenstein de Mary Shelley, do diretor), Stellan Skarsgård (em Thor) e o compositor Patrick Doyle (em vários filme dele).

O segundo triunfo do longa-metragem, claro, é o design de produção, assinado por ninguém mais ninguém menos do que Dante Ferretti – três vezes vencedor merecido do Oscar na categoria – que estonteia com a grandiosidade e beleza de suas criações, do salão de festas até o sótão onde vive a protagonista, passando pela carruagem dourada. Se não estivéssemos recém no começo do ano, Ferretti seria a minha aposta para as principais premiações.


NOTA: 8/10