sábado, 23 de junho de 2012

CARNAGE




    Primeiramente gostaria de me desculpar, pois deixei o título da postagem como "Carnage", o título original do filme em inglês. Não que a tradução Deus da Carnificina seja algum absurdo, mas simplesmente não me acostumei com o nome brasileiro do qual ouvi falar há alguns dias. Dito isso, tenho visto se comentar muito sobre este novo filme de Roman Polanski. Alguns o acharam fraquinho, pois não tem nenhum "grande momento", outros o adoraram apreciando seu texto e a performance de seu elenco. Eu pendo muito para a opinião destes últimos, afinal, grandes momentos às vezes estão disfarçados de diálogos, olhares ou de simples posicionamentos de câmera. E assim como a grandiosidade silenciosa de muitos momentos de Sangue Negro, por exemplo, o longa em questão traz cenas que embora não tenham uma trilha ostensiva, efeitos impressionantes os tomadas impossíveis, possuem momentos épicos e tão devastadores quanto gigantescas explosões. E tudo isso, nas devidas proporções de um apartamento.



     Dois garotos em um parque se desentendem. Dispostos a resolver a situação de forma pacífica, os dois casais de pais dos meninos se encontram em um apartamento para discutir o ocorrido e negociar a reconciliação dos filhos. Mas prender por pouco mais de uma hora esses indivíduos classe média, de egos inflados e superficialistas num espaço tão diminuto pode se provar uma fórmula para o caos, desconstruções moralistas e críticas às futilidades sociais.
     Respeitando as origens de seu roteiro, a peça Le Dieu du Carnage, de Yasmina Reza, Polanski já acerta ao manter o filme durante toda sua duração dentro de apenas um local, no caso um apartamento. O parque, que abre e fecha o longa é, além de obviamente o prólogo e epílogo, também um representante do mundano fora do tal apartamento no qual se passa o filme. A câmera parada de Polanski que capta a briga e a reconciliação dos garotos, faz isso ao longe, quase como se captasse tais eventos ao acaso. O acontecimento é apenas mais um dos muitos que se passam naquele parque, que dirá no resto do mundo, sendo logo algo efêmero. E a pouca importância do evento para a sociedade - cansativamente citada pelos personagens, acaba sendo reforçada justamente pelo contraste desses dois cenários. O parque aberto, repleto de pessoas, acontecimentos e uma infinita gama de conflitos, contra o pequeno e apertado apartamento onde o nosso filme se passa.


     Pra quem já se envolveu com qualquer projeto cinematográfico que seja, sabe a dificuldade que é manter a continuidade em seu filme, uma vez que a maioria dos projetos são filmados fora da ordem cronológica da trama. Então aqui deve se salientar o trabalho de Dean Tavoularis em mais um eficiente design de produção. Ele que é um conhecido colaborador de Francis Ford Coppola nesta área em seus mais prestigiados projetos (a trilogia O Poderoso Chefão, Apocalipse Now, O Selvagem da Motocicleta, etc.) depara-se aqui com basicamente um cenário (a sala de estar dos Longstreet) durante um filme inteiro, tendo que manter a continuidade não só de inúmeros objetos de cena, mas também da iluminação do local. E nesse quesito a aliança entre o design de Tavoularis e a fotografia de Pawel Edelman (este um colaborador de Polanski desde O Pianista) é eximia ao criarem a passagem do tempo através da diminuição das luzes que entram pelas janelas do local, indicando o entardecer, enquanto as luzes artificiais de inúmeros abajures espalhados cuidadosamente pelo cenário aumentam automática e proporcionalmente.


     E falando no desenvolvimento do filme tecnicamente, é de se comparar o investimento que Polanski faz em quadros estabilizados e muito bem marcados no começo do longa, em relação com aqueles mais tremidos e cambaleantes que começam a surgir no terceiro ato onde a embriaguez (não só alcoólica, acreditem) dos personagens se torna mais evidente. É verdade que às vezes ele acaba sendo um pouco óbvio como ao colocar as duas mães, Penélope (Jodie Foster) e Nancy (Kate Winslet), quase de costas uma para a outra enquanto ambas folheiam o mesmo livro de arte, indicando a clara discordância das duas em suas visões sociais. Principalmente quando neste mesmo plano vemos as duas apreciarem uma das ilustrações do livro e interpretarem quase juntas em voz alta, uma dizendo "Caos" e a outra "Ordem". Em outro momento o diretor coloca os dois pais em uma situação parecida ao enquadrar Alan (Christoph Waltz) e Michael (John C. Reilly) em perspectiva, deixando o rosto enorme de Waltz (que estava "vencendo" a discussão naquele momento) contra um pequeno Reilly no fundo do quadro.


