Primeiramente gostaria de me desculpar, pois
deixei o título da postagem como "Carnage", o título original do
filme em inglês. Não que a tradução Deus
da Carnificina seja
algum absurdo, mas simplesmente não me acostumei com o nome brasileiro do qual
ouvi falar há alguns dias. Dito isso, tenho visto se comentar muito sobre
este novo filme de Roman Polanski. Alguns o acharam fraquinho, pois não tem
nenhum "grande momento", outros o adoraram apreciando seu texto e a
performance de seu elenco. Eu pendo muito para a opinião destes últimos,
afinal, grandes momentos às vezes estão disfarçados de diálogos, olhares ou de
simples posicionamentos de câmera. E assim como a grandiosidade silenciosa de
muitos momentos de Sangue
Negro, por exemplo, o longa
em questão traz cenas que embora não tenham uma trilha ostensiva, efeitos
impressionantes os tomadas impossíveis, possuem momentos épicos e tão
devastadores quanto gigantescas explosões. E tudo isso, nas devidas proporções
de um apartamento.
Dois garotos em um parque se desentendem. Dispostos a resolver a
situação de forma pacífica, os dois casais de pais dos meninos se encontram em
um apartamento para discutir o ocorrido e negociar a reconciliação dos
filhos. Mas prender por pouco mais de uma
hora esses indivíduos classe média, de egos inflados e superficialistas
num espaço tão diminuto pode se provar uma fórmula para o caos, desconstruções
moralistas e críticas às futilidades sociais.
Respeitando as origens de seu roteiro, a peça Le Dieu du Carnage, de Yasmina Reza, Polanski já acerta ao
manter o filme durante toda sua duração dentro de apenas um local, no caso um apartamento. O parque,
que abre e fecha o longa é, além de obviamente o prólogo e epílogo, também um representante do mundano fora do tal apartamento no qual se passa o filme. A câmera
parada de Polanski que capta a briga e a reconciliação dos garotos, faz isso ao
longe, quase como se captasse tais eventos ao acaso. O acontecimento é apenas
mais um dos muitos que se passam naquele parque, que dirá no resto do mundo,
sendo logo algo efêmero. E a pouca importância do evento para a sociedade - cansativamente
citada pelos personagens, acaba sendo reforçada justamente pelo contraste
desses dois cenários. O parque aberto, repleto de pessoas, acontecimentos e uma
infinita gama de conflitos, contra o pequeno e apertado apartamento onde o
nosso filme se passa.
Pra quem já se envolveu com qualquer projeto cinematográfico que
seja, sabe a dificuldade que é manter a continuidade em seu filme, uma vez que
a maioria dos projetos são filmados fora da ordem cronológica da trama. Então
aqui deve se salientar o trabalho de Dean Tavoularis em mais um eficiente
design de produção. Ele que é um conhecido colaborador de Francis Ford Coppola
nesta área em seus mais prestigiados projetos (a trilogia O Poderoso Chefão, Apocalipse Now, O Selvagem da Motocicleta, etc.)
depara-se aqui com basicamente um cenário (a sala de estar dos Longstreet)
durante um filme inteiro, tendo que manter a continuidade não só
de inúmeros objetos de cena, mas também da iluminação do local. E
nesse quesito a aliança entre o design de Tavoularis e a fotografia de Pawel
Edelman (este um colaborador de Polanski desde O Pianista) é eximia ao criarem
a passagem do tempo através da diminuição das luzes que entram pelas janelas do
local, indicando o entardecer, enquanto as luzes artificiais de inúmeros
abajures espalhados cuidadosamente pelo cenário aumentam automática e
proporcionalmente.
E falando no desenvolvimento do filme tecnicamente, é de se comparar
o investimento que Polanski faz em quadros estabilizados e muito bem marcados
no começo do longa, em relação com aqueles mais tremidos e cambaleantes que
começam a surgir no terceiro ato onde a embriaguez (não
só alcoólica, acreditem) dos personagens se torna mais evidente. É
verdade que às vezes ele acaba sendo um pouco óbvio como ao colocar as duas mães, Penélope (Jodie Foster) e Nancy (Kate Winslet), quase de costas uma para a outra
enquanto ambas folheiam o mesmo livro de arte, indicando a clara discordância
das duas em suas visões sociais. Principalmente quando neste mesmo plano vemos
as duas apreciarem uma das ilustrações do livro e interpretarem quase juntas em
voz alta, uma dizendo "Caos" e a outra "Ordem". Em outro
momento o diretor coloca os dois pais em uma situação parecida ao enquadrar
Alan (Christoph Waltz) e Michael (John C. Reilly) em perspectiva, deixando o
rosto enorme de Waltz (que estava "vencendo" a discussão naquele
momento) contra um pequeno Reilly no fundo do quadro.
