Em muitos países, o fim da
escravidão significou apenas a adaptação do sistema econômico para assimilar
novamente a antes mão-de-obra escrava. Nos Estados Unidos, a coisa não foi
muito diferente. A chegada da 13ª Emenda da constituição pode ter representado
virtualmente o fim dos trabalhos forçados, porém, na prática, não foi bem
assim, pois um pequeno adendo do texto abria uma exceção dessa prática em
relação a criminosos. Não demorou, portanto, para que aqueles interessados em
retomar o poderio econômico, ou os que simplesmente não conseguiam aceitar a
população negra vivendo entre os brancos, explorassem a brecha. E o que antes
era chamado de “escravizar”, passou a ser denominado “criminalizar”.
terça-feira, 25 de outubro de 2016
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
O CONTADOR
O Contador é um filme repleto de boas ideias, mas que jamais
consegue fazê-las funcionar como um todo. O longa navega com dificuldade
entre um momento e outro, já que o roteiro parece encantado demais com a sua
própria criação para perceber os tropeços óbvios que ela acarreta. Além disso,
a direção e a montagem quase nunca conseguem estabelecer um tom à narrativa,
tornando-a muitas vezes monocórdica. Portanto, é surpreendente que a sensação quando
sobem os créditos seja de que, apesar de tudo, assistimos a um bom filme.
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
INFERNO
Dan Brown é um autor cheio de
boas ideias que normalmente não consegue lapida-las de forma plausível. Apesar
disso, o escritor é hábil em manter o leitor interessado através de seus
capítulos pequenos e dos “mistérios” que carregam - muito embora, normalmente
seja preciso relevar seus vícios impertinentes, como o de repetir certas
explicações diversas vezes. Não obstante, os filmes originados de suas obras
costumam carregar problemas parecidos, ainda que façam um esforço honesto para
contornarem os delírios de trama concebidos por ele – dessa forma, já foram
produzidos o problemático O Código da
Vinci e o bom Anjos e Demônios.
Chegando então como a terceira aventura do professor Robert Langdon (Tom
Hanks), Inferno mostra que, assim
como nos livros, a fórmula cansou, e mesmo os envolvidos parecem
desinteressados em dar a essa nova empreitada um sopro de alma sequer.
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
FESTA DA SALSICHA
É sintomático que Festa da Salsicha gere polêmica, afinal, além do linguajar chulo e do humor grotesco, o filme ousa apenas sugerir violência, enquanto escancara o sexo sem pudores, o que representa uma "inversão de valores” absurda para a nossa sociedade moderna - ainda tão retrógrada. Partindo de uma premissa quase idêntica a de Toy Story, a animação logo se distancia das aventuras de Woody e Buzz ao apresentar como personagens, os produtos vivos de um supermercado. Desde sua ideia original, portanto, o longa brinca com a expectativa do público, inserindo personagens com um design típico de animações infantis, mas que não se poupam de um palavreado de baixo calão e de conotarem desejos sexuais através de suas funções alimentícias ou práticas. Fugindo, porém, de depender apenas das piadas fáceis e paralelos críticos mais óbvios, a nova produção idealizada por Seth Rogen e sua turma ganha contornos mais interessantes ao incitar debates tão necessários em meio a um projeto que não se reprime de ter como vilão uma ducha íntima.
Ganhando vida em uma dimensão alheia aos seres humanos, os alimentos e objetos à venda no Shopwell's não demoram a entoar uma canção alegre que celebra os seus deuses: os clientes. Sonhando com o dia em que serão comprados por um daqueles seres místicos, os bens nos corredores do mercado comemoram toda vez que um amigo é escolhido da prateleira, desconhecendo o terrível destino daqueles que são levados no carrinho de compras. É nesse contexto que conhecemos Frank (voz de Seth Rogen), uma salsicha que, como todas as de seu pacote, é um macho e vive para o dia em que poderá penetrar uma pão bisnaga. Apaixonado por Brenda (voz de Kristen Wiig), ele acaba causando uma confusão e ambos se perdem dentro do mercado junto com um bagel e um pão árabe. Na jornada para voltarem a suas prateleiras, os produtos descobrem o segredo cruel por trás da natureza dos clientes, e se dividem entre desacreditar os boatos ou divulgarem o que sabem para todos.