     Mas sim, a despeito de todos os seus méritos técnicos, é o quarteto de atores principais que toma o centro do palco e dá um show (sem trocadilhos, mesmo). Embora todos tenham uma grande importância na trama, é Waltz (finalmente não fazendo um papel de vilão esdrúxulo) a quem eu tomei por protagonista. Seu Alan Cowan sempre pendurado no celular é a figura mais "sóbria" dentro daquele apartamento. E não só alcoolicamente como citei antes, mas também socialmente. Ele é o único cuja "Máscara Social" nunca cai, pois no final das contas ele nunca possuiu uma. Desde o início o vemos agindo de maneira "mal educada", falando enquanto come, atendendo o celular no meio de conversas, deixando pessoas que ele mal conhece esperando em sua própria casa, se escorando em móveis, sendo direto e pouco polido, enfim. Alan é um homem que não suporta a futilidade das regras de etiqueta ou as tentativas tolas dos outros três de tentarem se comportar de um jeito que ele simplesmente despreza, considerando uma "traição" às origens mais tribais do ser humano. E para nós acaba não sendo nenhuma surpresa que pessoalmente o personagem se comporte de tal maneira, tendo em vista que sua relação de maior afeto é com o seu celular, aonde ele afirma em dado momento, estar armazenada toda sua vida.


     Já Jodie Foster traz à Penélope, de maneira muito mais óbvia, um conceito que me lembro de ter gostado muito de ver na personagem de Charlotte Gainsbourg em Melancolia. Ela é aquela personagem cheia de ideais que tenta manter a ordem em uma situação onde o caos já é onipresente, se deixando emocionalmente em frangalhos por não querer aceitar uma verdade inquestionável e sem solução. E vemos isso desde sua enorme preocupação em recuperar o livro estragado no começo do longa até seu constante desespero enquanto o marido admite o péssimo estado em que está o casamento dos dois. E sua instabilidade e cega obsessão pela "razão" que tanto afirma ter, a torna a personagem cuja reação você sempre acaba temendo a cada linha de diálogo entre os outros personagens. Enquanto isso Kate Winslet acaba sendo a pária entre eles, tentando conciliar sempre a situação entre os dois opostos que são Alan e Penélope. Aliás, cada vez que penso, mais esses dois me parecem um paralelo com as irmãs Claire e Justine de Melancolia. E pra finalizar, John C. Reilly é o pai sem opinião que concorda com tudo que sua mulher diz, se vendo tão perdido naquela discussão quanto Alan. Então não é a toa que ele seja o primeiro a se entregar ao álcool e que passe a concordar com o personagem de Waltz após o meio do segundo ato.


     E conforme o filme avança em sua curtíssima duração, percebemos que o caos (Alan) acabará por superar a ordem vigente (Penélope), sendo isso mais do que estabelecido com o plano que encerra a discussão dos dois casais, em que o celular do primeiro volta a funcionar mesmo contra a vontade de muitos ali. E assim Polanski entrega um filme que dentro de suas proporções, pode ser considerado um épico. E no final das contas é de se refletir: Quantas "batalhas" verbais e/ou sociais não estão sendo travadas neste exato minuto aí na sua rua ou no seu prédio? Mas o interessante é que não importa quantas delas possam estar ocorrendo agora, mas sim quantas delas não são simplesmente um capricho social e irrelevante.



NOTA: 10/10

PS: A oscarizada designer de figurinos Milena Canonero, que manteve uma constância brilhante em O Poderoso Chefão parte 3 e ainda contribuiu com Kubrick em vários de seus filmes, como Laranja Mecânica, O Iluminado, Barry Lyndon, etc, assina aqui novamente como a responsável pela roupagem dos personagens. Roupas estas que são no mínimo interessantes de se notar graças a divisão clara dos casais através dos tons. Os mais avermelhados e marrons (cores quentes e neutras ) para os Longstreet's e os pretos e azuis para os Cowan (Cores frias e neutras).

Um comentário:

  1. Yuri, só agora fui ver o filme e depois vim ler tua resenha. Eu vi sozinha e gostei tanto, que no mesmo dia fiz o Tiago ver comigo de novo. Me apaixonei pela atuação da Kate Winslet em Foi apenas um sonho; nos dois filmes ela está perfeita em cenas de embaraço em frente a conhecidos, descontrole e risos histéricos. Eu tinha percebido a questão das roupas - Nancy e Alan vestidos em trajes de pessoas de negócios, impessoais, os Longstreet com roupinhas confortáveis e aconchegantes. Pra quem ama carros explodindo no ar e músculos rasgando, este não é o filme, mas eu amei cada segundo. Eu não poderia evitar de comentar que nas nossas reuniões de amigos tu é uma espécie de Alan, hehe.

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