Mas sim, a despeito de todos os seus méritos técnicos, é o
quarteto de atores principais que toma o centro do palco e dá um show (sem
trocadilhos, mesmo). Embora todos tenham uma grande importância na trama, é
Waltz (finalmente não fazendo um papel de vilão esdrúxulo) a quem eu tomei por
protagonista. Seu Alan Cowan sempre pendurado no celular é a figura mais
"sóbria" dentro daquele apartamento. E não
só alcoolicamente como citei antes, mas também socialmente. Ele é o
único cuja "Máscara Social" nunca cai, pois no final das contas ele
nunca possuiu uma. Desde o início o vemos agindo de maneira "mal
educada", falando enquanto come, atendendo o celular no meio de conversas,
deixando pessoas que ele mal conhece esperando em sua própria casa, se
escorando em móveis, sendo direto e pouco polido, enfim. Alan é um homem que
não suporta a futilidade das regras de etiqueta ou as tentativas tolas dos
outros três de tentarem se comportar de um jeito que ele simplesmente despreza,
considerando uma "traição" às origens mais tribais do ser humano. E
para nós acaba não sendo nenhuma surpresa que pessoalmente o personagem se
comporte de tal maneira, tendo em vista que sua relação de maior afeto é com o
seu celular, aonde ele afirma em dado momento, estar armazenada toda sua vida.
Já Jodie Foster traz à Penélope, de maneira muito mais óbvia, um
conceito que me lembro de ter gostado muito de ver na personagem de Charlotte
Gainsbourg em Melancolia. Ela
é aquela personagem cheia de ideais que tenta manter a ordem em uma situação
onde o caos já é onipresente, se deixando emocionalmente em frangalhos por não
querer aceitar uma verdade inquestionável e sem solução. E vemos isso desde sua
enorme preocupação em recuperar o livro estragado no começo do longa até seu
constante desespero enquanto o marido admite o péssimo estado em que está o
casamento dos dois. E sua instabilidade e cega obsessão pela "razão"
que tanto afirma ter, a torna a personagem cuja reação você sempre acaba
temendo a cada linha de diálogo entre os outros personagens. Enquanto isso Kate Winslet acaba
sendo a pária entre eles, tentando conciliar sempre a situação entre os dois
opostos que são Alan e Penélope. Aliás, cada vez que penso, mais esses dois me
parecem um paralelo com as irmãs Claire e Justine de Melancolia. E pra finalizar, John
C. Reilly é o pai sem opinião que concorda com tudo que sua mulher diz, se
vendo tão perdido naquela discussão quanto Alan. Então não é a toa que ele seja
o primeiro a se entregar ao álcool e que passe a concordar com o
personagem de Waltz após o meio do segundo ato.
E conforme o filme avança em sua curtíssima duração, percebemos
que o caos (Alan) acabará por superar a ordem vigente (Penélope), sendo isso
mais do que estabelecido com o plano que encerra a discussão dos dois casais,
em que o celular do primeiro volta a funcionar mesmo contra a vontade de muitos
ali. E assim Polanski entrega um filme que dentro de suas proporções, pode ser
considerado um épico. E no final das contas é de se refletir: Quantas
"batalhas" verbais e/ou sociais não estão sendo travadas neste exato
minuto aí na sua rua ou no seu prédio? Mas o interessante é que não importa
quantas delas possam estar ocorrendo agora, mas sim quantas delas não são
simplesmente um capricho social e irrelevante.
NOTA: 10/10
Yuri, só agora fui ver o filme e depois vim ler tua resenha. Eu vi sozinha e gostei tanto, que no mesmo dia fiz o Tiago ver comigo de novo. Me apaixonei pela atuação da Kate Winslet em Foi apenas um sonho; nos dois filmes ela está perfeita em cenas de embaraço em frente a conhecidos, descontrole e risos histéricos. Eu tinha percebido a questão das roupas - Nancy e Alan vestidos em trajes de pessoas de negócios, impessoais, os Longstreet com roupinhas confortáveis e aconchegantes. Pra quem ama carros explodindo no ar e músculos rasgando, este não é o filme, mas eu amei cada segundo. Eu não poderia evitar de comentar que nas nossas reuniões de amigos tu é uma espécie de Alan, hehe.
ResponderExcluir