Quando falei sobre Sexo, Drogas e Jingle Bells, outro filme dos mesmos idealizadores de Festa da Salsicha, escrevi o seguinte: “Com um currículo que já conta com Superbad: é Hoje, Segurando as Pontas, É o Fim e A Entrevista, pode-se dizer que Seth Rogen é um Adam Sandler que deu certo. Ou seja, um comediante que faz filmes com basicamente sempre com os mesmos amigos, tanto na frente quanto atrás das câmeras (…) Além disso, seus longas (sim, seus, já que ou produziu, ou escreveu ou os dirigiu) costumam arrancar boas gargalhadas sem vitimar ninguém que não sejam os próprios personagens ou seus intérpretes – algo que 'comediantes' como Sandler e sua trupe, por exemplo, parecem não entender...”. Pois mantenho essas afirmações. Enquanto comediantes rasos tentam usar a vulgaridade por ela mesma para serem engraçados, sem reparar que estão sendo ofensivos (ou no melhor dos casos, apenas estúpidos), Rogen e seus amigos têm mostrado recorrentemente que entendem que o grotesco pode ser uma ferramenta eficiente quando associada a um roteiro mais esperto.
Portanto, quando as salsichas do pacote de Frank começam a classificar suas chances de sexo pelo comprimento de seus formatos fálicos, já fica claro que estamos diante de mais uma obra da trupe que, ao menos, vai compreender esse princípio. Mas Festa da Salsicha vai bem além disso, e logo percebemos que não apenas os formatos, mas a origem típica e mesmo a composição dos produtos determinam suas personalidades, nacionalidades, religiões ou etnias. E se a relação conturbada entre o begel judeu e o pão árabe soa como uma fonte previsível de piadas fáceis, assim como o corredor das bebidas alcoólicas ser uma enorme rave, a ideia de trazer os produtos não perecíveis como os “anciãos” da tribo (já que duram mais), e o paralelo traçado entre os clientes como deuses e a trajetória das grandes religiões monoteístas associadas a políticas fascistas, são sacadas bem mais interessantes. Principalmente quando o filme passa a abandonar qualquer pudor que ainda pudesse ter (já que, afinal, traz como heróis uma salsicha falante apaixonada por uma bisnaga vaginosa) e investe no sexo como o carro-chefe de sua temática. Assim, quando um dos personagens celebra “O paraíso é aqui!”, a interpretação em uma transposição para a nossa realidade fica bastante óbvia: o abandono dos valores conservadores deve levar a uma libertação – não só sexual, embora seja o exemplo usado pelo filme, mas de preconceitos e ódios que segregam a humanidade, o que geraria uma orgia de pluralidades.
Enquanto isso, a violência é inserida no projeto de forma sugestiva. Ou seja, projeta em usos comuns dos alimentos e comidas cenas de massacre, ferimentos graves, assassinatos e até estupro – e quando força o espectador a reimaginar essas sequências com o filtro da “realidade”, já que não estamos de fato vendo sangue e vísceras, o filme encontra os seus melhores momentos. Estabelecendo o mundo dos produtos como um lugar colorido e que distorce as paisagens ao redor, como se o mercado fosse um planeta inteiro, Festa da Salsicha contrasta esse design com aquele que reflete a visão dos clientes, mais dessaturada e quadrada. Assim, uma simples batida de carrinho num dos corredores, sob a perspectiva dos alimentos acaba se transfigurando num cenário de guerra, com inúmeras casualidades e uma atmosfera pós-apocalíptica, enquanto uma janta comum para uma cliente, é uma cena gore de horror do outro ponto de vista.
Impecável também em seu ritmo (que jamais permite um descanso nos absurdos apresentados), o longa-metragem já seria interessante apenas por ser uma animação com um design típico, mas de conotações sexuais e que aqui e ali tece críticas às políticas anti-imigração, ao extremismo religioso e à violência como método de resolução natural dos conflitos. Porém, o roteiro idealizado por Seth Rogen e Evan Goldberg (que co-dirigiu É o Fim e A Entrevista com o primeiro), além de fazer funcionar o seu humor de vulgaridades, também aproveita para celebrar a diversidade através dos inúmeros formatos, cores, tamanhos e funções dos produtos que compõe o ecossistema do Shopwell's – não deixando também de ser tudo isso uma grande alfinetada no capitalismo cego, que cada vez mais comercializa as pessoas como produtos de seus contextos (o imigrante, o homossexual, o judeu, etc.). Assim, antes de ser um filme tolo e imbecil recheado de piadas de masturbação, drogas e putaria em geral (o que ele também é), Festa da Salsicha é uma comédia bastante contundente nas críticas e paralelos que constrói, assim como na sua missão de ser relevante – e humor feito inteligente usando pertinência, é sempre bem mais divertido.
NOTA: 8/10
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